domingo, 30 de dezembro de 2007

2008

Lembrei-me que o próximo ano é par.
Trata-se obviamente de um pensamento estúpido para este final de 2007, admito.
Mas lembrei-me que o facto de o próximo ano ser par pode significar que não será ímpar. Ou seja, que não será inesquecível nem único nem extraordinário. Pode realmente significar que nada acontecerá no próximo ano, que não haverá nada de nada de nada para recordar em 2008 por nem sequer haver fotografias.
(Infelizmente isso poderá significar igualmente um défice de histórias para contar, a morte do contador de histórias, uma catástrofe natural.)
E quanto mais penso nesta perspectiva para 2008, mais feliz me sinto. Seria verdadeiramente inesquecível viver um ano sem histórias, nem idas nem voltas nem nada de nada de nada.
Concluí que me apetece realmente qualquer coisa normal, rotineira, domingueira, um ano esquecível, arrumável, previsível. Com poemas do Caeiro e profecias do Bandarra. Mais nada.
É uma emoção de tal forma banal que me apetece escrever histórias banais. Iguais a esta.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Diálogo existencial

- Estou fechada para férias.
- Como? As pessoas não podem fechar para férias.
- Pois, mas eu não sou uma pessoa!
- Então és o quê?
- Sou uma personagem.
- Uma personagem?
- Sim, uma personagem!
- E eu também sou uma personagem?
- Não, tu és uma pessoa.
- Isso faz de nós incompatíveis?
- Claro!
- Mas isso é uma tragédia.
- Sim, e eu sou a protagonista.
- Da minha tragédia?
- Não, da minha!
- Serás fruto da minha imaginação?
- Sim!
- E eu, que sou?
- Fruto da minha!
- Então somos o fruto um do outro!
- Sim! Daí a tragédia!

Nota aos leitores:
Estou fechada para férias (a pessoa e não a personagem). Até ao meu regresso!

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Gelo

se fossemos pedras de gelo

cairíamos
juntos naquele copo alto
para que alguém nos bebesse

seríamos
um pouco mais sólidos do que antes
um pouco mais amantes

traríamos
os rostos sempre próximos
e dançaríamos no chão de vidro

se fossemos pedras de gelo

seríamos
mais iguais do que antes
mais correctos
mais rectos
completos
mais

um pouco mais de frio
e congelaríamos

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

A pessoa

Ler também "A personagem".

A pessoa que queria ser personagem entrou no gabinete sem bater à porta e sentou-se antes mesmo de o escritor lhe indicar a cadeira. Apercebendo-se da existência do aquário das personagens mínimas, a pessoa bateu no vidro, assustando-as. O escritor tossiu incomodado e esticou o peito ao mesmo tempo para ganhar em altura, abanou as pernas nervosas, quase gritou:
- Diga!
O outro tirou calmamente o cachecol como quem se instala no consultório do doutor.
- Vim aqui para dizer que gostava de ser uma das suas personagens.
O escritor tirou desenvolto um bloco de notas da primeira gaveta à sua esquerda. Era um bloco de capa negra e por dentro tinha apontamentos vários que apontavam várias direcções, escritos a várias cores e presumivelmente em dias diferentes. O autor apressou-se a encontrar uma folha em branco e, de repente, lá estava ela, muito direita, muito virgem.
- Uma biografia, certo? E para quando queria o trabalho?
O escritor escreveu ao centro "Biografia" e à direita: "Para sair em". Ficou de caneta em punho à espera da resposta.
- Não, uma biografia não. Já me chega a minha vida. Queria passar para um livro.
O escritor encolheu os ombros, era uma espécie de tique nervoso perante o capricho dos clientes.
- Uma ficção sobre a sua biografia, é isso?
O outro demorou a decifrar o género de trabalho que o outro lhe propunha e depois pôs-se a abanar a cabeça, as mãos, o corpo, a alma.
- Não, nada disso! Esqueça a minha existência. Eu queria ser uma personagem sua, ponto final. Uma daquelas que tem no aquário, pronto, só isso. Deixar de ser isto e passar a ser aquilo.
- Uma personagem minha?
- Sim, uma personagem sua. Gostava de passar para os seus livros. Mas não aos bocadinhos, percebe? Gostava de passar para o papel completamente, na íntegra, de um lado para o outro, em harmonia. Gostava de ser o que você quiser.
- Desculpe, mas isso não faz sentido nenhum!
- Não faz mal! Há uma altura na vida em que nos estamos a marimbar para o sentido, percebe?
- Não, não percebo! E você também não! Vejamos: eu não posso fazer de si uma personagem!
- Ora essa! Então fez dos outros todos personagens e de mim não pode?
- As minhas personagens são inventadas, não existem.
- E como as inventou você?
- Olhe, inventando! Mas não vou buscar pessoas para fazer delas personagens. Não sou nenhum ilusionista.
- Pois digo-lhe eu, que conheço todo o seu trabalho - todo o seu trabalho, percebe? - que há muita gente por aí que podia ser bem as personagens dos seus livros.
- Só que não são!
- Pois não! Falta-lhes aquele toque artístico que você dá à vida!
- Justamente!
- Daí que eu queira ser uma personagem sua!
O escritor riu-se e no seu riso havia um misto de ironia e deleite. Recostou-se na cadeira almofadada e ficou a contemplar a pessoa que queria ser personagem. Disse:
- Para ser personagem e não pessoa, teria de o matar.
- Evidentemente! Força!
O escritor riu-se novamente. Sentia-se subitamente todo-poderoso, era incrível que alguém quisesse morrer por ele. Disse de si para si: "Sou eu que mando na vida!". O outro interrompeu-lhe inesperadamente o pensamento.
- Não, você não manda em nada! É uma pessoa como outra qualquer!
- Como outra qualquer? Você acabou de dizer que morria por mim!
- Por si, não! Pelas suas personagens!
- É o mesmo! Eu sou as minhas personagens! Aliás, sou mais do que elas, porque sou o criador!
- Que disparate! Você é uma pessoa como outra qualquer.
- Sou o criador!
- Mas falta-lhe na sua vida aquele toque artístico que você dá às personagens.
- E esse toque é meu! E é tão bom que você morria por ele!
- Exacto! Eu posso dar-me ao luxo de ser uma personagem sua. Você é que não!
O escritor ficou confuso, expulsou a pessoa do seu gabinete e decidiu não a matar. Nessa noite bebeu toda a vida num só trago, teve uma crise de fígado e outra existencial, pegou na pistola e matou-se.
Era um dia histórico: ficção e realidade uniam-se em plenitude.
E as personagens saíram à rua para festejar a vitória.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Western revisited: O cowboy errante


Ao longe há um novelo de palha que voa para sempre.

Com o passar do vento.
Com o passar do tempo.

Só aquele cowboy sabe olhar.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Calendário do advento

Devo dizer que duvido que alguém respeite a lógica dos calendários do advento. Duvido.
Há quem defina as pessoas consoante o seu QI, a sua inteligência emocional, a sua declaração de IRS, o seu agregado familiar. Mas para mim as pessoas sempre se definiram consoante a quantidade de chocolate que ingerem e, até agora, só conheço dois tipos: as que comem chocolate à bruta e as que não comem quase chocolate nenhum.
Posto isto, duvido que haja quem coma um chocolatinho por dia (emanando aquele desapego de quem não come, mas irradiando sempre uma felicidade magra com a dose minimalista de cacau). Para mim, ou se devoram os vinte e quatro chocolates em dois tempos (o primeiro tempo para uma dúzia, o segundo para a outra dúzia) ou se saboreia um número reduzido perto de zero.
Pode ser que esse tipo de gente moderadíssima até ande por aí, mas eu (que só conheço pessoas que comem chocolate à bruta ou que não comem quase chocolate nenhum) desconfio expressamente delas: não acredito na sua natureza humana, duvido da sua existência.
Por outras palavras: acredito mais rapidamente no Pai Natal do que em pessoas que respeitem o calendário do advento.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Na porta de embarque

Um passageiro lê um jornal. A senhora do lado não faz nada: está de mãos dadas com a bagagem de mão. Pergunta:
- Tem horas?
- Não se preocupe com as horas. Quando for, eles chamam.
- Estou muito nervosa, sabe?
- Com quê? Não gosta de andar de avião?
- Não, detesto! Mas também não tenho medo. É aquela coisa de voltar a casa!
- De voltar a casa? Pois, isso pode dar cabo dos nervos!
- Sim, mas é óptimo! São nervos bons! Adoro a minha casa, sabe?
- Portanto, a senhora volta agora para lá, é isso?
- Sim, o senhor não?
- Não, eu vou só.
- Aaaah, já não volta?
- Sim, claro! Depois volto para aqui. Mas agora vou.
- Pois, eu já vim para cá, mas agora volto para lá.
- Portanto, você mora lá.
- Não, eu moro aqui. E volto para lá agora.
- E já não vem para cá mais?
- Sim, claro! Depois vou para aqui. Mas agora volto.
- Então, se a senhora mora aqui, a volta é sempre neste sentido: de lá para cá.
- Não, não, eu moro aqui mas venho de lá, logo volto para lá.
- Mas a senhora está sempre aqui, portanto quando vai para lá, vai só.
- Não, eu volto sempre para lá!
- Repare: eu tenho casa aqui. Logo, se vou daqui para ali, vou só! E quando volto, volto para aqui.
- Mas eu tenho casa lá também. Aliás, comprei essa casa antes de vir para aqui. Logo, quando vou para lá, volto.
- Depende de qual das casas pensa ser a sua casa.
- São as duas!
- As duas? Então tanto dá, pode dizer que vai ou que volta.
- Justamente. E hoje apetece-me dizer que volto!
- Porquê?
- É uma questão de perspectiva.
- Você deve estar realmente nervosa.
- Sim, estou! É porque estou a voltar! Se fosse só ir, não custava nada!

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Western revisited: O que brilhava à noite

Terça-feira, dia oficial das séries.
Mais um episódio da série "Western revisited".
Ver último episódio.

À noite, quando só a fogueira existia na planície, o chefe da tribo contava então a lenda do cowboy negro e todos os índios ouviam: as penas da cabeça pousadas no chão, um calor sereno do farwest, o céu inteiro a entrar pelos pulmões. O chefe descrevia um cowboy de pele negra com curvas acentuadas no rosto e lábios escuros, enormes, tão avolumados que se distinguiam na própria sombra. As crianças tinham medo. Era um homem misterioso, invisível no escuro à excepção do branco puríssimo que trazia nos olhos e nos dentes perfeitamente alinhados. Os índios achavam-no dono da escuridão, temiam-no, adoravam-no, pediam-lhe desejos nocturnos. Chamavam-lhe: "O que brilha à noite", juravam que o cowboy negro tinha estrelas nos olhos. Era o mais sozinho de todos os homens, ou pelo menos assim contava o chefe. Não falava, não ria, não comia, não bebia, não chorava. Os homens contavam a lenda do cowboy negro às crianças e as mulheres ouviam aquela história pela boca dos filhos (eles muito aconchegados no colo das mães e elas um pouco menos mães do que antes, fascinadas com aquele cowboy).
E secretamente, em traços quase imperceptíveis, as mulheres desenhavam nas peças de roupa os lábios do homem que brilhava à noite. Depois, quando o escuro era total, sonhavam que o beijavam tão intensamente que mergulhavam na sua enorme boca. No fundo, só aquele beijo poderia explicar as estrelas. O mundo inteiro estava dentro de uma boca escura e elas, as mulheres, ficavam toda a noite a vigiar o céu (olhos postos nos olhos do cowboy negro). Era um amor correspondido, claro. Isto porque as estrelas dos olhos continuavam a brilhar.
Digamos que a vida tinha uma beleza própria, quando a arte de amar ainda era ciência.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Frase sem sinais de pontuação

Para a Marta.

Chegou a um sítio qualquer como aliás sempre chegava por estar sempre a ir ou a vir de outros sítios que não aquele onde morava e ao sentar-se pensou que gostaria de ficar sentada por um tempo suficiente quase próximo do eterno para que fosse possível descansar as pernas e os braços e os ombros e a cabeça e o tronco e nesse preciso momento levantou-se e pensou que o facto de andar de um lado para o outro sem nunca voltar era contra natura já que tinha um sonho dentro de si no qual era uma árvore afunilada como o pinheiro manso de todos os natais que alguém plantara numa só terra de onde não era possível sair por as raízes serem profundíssimas e então pensou como era bom estar num sítio bom com bom tempo e todo aquele tempo quase próximo do eterno e lembrou-se de repente daquele lugar bom onde alguém lhe dava água para que os seus braços crescessem e as suas folhas não morressem e disse a si própria que as suas raízes tinham ficado nesse sítio onde era sempre possível voltar e por isso chamou àquela mão que lhe dava água amizade e apelidou a sua sede de saudade e decidiu partir não para outro sítio que não aquele onde morava mas sim para o lugar onde nascera o pinheiro manso de todos os seus natais

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Cantiga

Um senhor muito composto atravessa a rua.
(Tem as costas muito direitas.)
Do lado oposto vem uma mulher nua
E encontram-se a meio da passadeira.

Passam à beira um do outro e cada um segue na sua.

A miúda vem formosa e bem segura.

E o senhor espreita,
vê-lhe a traseira
e logo fica cheio de tusa.

O senhor composto fica então muito descomposto
Com a gargalhada nua da miúda que atravessa a rua.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

A personagem

A personagem que queria ser pessoa saltou furiosa da folha de papel e foi aterrar em cima da secretária. O escritor assustou-se com a sua aparição repentina mas, como coleccionava protagonistas de romances, ficou contente com aquela visita.
Para caberem nos livros, as personagens eram extremamente pequenas. Na verdade eram uma espécie de polegarezinhos, mais pareciam os duendes de que nos falavam na infância. A colecção de personagens daquele escritor era absolutamente fantástica: cabia toda dentro de um aquário e era preciosíssima.
O autor agarrou gentilmente na caneca do seu chá e preparava-se para apanhar o protagonista do seu novo romance em pleno voo, quando este lhe interrompeu o movimento da mão. Tudo porque a personagem falou e a sua voz era muito grave. O escritor ficou espantado e queixou-se:
– Mas a voz desta personagem não é assim.
– É assim, sim! A minha voz, a partir de hoje, é extremamente grossa.
– Mas que estupidez! É por teres uma voz fina que este romance existe.
– Pois, precisamente! Saí do livro e vim até aqui para dizer que gostaria de sair deste romance!
O escritor não reagiu logo, era a primeira vez que uma personagem se revoltava com o seu papel. Mas a seguir, já recomposto, desatou a rir e a personagem caiu para trás com a força da gargalhada.
– Isso é ridículo! Se abandonasses o romance, deixavas de ser uma personagem!
– Precisamente! É que gostava mais de ser uma pessoa! Isto de ser um protagonista é uma seca, é muito previsível!
O escritor ofendeu-se. Previsível?! Optou por uma estratégia mais pedagógica.
– Garanto-te, protagonista, que a vida de uma personagem é muito mais interessante do que a vida de uma pessoa.
– Mas eu quero ser de carne e osso. Quero ser eu a decidir o que faço e o que vou fazer!
– Ora agora! Tu és uma invenção minha, terás sempre de fazer o que eu quero.
A personagem alarmou-se, abriu muito a boca por a indignação não lhe caber no peito. Reclamou:
- Acaso um filho é invenção dos pais? Eu sou o fruto da tua imaginação e exijo ser tratado como tal. Sou sangue do teu sangue.
O escritor estava estupefacto, não era nada daquilo que tinha previsto para a sua personagem. Tornou-se mais autoritário.
– Tu aqui não és nada, caríssima personagem! No meu livro quem manda sou eu!
– Mas eu já disse que não quero fazer parte desse livro! Quero ser uma pessoa como outra qualquer!
O escritor ergueu o manuscrito colérico, abanou-o no ar, gritou:
– As personagens dos meus livros são pessoas! São iguais a elas! São melhores do que elas!
- Melhores? Como podes ter a presunção de que fazes cópias melhores do que o original?
O escritor não respondeu logo, estava mudo de raiva. A personagem repetia:
– Como? Como? Como?
- Eu não sou copista! – gritou ainda o escritor.
Depois, no exacto segundo em que a personagem acabara de dizer: "Detesto pessoas que se comparam a Deus!", o manuscrito caiu-lhe com toda a força na cabeça e o protagonista morreu esmagado contra a última página.
O escritor repetiu:
– No meu livro quem manda sou eu!
Mas estava enganado. Estava tão enganado que dava pena.
O livro é que mandava nele. O livro e as personagens.
O escritor só fazia o que elas lhe diziam. E o protagonista desta história queria claramente morrer.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Chuva

Como se não bastasse, chovia. Torrencialmente.
E ele descia a rua cabisbaixo, trazia os ombros caídos como folhas em final de vida e por cima da cabeça um chapéu-de-chuva murcho, quase roto. Uma mulher apressada subia na sua direcção e ele, de vista curta por causa do chapéu muito negro em frente aos olhos, ia também direito a ela. Noutro dia qualquer ouviria os seus passos (saltos altos falando alto com o passeio), mas hoje não.
A mulher vira-o quase a tempo, desviara-se ainda uns bons centímetros, mas os chapéus-de-chuva bateram um no outro e inexplicavelmente, contra a vontade de um e de outro, contra a chuva e o vento, entrelaçaram-se. Ela puxou do seu chapéu determinada, mas nada parecia quebrar aquele abraço. Ele a querer descer a rua, ela a querer subi-la. Inspeccionaram os chapéus e descobriram que a vareta de um tinha rompido o pano do outro. Ele lançou a mão à vareta, ela ao pano, e tentavam sem êxito desfazer o nó complicado. Não falavam um com o outro, nem sequer se olhavam por estarem demasiado próximos.
Por cada um querer ir para seu lado, resolveram então puxar os chapéus à força. E tanto puxaram que a vareta cedeu e o pano caiu. Ficaram ambos à chuva, um de chapéu partido, outro de chapéu roto. Primeiro não disseram nada: estavam estupefactos com o acontecimento. Depois espantaram-se antes com a chuva e olharam um para o outro. Estavam ensopados.
Deitaram os chapéus no lixo e refugiaram-se debaixo de um telhado. Queixavam-se ambos do tempo. Inicialmente para introduzirem um tópico de conversa, depois para justificarem os males de todos os tempos. Queixaram-se tanto da chuva que a certa altura a culparam de todos os problemas, infortúnios e pecados. Uma hora depois continuavam debaixo daquele telhado e conversavam animadamente sobre os efeitos prejudiciais do tempo. Depois a chuva parou e eles fingiram ter de continuar caminho.
Despediram-se sem saberem se voltariam a ver-se. Choviam torrencialmente por dentro e culparam o tempo por isso. Era naturalmente a última gota naqueles corpos de água.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Western revisited: Monument Valley

Mais um episódio da série "Western revisited".
Ver episódio: Lucky Luke.

Pergunto-me: o que faz aquele cowboy no deserto vermelho de Monument Valley? Está sentado no seu cavalo que mal cavalga e vem assobiando descontraído (o próprio assobio traz terra nas pontas e concluo que tudo é sujo e velho naquele vale).
Há uma rocha vermelha por cima de outra rocha vermelha naquele deserto rochoso. Um cenário quase perfeito por ser demasiado seco e o cavalo abranda de repente. O sangue do cowboy e o compasso do cavalo são também eles secos e, quando a rocha se torna sombra, as quatro ferraduras pousam. O cowboy senta-se no chão sem frutos, as costas contra as costas da rocha, chapéu sobre o rosto. Adormece. O silêncio que se segue é comprido e, para interromper a imagem estática, o cavalo roda no ar a enorme cauda.
Atrás da rocha aparece então o inimigo, o tal índio americano, vermelho e seco como a terra. Dirige-se vagaroso para o cavalo mas este, fiel ao belo adormecido, ergue-se no ar deslumbrante. O cowboy mantém o rosto atrás do chapéu (o seu sono é naturalmente mais pesado do que as rochas daquele vale). O índio ameaça o cavalo e encaminha-se agora para o cowboy, lento e cauteloso como os predadores. Está quase em cima dele – é uma sombra por cima da sombra – até que o cowboy puxa réptil da pistola e carrega uma só vez no gatilho. O tiro certeiro segue pelo vale em eco e a morte conforta-me.
O índio cai aos pés do cowboy e este nem tira o chapéu para o ver. Volta a encostar as costas nas costas da rocha e, enquanto devolve a pistola ao cinto, repete o seu lema para o cavalo: "Never kill a man on his back!". Este olha-o condescendente e roda no ar a enorme cauda. "Never!", repete atrás do chapéu e não tarda a adormecer.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Olhos nos olhos [versão masculina]

Dois homens olham-se olhos nos olhos. Um é mais persistente do que o outro, olha sempre nos olhos do segundo e este intimida-se de vez em quando: os olhos, já muito tensos, descem como dois sóis em final de tarde, mas logo regressam à luta.
(Se um homem olha insistentemente para outro, este devolve-lhe um olhar ainda mais intenso. Os seres humanos do sexo masculino podem ficar nisto longos minutos por não saberem ladrar.)
Um deles, o mais incomodado, impacienta-se e enche-se de coragem.
– Desculpe, está a olhar para mim porquê?
– Eu logo vi que se passava aqui qualquer coisa.
– Ai sim? Então o que se passa?
– Passa-se que você é que está fixado em mim!
– Não, está muitíssimo enganado! Eu sentei-me neste lugar e você é que começou nessa insistência.
– Então devo ser eu que tenho uma fixação em si! – e riu-se descarado, ainda com os olhos contra os olhos do outro. Escancarados.
O mais incomodado alarmou-se, endireitou-se muito no seu assento. Um suor frio crescia-lhe na pele e o outro apercebia-se disso. O outro apercebia-se de tudo isso, pois os seus olhos passeavam-se agora pelos pormenores do rosto em frente: primeiro a testa, depois a barba rija até às têmporas, o queixo carismático, ansioso, apetecível. Um calafrio atacou-lhe as costas e o homem incomodado esperneou a coluna.
– Tenha calma! – disse dócil o homem insistente e os olhos regressavam aos olhos do outro, os dele muito azuis e os outros quase negros, uns diluindo-se nos outros até nascer da união das cores um azul ameno, nocturno, consensual.
(O homem incomodado estava deveras incomodado, o coração palpitava como um sapo no pescoço e agora uma das pálpebras tremia ansiosa como um peixe fora de água.)
O outro repetia a frase dócil e aquele ouvia-a, acalmava-se um pouco, desejava que a frase se repetisse. O azul gerado pela união dos quatro olhos era agora um pouco mais líquido, havia qualquer coisa de translúcido naquele azul quase aquático.
– O que quer você de mim? – perguntou quase tímido e o outro devolveu-lhe um sorriso torto, no canto da boca, secreto como o fundo do mar.
– O que é que você acha que eu quero? – e o outro respondeu: "Não sei". O mesmo sorriso na boca do outro.
– Eu também não!
Fora um resto de viagem longo devido ao silêncio dos lábios e aos gritos dos olhos. O homem incomodado relaxara, adormecera os olhos no azul daquele olhar. Queria ir na corrente daquele rio e quase se deixou levar. Disse o homem insistente:
– Saio na próxima paragem! – e o homem incomodado teve pena. Quase perguntou: "E agora, quando o vejo?", mas apercebeu-se a tempo do seu ridículo. O outro desejou um: "Até à vista!" e o homem incomodado, triste com a partida, perguntou mais alto, como quem fala para um comboio em andamento:
– Mas por que me olha assim?
O outro olhava-o ainda, o rosto muito assimétrico por causa do sorriso no canto do rosto. Concluiu:
– Cada um vê o que quer. – e levantou-se.
O azul ameno separou-se então em duas cores: agora eram dois olhos azuis e dois quase negros, afastados para sempre. O homem insistente desdobrou então uma bengala e apontou-a para o chão. E ostensivamente, qual sabedor Tirésias, exibiu com orgulho a sua cegueira sábia.
O homem incomodado ficou a vê-lo caminhar para o lado de lá, muito devagar e hesitante, atrás da bengala que lhe ditava o caminho. Depois, quase acidentalmente, viu o seu próprio reflexo no vidro e olhou-se olhos nos olhos. A cor daquele olhar não era azul, mas antes negra como as trevas. Repetiu de si para si: "Cada um vê o que quer!" e deixou de se reconhecer no vidro devido à escuridão do olhar. Depois esqueceu-se de sair na sua paragem. No fundo esquecera-se de si próprio.
Sonhou toda a noite com o mar. Era um azul realmente inesquecível.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Margareta na bicicleta

A Margareta tinha sete, mascava chiclete e usava bandolete no alto da testa. Qual foguete em dia de festa vinha Margareta pela praceta em cima da sua bicicleta. Pois logo ali foi cair na valeta da praceta a pobre Margareta da bicicleta. E naquilo engoliu a chiclete, perdeu a bandolete e partiu a bicicleta. Tinha sete a Margareta e desde esse dia nunca mais foi foguete em dia de festa, por já não querer a bicicleta nem andar pela praceta a mascar chiclete. Dizem que a culpa é da valeta, mas eu acho que isso é tudo treta! A culpa é só de Margareta que, depois dos sete, já não quis a bandolete nem ser mais foguete.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

O sonho do psicanalista

O psicanalista sonhou o sonho da sua vida e nesse sonho era ele que se deitava no divã. Falava para o tecto. Não demorou a perceber que afinal falava consigo próprio, pois também ele se sentava na cadeira do psicanalista.
No sonho sonhava que se deitava, embora já estivesse deitado. No fundo, a sensação era a de se afundar mais um pouco no divã. Sentia-se extremamente confortável. Pedia: "Analise-me!" e o psicanalista retorquia: "Analise você!". Um deles olhava para o tecto, o outro olhava para o primeiro.
Silêncio, um silêncio profundíssimo e ele um pouco mais deitado do que antes, no fundo de si mesmo, cada vez mais no fundo. Uma voz pedia-lhe: "Fale-me dos seus sonhos!" e ele reclamou silêncio, um pouco mais de silêncio, ainda mais silêncio, o maior silêncio de todos. Explicou: "Aquele silêncio que vem de dentro e é opaco, impenetrável". Ele deitado no divã e sentado na cadeira: via-se a si próprio na posição do outro e já não sabia quem era.
Quis falar de um sonho e tentou lembrar-se de um. Contou que estava deitado num divã, que pedia ao psicanalista: "Analise-me!" e que este lhe retorquia: "Analise você!". Depois disse que afinal aquilo não era um sonho, que era o momento dentro do sonho e que portanto era real. Tentou falar de outros sonhos e, quando abriu novamente a boca, não tinha voz. O psicanalista deixara de o ouvir, observava-o apenas. Ele deitado no divã a esbracejar, sem uma palavra para dizer.
(Visto assim, do lugar do psicanalista, o psicanalisado mais parecia um náufrago. Morreria afogado no divã a qualquer momento.)
O psicanalista ainda disse: "Fale-me de um sonho que não esse!" e o outro, cada vez mais deitado, queria dizer-lhe bem alto: "Só conheço os sonhos dos outros", mas a sua boca não produzia sons.
Na manhã seguinte, o psicanalista acordou no seu próprio divã e não conseguia levantar-se. Agitava os braços no ar, agarrava-se às almofadas, mas tudo parecia afundar-se com ele. Era o divã que o engolia e o psicanalista, quando se cansara da luta, deixou-se estar naquela enorme boca.
Tinha a esperança de que se tratasse de um sonho dentro do sonho.
Mas era evidente que não.
O psicanalista não sabia nada sobre o seu universo onírico. De facto, só conhecia os sonhos dos outros, alimentava-se deles, vivia para eles. E naquele dia, os outros – unidos por aquele divã e já sem sonhos para sonhar – comiam-no vivo. Para terem os seus sonhos de volta.
(O chamado sonho contra sonhador.)

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Western revisited: Lucky Luke

Terça-feira, dia oficial das séries.
Estreia hoje a série "Western revisited".

Acendi a luz e tive a certeza: vi esta manhã Lucky Luke.
A bem dizer, não o vi: na parede branca do quarto estava apenas a sua sombra. Portanto corrijo: esta manhã quase vi Lucky Luke. A parede enorme e ele alinhado ligeiramente à direita, um lenço esvoaçando no pescoço. Trazia o mesmo chapéu de abas largas, o cano da pistola ladeando a perna em arco. Estávamos frente a frente e ouvi ao longe uma harmónica de sopro.
Fechei os olhos e depois a luz. A música calou-se.
Depois reacendi o candeeiro e lá estava ele espelhado na parede, a arma ainda arrumada no cinto, os braços afastados do corpo como quem se prepara para o voo.
De repente ouvi um tiro e pensei que morria.
Mas não, Lucky Luke não se tinha mexido: a pistola junto à cintura, os braços ainda suspensos. E no entanto, inexplicavelmente, assaltou-me a dor da morte.
Olhei para mim: no centro do corpo um furo muito redondo. Gritei um grito de vida e o sangue saiu inteiro com as palavras. Vi-o ainda contra a parede, o chapéu impecável e as botas muito assentes no chão. A arma ainda em repouso. Misteriosamente.
Só então me lembrei. Lucky Luke, sempre mais rápido do que a própria sombra.

Terça-feira - Dia oficial das séries

"É terça-feira". Bela música do Sérgio Godinho.
Em memória desta terça-feira (da música e não do dia) apeteceu-me estrear qualquer coisa hoje, terça-feira, 27. Só pelo gozo de estrear!
Vai daí, inventei que a terça-feira é o dia oficial das séries!
Ou seja, às terças sai um texto que se integre numa série qualquer.
Acham bem?
Eu acho!

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Diálogo vítreo

Duas pessoas estão lado a lado numa igreja. Não se conhecem. Um senhor e uma senhora: ele com gabardina de trabalhador independente, ela com coluna vertebral igual à das beatas. Olham para cima procurando a luz que desce do céu (não porque estejam a rezar mas porque contemplam os vitrais de uma janela). A senhora fala primeiro.

- Desculpe, está a rezar?
- Não, estou só a olhar.
- Então posso falar consigo!
- Por acaso, não. Falar interrompe o olhar, sabe?
- Ah, que bela frase. É da Bíblia?
- Não, acho que é minha, mas não tenho a certeza.
- Se calhar é mesmo da Bíblia.
- Se calhar.
(Silêncio.)
- O senhor gosta destes vitrais.
- Sim, gosto.
- Eu também. Parece que Deus desce do céu pela janela, não é assim?
- Não, não desce.
- Não desce?
- Não, Ele está no meio de nós.
- É verdade! O menino é padre?
- Não, sou arquitecto.
- Mas conhece bem a Bíblia.
- Não, nunca a li.
- Então vem muito à missa.
- Não, nunca vou à missa.
- Mas isso é pecado.
- Se calhar. Mas eu não sou crente, sabe?
- Não é crente? Então o que está a fazer nesta igreja?
- A ver os vitrais!
- Mas só vai à igreja quem quer rezar.
- Ora essa! Não posso ir à igreja só ver os vitrais?
- Não!
- Bom, a senhora também não está a rezar.
- Mas vou começar agora! Vou rezar por si, para que veja a luz.
- E se eu não vir a luz?
- Foi porque Deus desistiu de si.
- Desistiu de mim? Mas isso é pecado!
(Silêncio. Agora é ele que fala primeiro.)
- Vou-me embora.
- Faz muito bem. E só volte se for para rezar.
- Está bem! Entretanto vou ali acender uma vela por si.
- Mas você não acredita!
- Em Deus não, mas tenho muita fé em si!
- E por que quer acender uma vela por mim?
- Para que você veja a luz.
- Mas eu já vi a luz, você é que não!
- Para mim, foi você que não viu. É tudo uma questão de fé!

(Despediram-se respeitosos. O senhor acendeu uma vela pela senhora e a senhora rezou pelo senhor. No final olharam um para o outro e depois para os vitrais da janela. Saíam da igreja um pouco mais iluminados do que antes. Graças aos vitrais.)

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Os dez dedos das mãos

Aquela rapariga lambe os dez dedos das mãos. Está sentada sozinha numa mesa de quatro e come uma salada agressiva, cheia de pormenores coloridos. Tem um garfo numa das mãos e na outra três anéis. Espeta o garfo na salada e encosta-o aos dedos da mão dos três anéis, que ajudam a dobrar a folha de alface. Olha só para o prato enquanto come e é agora que lambe os dez dedos. Um a um e sempre o mindinho primeiro (só depois os outros, por ordem de chegada). De vez em quando não lambe mas chupa. Faz imenso barulho, mas mal se ouve porque a música do bar toca mais alto.
Interesso-me pela rapariga que lambe os dez dedos das mãos.
No final da refeição rápida lambe apenas quatro dedos: os dois polegares, um dos indicadores e um mindinho. É rápida com a língua e com as mãos. Limpa depois a saliva dos dedos nas calças de ganga, puxa uma mala inquieta e tira do seu interior um pacote de tabaco de enrolar e uma bolsa velha, que tem na frente um arco-íris estranho de loja marroquina. Da bolsa emerge uma pequeníssima caixa de cartolina e, de dentro da caixa, uma folha de papel muito frágil. Deita tabaco para cima da folha, enrola-a com ambas as mãos, lambe uma das margens e, quase por magia, nasce um cigarro. A rapariga tem um esboço de sorriso no rosto, lambe novamente o papel, depois um dos dedos, mete o cigarro na boca, roda-o com a língua, acende e fuma.
Entretanto começa a roer as unhas de ambas as mãos, passa o cigarro de um dedo para outro. Quando a beata deixa de minguar, a rapariga apaga o cigarro com força, esmaga-o no cinzeiro. E de repente, acontece algo verdadeiramente imprevisível: para meu grande espanto, a rapariga lambe a palma da mão inteira. Explico: põe a língua de fora, estica-a para os lados exibindo-a em toda a sua amplitude e lambe a mão dos três anéis, que ergue alta e muito aberta.
Descontrolo-me com aquela visão. Levanto-me sobressaltada, dirijo-me à rapariga: "O que é que está a fazer?". Ela olha-me de lado, quase indignada. Responde: "Estou a lavar-me!" e dobra-se sobre si mesma para lamber o seu próprio lombo.

Era evidentemente a primeira mulher-gata que eu conhecia. Uma mulher fantástica e uma gata extremamente limpa, as duas numa só. A partir desse dia invejei a rapariga que lambia os dez dedos das mãos. Por ela me fazer sentir realmente incompleta.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

O fiscal - Capítulo IV

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Por Ana Pessoa


Depois lembrou-se do que o trouxera ali e, antes que a mulher falasse outra vez, apressou-se com a acusação: "A senhora fala mau português!". A autora gargalhou da cozinha, onde começou a preparar um chá. A porta entreaberta deixava ver o seu riso não contido e o homem corou de raiva. Respondeu misteriosa: "Isso não existe, senhor fiscal!" e o homem desesperou com aquela afronta. Saltou no sofá como um sapo: "Como assim, senhora?" e a mulher retorquiu calmamente: "Não há mau nem bom português, senhor fiscal. A língua é de quem a fala!".
O fiscal cortou a conversa com um gesto próprio de maestro perante a orquestra e disparou num compasso acelerado apontando o dedo indicador para o tecto: "A senhora é uma assassina de palavras: diz fato com um "c" ao meio, escreve ótimo com um "p" ao meio, são tiros directos no coração das palavras!". A mulher lançava a cabeça para trás para que as gargalhadas saíssem fluidas. Depois regressou à sala com um tabuleiro dançando nos braços ao som das chávenas que batiam delicadas nos pires.
Estavam agora sentados frente a frente, ela igual ao sol (cabelos eriçados como raios e o corpo avolumado, muito convexo) e ele igual a uma lua quase nova, minguando ainda (cabelo a escorrer pela testa e a coluna dobrada para a frente, um pouco côncavo).
Ela disse quase maternal que não era criminosa, que o português tinha vestígios de uma língua antiga e concluiu sem mais explicações: "Mas os polícias não têm de saber latim, não é assim?". Enquanto o senhor fiscal barafustava dizendo que não era polícia, a senhora espantava-se com a sua nova frase rimada. O homem escreveu no seu bloco: "problemas graves de isolamento, diz que português é latim". Depois fechou o caderno com uma violência teatral e impôs-se: "Minha senhora, eu sou o fiscal de palavras!".
A mulher olhou-o como se o visse pela primeira vez e o homem assustou-se com aquele olhar, saltou novamente no sofá e perguntou rápido: "Que foi?". A mulher abriu muito os olhos e depois os braços (a chávena muito equilibrada na mão direita, o pires pousado na esquerda). "Senhor fiscal, acabo de descobrir a sua palavra!" e o homem, um pouco mais curvado do que antes, repetiu várias vezes: "Como é que é?".
A autora sorveu ruidosa o seu chá e disse como quem revela um milagre: "Desumbigar. O senhor fiscal precisa de se desumbigar!". O homem estava confuso, repetiu mais uma vez a sua pergunta e a mulher esclareceu cheia de poesia: "O senhor fiscal precisa de sair de dentro, de se abrir ao mundo, de destorcer o cordão umbilical, de subir do ventre até aos olhos, de saltar para fora".
Fez-se silêncio à excepção do chá que continuava a estalar nos lábios da senhora. A palavra estranha ao ouvido regressava ao tímpano do homem, ganhava volume na boca, tinha um sabor qualquer a infância. O fiscal constatou: "Essa palavra não existe!", mas a mulher encolheu os ombros despreocupada. "Agora que eu a disse, passa a existir!".
O homem saltou outra vez: estava indignado. Abanou a cabeça e o bloco de notas no ar e, enquanto abria o caderno, dizia ameaçador: "A senhora pode ir presa por isto!". Ordenou muito formal: "Nome completo e profissão" e a mulher obedeceu prontamente: "Maria Apalavrada, inventora de palavras.".
A mão do homem congelou no bloco de notas. O fiscal ironizou ainda: "Ai sim? E que palavras inventa a senhora?". "Todas as que não existem e deviam ser inventadas!", respondeu criminosa a autora. O verbo desumbigar reapareceu no ouvido do homem e ele desejou secretamente que a palavra existisse. A mulher achou que tinha ganho um cliente por isso discursou: "Invento e vendo palavras. É, de facto, um óptimo negócio porque as pessoas precisam de se exprimir e não têm palavras. Você precisava do verbo desumbigar para organizar o seu pensamento. "Desumbigar" é o seu verbo, senhor fiscal! Há uma palavra para cada um de nós!".
Quase sem querer o homem riu e ela riu com ele.
Só então o homem tirou o chapéu e a mulher brincou dizendo: "Um negócio de tirar o chapéu, não é, senhor fiscal?" e ele riu com aquela frase tão bem dita. De repente, o senhor endireitou as costas, era agora mais homem do que fiscal, e quis saber: "E a sua palavra, qual é?".
A mulher sorriu o seu melhor sorriso. "Eu também tenho um verbo: inversar! Preciso do inverso das palavras, de inventar versos, de inverter o pensamento. Toda eu sou versos invertidos!".
O homem recostou-se no sofá, já não saltava, as palavras ganhavam subitamente um outro sabor.
E foi assim que naquela tarde, o senhor fiscal e a inventora de palavras viram o inverso de um no outro e gostaram do que viram. Ele desumbigou e ela inversou, entre os dois havia um fio invisível de sílabas que os ligava.
No final da noite já não se sabia quem era quem, a língua de um era a língua do outro.
FIM

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Declaração

Quando o dia caiu inteiro e o mundo a espreitou através da janela, a rapariga fechou as persianas e os olhos para não o ver. Queria sentir-se sozinha e, pela primeira vez, disse: "Amo-te!". Era um sentimento estranho, até porque a declaração não era dirigida ao mundo nem à janela. Na verdade não era dirigida a ninguém, já que estava sozinha e queria realmente sentir-se só. A rapariga diria mais tarde que amar era um estado de espírito. Mas naquela altura não sabia disso e quis esquecer-se.
Abriu o frigorífico para comer o resto de qualquer coisa e por momentos assaltou-a a ideia de que amava aquele electrodoméstico (a porta cheia de ímanes, a pequena luz ao fundo, o frio sempre pálido, qualquer coisa com sabor a fresco). Era um frigorífico agradável ao toque e ela acariciou-o distraída como as grávidas fazem às barrigas. Claro que, quando desligou a luz do quarto se riu de si própria. Era evidente que não amava o frigorífico.
Antes de adormecer, pensou naquele sentimento de pertença e apercebeu-se de que amava simplesmente o regresso a casa. Que regressar tinha um certo toque de amor e dedicação. Que aquele electrodoméstico simbolizava esse regresso. Estava extasiada com a sua descoberta.
Dormiu toda a noite um sono profundo e na manhã seguinte escreveu uma declaração de amor.
"O teu corpo é para mim um regresso a casa". Afixou-a na porta do frigorífico, releu-a mil e uma vezes.
Claro que a declaração não era dirigida ao electrodoméstico. Na verdade, mais uma vez, não era dirigida a ninguém.
A rapariga sentiu subitamente uma enorme urgência em apaixonar-se e saiu de casa a correr. Tinha imensa pressa.
Era, de certa forma, um regresso a si própria.

Nota aos leitores assíduos: Agora sim, um regresso a sério!

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

A decoradora

O filho da decoradora tinha 9 anos quando disse à mãe: "Só agora é que percebi o que fazes.". Estavam a lanchar na cozinha, os dois a beber leite e a comer pão com manteiga. A mãe não percebeu logo a frase e o filho explicou: "Antes achava que decoravas mesmo as casas!".
A mãe engoliu o último gole de leite e esclareceu que era isso mesmo que ela fazia. O filho continuou: "Não, mas tu decoras no sentido de pôr bonito e eu achava que decoravas no sentido de decorar mesmo, como quem sabe a tabuada!". A mãe riu-se: "Então tu achavas que a mãe ia a casa das pessoas decorar a tabuada?". "Não, achava que ias a casa das pessoas memorizar a casa inteira para saberes tudo-tudo-tudo o que as pessoas têm lá dentro." A mãe riu-se mais ainda, abanava a cabeça com tal disparate. "Então, e de que serviria o meu trabalho?".
O miúdo encolheu os ombros e disparatou. Depois disse: "Às tantas fazia mais sentido seres decoradora da tabuada!" e a mãe divertia-se. O filho entusiasmou-se, tinha imensos projectos para a mãe, levantou os braços, disse quase num grito: "Podias ser assim uma espécie de psicóloga das casas! Entravas, decoravas o que as pessoas tinham lá dentro e depois debitavas tudo!".
A mãe arrumava os pratos no lava-loiças e repetiu atónita: "Psicóloga das casas?". O filho exclamou pela primeira vez um "evidentemente" e, de súbito, era como se já não tivesse 9 anos. A decoradora perguntou: "E o que faz a psicóloga das casas?". O filho fez uma cara feia, voltava a ter 9 anos. "Ó mãe! O mesmo que as psicólogas da cabeça. Vai lá dentro ver o que existe, para as pessoas saberem quem são!".
A mãe não disse nada.
Depois de lanchar, o filho foi brincar com os vizinhos e a decoradora afundou-se no sofá, afogou-se, fundiu-se. Era urgente olhar para a sua própria casa, contemplá-la, examiná-la, decorá-la. Intitulou-se psicóloga das casas e começou pela sua. Queria arrumar a casa toda para se conhecer um pouco.
Disse: "Antes de mais, sou mãe!" e começou pelo quarto do filho.
Era o início da decoração (no sentido da tabuada).

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Estado líquido

E ao ver o mar morria um pouco por nascer de outra forma, os olhos vacilavam nas ondas e a boca enchia-se de água. Sentia-se - por assim dizer - inteira e naquele dia, quis ser mar e foi desaguar na maré baixa, longínqua como os horizontes. Um erro de perspectiva e, ao esticar as mãos, os dedos pareciam dedilhar as ondas, as unhas crepitavam à superfície com a espuma. Os pés enterravam-se finalmente na água e as pernas eram longas, movediças, instáveis. Disse: "Sou mar!" e saboreou o último raio de sol no rosto. Depois dissolvera-se na maré, era agora um corpo em estado líquido. Ao provar a sua saliva, disse de si para si: "Sou salgada!". Um corpo dentro de outro corpo, sem limites, era uma parte do todo. De repente desejou que alguém a bebesse, quis ser o sabor salgado numa língua qualquer. Mas normalmente queria ser apenas sal, sonhava que era um grão no topo de uma salina, branca como os sonhos bons. De resto parecia reconciliada com o seu corpo em estado líquido. Era uma parte de mar, esquecia-se muitas vezes do corpo anterior a este. Quando tentava entender-se, dizia de si própria: "Sou o sal da água" e rebentava vaidosa com as ondas.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

O fiscal - Capítulo III

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Por Fábio Reynol

A mulher virou-se e foi à cozinha. Enfim o homem encontrara alguém que reconhecia e até respeitava o seu honroso cargo auto-proclamado de fiscal da língua portuguesa. Isso o fez lembrar de sua última diligência, na qual interpelou um padre pelo uso inadequado da palavra "mesmo" como pronome relativo. Sem delongas, ele entrara na sacristia logo após a missa e fora direto ao sacerdote:
- Desculpe-me, reverendo, mas um erro grosseiro foi cometido hoje em sua homilia.
- A que se refere? Virou-se o padre com ares de preocupação.
- Lembra-se de quando se referiu ao cálice do altar?
- Sim. O que o senhor tem contra o mesmo?
- É exatamente isso, "o mesmo" não é adequado. Na verdade, eu o considero um erro horroroso de estilo. Eu devo pedir que o senhor não use mais "o mesmo".
- Quer dizer que eu não posso usar o mesmo porque o senhor não gosta do estilo dele?
- É mais do que isso, reverendo. Ele faz parecer que o senhor é pouco versado na língua, compreende?
- O senhor está dizendo que o cálice que eu utilizo na liturgia faz as pessoas julgarem a minha educação, por isso eu não devo mais usar o mesmo?
- O senhor não entendeu, padre. Não é o cálice a questão, ele pode continuar, só peço que o senhor não use mais "o mesmo".
- Que cálice devo utilizar então?
O fiscal perdeu a paciência e as estribeiras e berrou com o funcionário de Deus:
- O MESMO, PADRE!
E o padre desceu das tamancas eclesiais:
- Ponha-se para fora daqui seu maluco de... As demais palavras do padre lhe escaparam da memória, talvez por serem totalmente inadequadas a um vocabulário sacerdotal. Enquanto o homem de Deus disparava ofensas contra o fiscal, o homem dos vocábulos foi arrastado para fora da igreja pelos braços do sacristão. Desde então ele decidiu apresentar suas credenciais de fiscal antes de interpelar qualquer outro infrator. Isso deveria lhe garantir um mínimo de respeito.
O tratamento que agora recebia da mulher era prova disso. Nunca havia sido recebido com tanta deferência desde que se aventurara nessa perigosa profissão. O espanto pela educada recepção e o flashback da humilhação na sacristia o fizeram distrair a ponto de só agora perceber o local onde estava. A sala parecia ter saído de um página de Eça de Queiroz. Uma cristaleira do século XIX com licoreiras coloridas parecia ser a peça mais nova do recinto. Em cima do móvel um galo de louça preto de crista vermelha fitava uma coleção de mais de vinte pratos ornamentais na parede oposta. Pesadas cortinas de veludo mantinham o sol quase completamente do lado de fora.
Sem tirar o traseiro do assento, o fiscal esticou o pescoço para os lados aproveintando-se da ausência momentânea da proprietária. Observou o ponto que mais lhe chamou a atenção e o anotou imediatamente em seu bloco: "Ausência de livros de qualquer espécie. Sem evidências de consultas freqüêntes à gramática, nem mesmo um mini-dicionário à vista. Possível biblioteca no andar superior (?)". Deparou-se de repente com uma foto antiga na parede de uma casa de campo em meio a um vinhedo, imaginou que lugar seria aquele e meteu novamente o bloco no bolso. (continua)

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Página 161

Perguntaram-me:
Qual é a frase que se encontra na 5.ª linha da página 161 do livro que andas a ler?
É que no cinzento de Bruxelas tudo acontece.
Admito: gosto destas correntes e fui a correr para casa ler!
E ao reler a frase da 5.ª linha da página 161, adorei-a um pouco mais do que antes.
É que gosto tanto dela que quase decidi não a partilhar convosco.
Até porque esta frase é um pouco complexa para a cortar: traz um travessão no ventre e ganha voz a meio.
Vai daí, decidi transcrever tudo, desde o final da 4.ª linha até ao final da 6.ª, para que a frase e a voz fossem completas:
"Já de porta fechada, tinha-a encarado - «Quero vê-la muito bem. Olhe para cá...»"
(Lídia Jorge, Combateremos a Sombra, D.Quixote, 2007)
Dita assim, esta frase é ainda mais estranha do que a pergunta.
Um pedido ("Olhe para cá") em forma de ordem, provavelmente de homem para mulher. Duas personagens à porta fechada, encarando-se e tratando-se por você. Faz-me querer chegar à última página ainda hoje!
Para que a corrente não acabe, pergunto a mais uns quantos.:
Cata, OrCa e Claudette, olhem para cá, qual é a frase que se encontra na 5.ª linha da página 161 do livro que andam a ler?

Nota aos leitores assíduos: vou nas asas dos livros para uma terra a cores e volto daqui a imensos voos.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

o silêncio habitado das coisas

Para ler de cima para baixo e de baixo para cima
(ou de outra forma qualquer).

asas de um silêncio livre
para saudar a noite cheia
aquele que um dia me deste
branco como as salinas
o tal silêncio do pássaro
que me pousas nas mãos
o silêncio
das fogueiras
que caminha
para o silêncio
de janelas abertas
tão cheias de ar e de tempo

o tal silêncio habitado das coisas

terça-feira, 30 de outubro de 2007

O fiscal - Capítulo II

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Por Ana Pessoa

A palavra autoria explodiu no ar como um fogo de artifício. A mulher gostava que a tratassem por autora e por isso respondeu prontamente "Sim, sou eu a autora!".
O fiscal não a ouvira muito bem porque entretanto a mulher resolvera desembaraçar-se da porta e havia trincos e chaves tilintando contra a madeira. As mãos da mulher eram cheias como balões mas certeiras no toque: em dois segundos estava escancarada a porta e a autora surgia inteira.
Dizia: "Aqui é tudo legal, senhor fiscal!" oferecendo o perfil ao homem para que ele entrasse. E enquanto ela se admirava com a sua frase rimada, ele estava ocupado em interpretar a autora (ainda nem tinha tirado o chapéu nem guardado o seu título de fiscal). Era difícil entender aquela mulher e o homem precipitou-se para o seu bloco de notas, onde escreveu: "má dicção". A mulher repetia "Tudo legal!" e o som do último compasso vinha de um lugar secreto – entre a ponta da língua e a dentição. Era fechado, misterioso, irreproduzível.
Já estavam na sala. A mulher não perdia tempo por o tempo ser dinheiro. Tinha chegado ao Brasil havia anos, morava na Rua Atlântica desde então e logo aprendera a lidar com os brasileiros: não podia falar-se muito com eles, eram demasiado conversadores para o que queriam dizer e a senhora aprendera a ouvir apenas as palavras essenciais dos seus discursos. Naquele caso: "fiscal".
Repetiu muito alto as duas frases do pedaço de papel ("De facto, um óptimo negócio. Compre.") e era como se o som viesse do bolso do homem, pois ele saltou assustado com as palavras da mulher. Não só na escrita mas também na fala, a senhora dizia "facto" com o fonema oclusivo "k" a meio. Estava realmente estupefacto mas, de repente, esqueceu-se deste fenómeno, pois a mulher dissera ainda: "Sente-se, senhor fiscal!". O homem derreteu devagar até ao sofá, vaidoso com o seu novo título de senhor à frente de fiscal, ensenhorando-se no seu lugar. O homem gostava da forma como a mulher dizia "senhor", a vogal vinha fechada e a última nota vibrava discreta, nem a mais nem a menos, um "r" verdadeiramente elegante, impossível, inimaginável.
(continua)

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Sempre em pé

Pois é, cheiro a chulé e nem tenho pé. Désolée, mas sou um sempre em pé! Tenho cara de chimpazé e só sei cantar o giroflé. Bebi muita água-pé e estou resvés para cair. Portanto, s'il vous plaît, saia mas é da frente que ainda leva um pontapé.
Muito gosto eu da Salomé, é mais formosa que um canapé.
Sim, c'est vrai: sou um homem de fé. Daí estar sempre em pé.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

O fiscal - Capítulo I

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Por Fábio Reynol

Reticente e incomodado foi o fiscal de palavras ter com a portuguesa que usava mal, segundo ele, o português. Muito mais incomodado do que reticente, a bem da verdade, a ponto de deixar as reticências ao largo para atravessar a Rua Atlântica a fim de tirar satisfações com a mulher. A pedra no sapato do homem era um pedaço de papel de pão no qual a mulher havia escrito: “De facto, um óptimo negócio. Compre.”
Eis a razão da hesitação do fiscal: ele não era o destinatário do bilhete. Esse fato o transformava num intrometido e o colocava na obrigação de explicar como o papel que não lhe dizia respeito havia parado em suas mãos. Seu dever de defender a boa língua portuguesa, no entanto, falava mais alto do que a vergonha de assumir a própria indiscrição.
Outro empecilho dessa empreitada era a sua bizarra profissão que, pelo simples fato de ela não ser reconhecida por ninguém com exceção dele próprio, era motivo de chacota e desdém por aqueles que eram interpelados por um dito fiscal de palavras. Mas quanto a isso, ele já estava acostumado e não seria esse o impedimento para cobrar o zelo esperado de uma mulher nascida no nobre berço da língua.
Abra-se um parêntese necessário. A nomeação de um fiscal de palavras se dá, naturalmente, a alguém que conheça a língua, mas principalmente a uma pessoa que acredite que terá autoridade sobre as demais para cobrar e ver cumprir o bom uso da palavra. Em outras palavras, um louco. Fechemos o parêntese.
Lá foi ele, chapéu na cabeça e prova do crime no bolso. Esta obtida de maneira vil e ilegal, como já frisado. Atravessou a Atlântica sem molhar os pés e bateu na porta da casa sentindo ares de uma autoridade policial. A porta entreabriu-se.
- O que deseja? Respondeu a própria suspeita colocando a cara na fresta.
- Minha senhora, eu sou fiscal de palavras da língua portuguesa. Disse ele mostrando uma folha amarela e surrada, a mesma que tinha sido carimbada em cartório e que havia sido rejeitada pela secretaria da Academia Brasileira de Letras e rechaçada pela Embaixada Portuguesa em Brasília, ambas as instituições se recusaram a dar mais combustível a tal insanidade.
- O que deseja? Repetiu a mulher sem se dar ao trabalho de ler o conteúdo da folha.
- Este bilhete é de sua autoria?
(continua)

Brasil-Portugal - Uma Relação de Língua

Caros leitores,
isto não é uma ficção. Escrevo-vos para anunciar que redescobri o caminho marítimo para o Brasil, onde conheci Fábio Reynol. No regresso a Portugal li o seu diário e, de repente, viajava a bordo de uma garrafa com textos dentro. Bebi desta garrafa muitos dias. E certa manhã atirei-a ao Tejo para que ela regressasse às mãos do Fábio. Ia com uma mensagem dentro.
Foi assim que a língua atravessou o oceano (de cá para lá e de lá para cá) e, quase sem querer, nasceu um texto escrito a quatro mãos: duas batem palmas ao som do samba, as outras duas bóiam no ar com o fado.
Este texto tem a forma de um mapa, chamámo-lo "folhetim" e demos-lhe um título: "O fiscal". Hoje abrimos a garrafa para comemorar. Segue o texto.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Generation gap

- Ai, que lindo! Que idade tem esta doçura?
- Fez agora 5 meses!
- Que fofinho! Tem uns olhos tão grandes!
- Sim, é verdade! São iguais aos do pai!
- Ai, que giro! Posso dar uma festinha?
- Pode, claro! Ele gosta!
- Ai sim? E não morde?
- Ai, que disparate!
- Que disparate, não! Já vi bichos mais pequenos a morder!
- Ó minha senhora, isto não é um cão, é uma criança!
- Ai sim?! Aaaahh, é que parece mesmo um cão!
- Um cão?! Mas desde quando é que as crianças são parecidas com cães?!
- Pois, realmente é estranho! O pai não será lobisomem?
- Olhe, não sei! Desculpe: tenho de sair nesta paragem.
- Está bem, não é preciso ladrar!
- Ladrar?! A senhora deve ser louca!
(A mulher vira as costas e sai do metro, empurrando o carrinho à sua frente. A primeira senhora vira-se para outra senhora qualquer.)
- Com um bebé nas mãos e nem sabe se o pai é lobisomem.
- Ai sim? Que horror!
- E ainda me chamou de louca!
- Credo! Grande cadela!
- Pode crer! Estamos mesmo num mundo cão!
- É verdade!
(Abanam as duas a cabeça.)

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Choque térmico

Sou um pouco mais feliz quando bebo chá em dias frios,
Principalmente se queimar a língua.
(O contraste atrás da pele desperta-me.)
Há qualquer coisa de artístico nisto.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Cotoveladas

Uma criança extraterrestre perguntou à mãe: "Se os humanos andam todos às cotoveladas, por que razão não lhes cortam os braços?" e a mãe explicou-lhe que cortar braços às espécies era contra natura. A criança extraterrestre fechou-se no quarto e passou o dia a catar seres humanos da cabeça. Guardava-os religiosamente num frasco e batia no vidro para os acordar. A criança observou os seres humanos durante semanas e verificou que andavam realmente sempre às cotoveladas. A criança extraterrestre pegou numa tesoura e cortou-lhes os braços. Durante dias os seres humanos pareciam mais normalizados, mas logo começaram a bater com a cabeça uns nos outros. A criança resolveu então cortar-lhes as cabeças.
Verificou que morriam.
A criança decidiu dedicar toda a vida àquela investigação e tornou-se num especialista em seres humanos.
Certo dia, quando a criança já era professor, escreveu um livro revelando a sua teoria. Anunciou: "Os seres humanos são cegos" e tinha provas. A comunidade científica exclamou: "Ooooohh" e começou a demonstrar verdadeiro interesse pelo estudo de seres humanos. Era realmente fascinante que uma espécie inteira fosse capaz de viver em sociedade sem ter a capacidade da visão.
Um caso único na história do Universo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

A metamorfose

No dia das mudanças meteu a casa inteira num caixote e fechou-o com fita-cola para garantir que a vida não saía. Disse: "Vou com a casa às costas" e pensou subitamente que era um caracol. Sentia-se lento e elástico como os relógios de Dalí, tudo era longínquo, enorme, inalcançável. Rastejou até à rua e apontou as antenas para cima atento aos pormenores da cidade. Era uma despedida triste, o tempo desacelerava um pouco mais, o corpo diminuía até ao chão. Desceu vagarosamente a rua com a carapaça às costas. Disse para o caixote: "Onde eu acabo, começas tu! Ou vice-versa.". A sua casa era parte do seu pulmão por isso, a certa altura, enfiou-se dentro do caixote. Aí ficou muito tempo com os seus objectos, era uma viagem bonita ao fundo do ser. Prometeu que sairia um dia da sua carapaça, quando o sol fosse quente e a rua seca. Por enquanto só queria estar a sós com a sua casa.
Depois, numa noite igual às outras, lembrou-se que era hermafrodita e ficou contente por isso. A vida tornava-se de repente mais interessante.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Costa dos ciclopes

Veio dar à costa uma pescada ignota e bem formosa. Vinha cheia de areia e deitada de costas a pobre pescada. (Estava quase morta: a boca tosca, a língua solta e os olhos abertos para a estrada). Já era tarde posta quando a bruxa maldisposta veio ver a tal pescada. E nessa altura já estava a fogueira acesa e a sereia cortada às postas. Disse a bruxa indisposta: "O belo para uns é comestível para outros" e de repente ficou contente e bem-disposta por achar que uma bruxa feia pudesse ser sereia para os ciclopes daquela encosta. E então, porque não?, endireitou as costas e comeu muito composta a posta da pescada ignota.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O texto e quem escrevia

Disse o texto a quem escrevia: "Não me escreverás!" e quem escrevia bateu no texto com força dizendo: "Cala-te!". Com o embate, o texto saltou da cabeça e foi aterrar na boca. Quem escrevia tossiu engasgado e levou as mãos aos lábios sentindo o peso do texto na língua. Disse: "Tu nem sequer existes!" e o texto mexeu-se inquieto por dentro. Quem escrevia estava muito parado, quase suspenso sobre a folha tão branca como os voos de infância e, ao soltarem-se, era quem escrevia que caía vagaroso e não a folha, de tal modo impenetrável que não se rasgaria com o gesto de uma mão nem de duas nem de mil. "Pára!", gritou quem escrevia e o texto estava agora na ponta da língua, à beira do abismo, queria falar mas tinha medo de morrer na folha. Calaram-se os dois. Saiu uma palavra dos lábios. O resto do texto tentou puxá-la para dentro da boca, mas ela seguiu corajosa para o mundo. Pousou nas maçãs do rosto e subiu muito réptil, letra a letra. Havia um buraco misterioso e a palavra estalou no ar em salto mortal desaparecendo no ouvido. Quem escrevia ouviu: "Serpente" e endireitou as costas como as serpentes se endireitam para o ataque. A imagem daquele corpo esguio hipnotizava quem escrevia: viu na folha branca o corpo maleável da cobra, a língua repetitiva como as marés, os olhos poderosos em forma de luas. Disse a serpente: "Não me escreverás!" e quem escrevia obedeceu. No sono quase acordado quis desculpar-se. Disse: "Há textos que ficam por dentro" e, ao engolir a saliva, engoliu o texto inteiro que trazia na ponta da língua. Só a serpente ficou no ouvido, as oito letras muito juntas e flexíveis dormindo contra o tímpano. Naquela noite a palavra maleável falou outras palavras e no ouvido nasceram outras letras. Quem escrevia acordou e escreveu o que a serpente lhe ditava.

Era, por assim dizer, a corrupção de quem escrevia, a perdição, a salvação.

O pecado original da escrita.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

O poço

É certo que fomos de mão dada ao fundo do poço e vimos as trevas (ou talvez tenhamos antes cegado e nesse caso não vimos nada, o que vai dar ao mesmo, porque no fundo do poço o cenário é negro e a vida também). Um dia também nós, os mensageiros dos deuses, fomos negros, levámos outros a enterrar no poço e descemos com eles até a um certo degrau em que a tocha morria num suspiro. Peço-te: não esqueças as tuas origens, volta comigo àquele poço, anda sentar-te naquele degrau. Fomos e viemos carregando corpos de outros às costas. Pergunto: o que seria da vida e da morte sem nós, os caminheiros? Orgulha-te de quem és, meu amor, ninguém é superior a isto, nem mesmo os deuses (eles não sabem o que é a vida nem a morte). Lembro-me do deus das trevas, que nos deu a provar o néctar do fim do mundo. Lembras-te? A mão de Hades à beira dos nossos lábios e nós a morrer um pouco mais do que antes. Repara que essa espécie de morte nos deu outra espécie de luz. Confesso: fico grata à morte por isso. Lembra-te que saímos sempre do poço à força destes braços, eu e tu empoleirados nas costas dos que ficavam no fundo, os embriagados de morte. Somos um pouco mais vivos do que os vivos graças a estes braços, a este poço, a esta morte. Lembra-te dos que nasceram no poço e nunca saíram de lá por não conhecerem o segredo da vida, os filhos dos mortos que corriam atrás de nós pelas escadas. Tinham tanta sede de vida que nos comeriam, se alguma vez nos tocassem. Por tudo isto te digo que somos nós os homens verdadeiramente felizes. Estou grata à vida por poder saborear o teu beijo, mas os vivos não apreciam a beleza das coisas, são como os filhos em berços de ouro, incapazes de dar valor ao próprio ouro. (É trágico ser-se vivo.) Escuta a melodia do nosso andar, pé ante pé, somos tão serenos e sabedores. O lugar da paz está aqui, entre um mundo e o outro, tenho a certeza. Por isso te digo: "Senta-te comigo neste degrau!", a meio do poço. Erguemos a cabeça e faz-se luz, baixamo-la e é noite escura, olhamos em frente e somos apenas. Admite: Somos felizes. No final, depois de tudo isto, quando não houver lugar para a vida nem para a morte, verás como nós, os mortos-vivos, subiremos este poço, pé ante pé, serenos e sabedores como dantes. Será uma outra espécie de morte. Uma outra espécie de vida.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Dores de crescimento

Chorava convulsivamente porque tinha feridas no corpo e nódoas sempre negras. (Esclareça-se: ninguém lhe fizera mal.) Na verdade todos a tratavam demasiado bem e nem mesmo em criança ela caía ao chão. O pai dizia que tal se devia ao facto de a pequena andar sempre ao colo da mãe; a mãe dizia que não, que a pequena tinha um equilíbrio de rã, as pernas muito assertivas e os pés muito estáveis.
A adolescente dançava ballet desde cedo e só tinha fatos que lhe cobrissem as costas por causa das manchas horríveis de alergias inventadas. Quando lhe apareceu o primeiro pêlo negro na púbis, chorou horrorizada em frente ao espelho e arrancou-o com uma pinça. Tal era a sua obsessão que, ao lhe perguntarem o que queria ser quando fosse grande, em vez de bailarina, a menina respondeu "perfeita".
Certa vez diagnosticaram-lhe uma arritmia no coração e ela achou que o seu corpo já não tinha música. Não queria ir ao ballet e logo a seguir deixou de dançar. Depois, por as borbulhas lhe cobrirem o rosto e as ancas terem inchado, declarou que não iria mais à escola.
A mãe desesperou e levou-a a uma psicóloga com dentes amarelos. A adolescente mal falava e não ouvia, não gostava de ler nem de pintar nem de escrever e, agora, nem mesmo de dançar. Por isso, a psicóloga ofereceu-lhe um bilhete para uma exposição dizendo: "Aqui está a tua cura!". A rapariga queria curar-se da sua falta de perfeição, por isso, nesse dia e em segredo, foi ao centro cultural.
Nas paredes havia quadros da Frida Kahlo e a adolescente, ao ver as feridas de Frida, calou as suas. Viu os auto-retratos e auto-reflectiu. Havia pregos no corpo, uma coluna vertebral de ferro, camas de hospital. A rapariga saiu da exposição muito calada, comprou um poster do quadro "A Coluna Quebrada", afixou-o no quarto e não contou a ninguém o que vira.
Nessa noite a rapariga sonhou com o corpo enrolado em gesso, tão igual ao dos egípcios depois da morte: queria gritar e a sua boca mumificada era muda, queria fugir e os seus pés de anfíbio desequilibravam-se, caíam, nunca se levantavam. Ao acordar libertou-se dos lençóis e da roupa como quem sacode insectos, abanou o corpo e assim ficou muito tempo, completamente nua e sentada no chão.
De repente, assaltou-a um pensamento. Repetiu: "As feridas definem-nos!". Ouviu por dentro o coração sem ritmo e entendeu-o.
A adolescente concluiu: "Preciso de auto-retratar-me!" e ficou nua todo o dia, à excepção dos sapatos de ballet que entretanto calçara. Dançou sem música: deu saltos impossíveis e pousava certeira no chão, estava quase sempre em pontas, cheia de pontaria. Ao desequilibrar-se a primeira vez riu-se: era preciso conhecer os limites. Por isso, no dia seguinte, quando a psicóloga perguntou como se sentia, só a adolescente percebeu o que disse:
"Mal posso esperar por cair!".

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Dança africana

A negra bate com o pé no chão e nasce poeira dos seus pés descalços, nasce vida e ar (na verdade nascemos todos juntos por baixo dos pés da negra, muito pequenos, insignificantes, desnecessários). Batem batuques e já não sabemos quem chegou primeiro, se o pé da negra ou os batuques porque estão em perfeita sintonia. É enorme esta negra mas é como se não fosse, pois a sua leveza é própria dos que habitam as nuvens. Fazemos-lhe uma vénia, daí ela parecer maior ainda. Bate com o pé no chão e o outro pé bate de seguida, muito irmãos, e o corpo vibra com as ondas invisíveis dos batuques. A negra abana avolumada as ancas aveludadas, bem-aventuradas e sai-lhe música do ventre. É a própria terra que canta através dela e o que parecia um caos é agora ordem, por o seu corpo ser a origem de todas as coisas. A negra tem um tambor por dentro e quando bate o pé no chão, temos a certeza de que esse é o primeiro batuque do mundo, o primeiro som, a palavra de ordem. Lembramo-nos: "No princípio era o Verbo" e vemos nesta negra o corpo e a alma do início. Queremos comunicar. Por isso levantamo-nos e batemos com o pé no chão. A negra leva-nos pela mão e estamos em perfeita sintonia. Pensamos: "Um pouco mais de inocência para sermos autênticos" e tentamos esquecer-nos de nós próprios. A certa altura conseguimos e abrimos os braços para o mundo. Somos apenas poeira por baixo dos pés da negra.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Espaço

Nesta noite somos enormes. Esticamos a cabeça e temos nuvens agarradas ao cabelo, damos um passo e estamos fora do mundo. Arrancas a lua do céu e ofereces-ma dizendo: "Para que não te percas nesta noite escura!". Faço um colar de meteoritos e meto a lua ao centro. És tu que prendes a fita à volta do meu pescoço (é um colar lindíssimo). Queremos ir para longe, por isso damos cinco passos e estamos em Neptuno, onde a noite é fria e azul. Falamos sobre o mar e os teus olhos são agora água, neles mergulho feita sereia. Digo: "Tenho frio" e levas-me ao colo até Vénus. Sentamo-nos de frente para o Sol e as pernas baloiçam no espaço. Chamas-me: "Princesa vermelha" e a tua boca pega fogo. Toco ao de leve na Terra e ela roda sobre si própria muito rápido. Rimo-nos do movimento e rodamo-la um pouco mais. Esticas os braços enormes e pegas em Saturno. Exclamo: "Que bonito!". Despe-lo com cuidado e pões-me o seu anel no dedo. Gritas: "O universo é nosso!", mas não temos pressa de partir. Guardamos os planetas e as pequenas luas nos bolsos e procuramos um espaço vazio. Damos cinco passos e estamos num sítio deserto. Aí ficamos muito tempo. A jogar ao berlinde à luz das estrelas.


A propósito do poema de Jorge de Sousa Braga:
"Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno.
E quase ia morrendo com o receio de que ele não te coubesse no dedo."

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Arlequim

Cheirava a jasmim o meu primeiro amor e tinha um fato de muitas cores. Declamava: "Morra o Dantas! Morra!" e quando dizia: "Pim!", eu ria até ao fim do dia. Cantávamos juntos a canção do alecrim e os dias eram assim, brancos e macios como as mãos de cetim do meu arlequim.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Espécie de peça de teatro em 5 voos – 5.º voo

Qualquer coisa se passou no dia anterior porque hoje, às oito e meia, já se tratam por tu e sabem o nome um do outro. No céu estrelado dos olhos adivinha-se o sonho de cada um: no sonho dele o elevador encrava, ficam dias e noites presos no elevador que é entretanto a gruta dos ladrões, onde Ali Babá encontrara a lâmpada mágica. No sonho dela o elevador não pára de subir, sobe pelo céu como um balão, atravessa as nuvens e de repente é uma nave espacial em viagem.
Talvez ele saiba do sonho dela pois, quando o elevador chega ("plim"), ele diz: "Lá vamos nós de viagem!".
(Diz o público: "Abre-te, Sésamo" e as cortinas abrem-se.)
Ela encolhe os ombros e entra no elevador. Responde: "É uma viagem curta!" e ele encurta-a ainda mais: sai imediatamente do elevador. As portas vão-se fechando, mas ela sai a tempo. Ri o tal riso primaveril de passarinho na copa da árvore e canta: "Então!". Ele anuncia: "Sei o mapa de cor!" e ela segue-o divertida.
(Indicações cénicas: a escada de vários lances do 3.º voo aparece devagar no fundo do palco, anda sobre rodas ou emerge do chão – fica ao critério do encenador.)
Eles abrem a porta das escadas e é como se outro mundo se abrisse. Há um silêncio com eco e caminhos por descobrir. Chamam às escadas montanha e partem. Inventam histórias próprias da Disney, fazem caras assustadoras de piratas, têm vozes de monstros e imitam gritos de animais que se repetem pelas escadas. Chegam ofegantes ao 5.º andar. Ele diz: "Isto assim não custa nada!" e ela ri com dificuldade.
Olham para o céu estrelado um do outro e despedem-se cordialmente. Ela abre a porta e ele fica a vê-la. Entre um mundo e o outro, ela diz: "Não digas a ninguém onde ficam as escadas!" e agora é ele que ri. Pensa: "Fecha-te, Sésamo!" e ela larga a porta. Por causa das leis da física há uma explosão nas escadas e a porta fecha-se em queda livre.
Eles estão agora frente a frente e abrem as asas.
Quando o voo acaba, começa o beijo. Mas nós só ouvimos o eco.
Ele e ela desaparecem de cena como que por milagre e as cortinas voam.
Fim do 5.º voo. Início de tudo o resto.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Espécie de peça de teatro em 5 voos – 4.º Voo

Por volta das seis, ele cansa-se e olha para o relógio. Decide que é hora de ir para casa, desliga o computador, veste o casaco e sai. Chama o elevador e quando a pequena luz acende, faz-se luz na sua cabeça: pensa na colega do 5.º andar e é como se o dia começasse. Esfrega as mãos como Ali Babá esfrega a lâmpada mágica e pede um desejo. O elevador diz "plim" como quem cede. Ele responde: "Abre-te, Sésamo!" e as portas abrem.
(As cortinas também.)
O elevador passa sem parar no 5.º andar e ele culpa o génio pelo seu mau génio. Tem uma ideia que considera genial e carrega apressado no 3. O elevador pára no 3.º andar. Alguns colegas entram e ele sai com dificuldade.
(Voo interrompido.)
Chama o elevador, mas desta vez carrega na seta que aponta para cima e não na que aponta para baixo. Pragueja contra Sésamo por o elevador tardar (na hora de ponta para descer, era uma má estratégia querer subir). De repente, ouve-se "plim" e ele entra. Carrega no 5 e murmura irritado: "Fecha-te, Sésamo!". As portas obedecem.
O elevador aterra no 5.º e ele ordena ao génio que a colega esteja atrás das portas. Ela não está e ele desespera. Sai do elevador e espera. Decide: 10 minutos.
Passam-se 11 e a colega não vem. Ele interpreta: já se foi embora, e abana a cabeça desiludido. Chama o elevador e insulta o génio da lâmpada mágica com os nomes mais ridículos que conhece.
O elevador diz "plim" e ele nem pia, desce com as mãos nos bolsos e nada por dentro. As portas abrem no rés-do-chão e o seu queixo cai no chão: a colega surge atrás das portas vagarosas. Ele desconfia que estivesse à sua espera, mas o seu pensamento é também ele vagaroso e ela interrompe-o sem querer. Exclama: "Afinal não viemos no mesmo!" e o génio dá-lhe uma frase rápida. Ele agradece e usa-a: "Até pensei que você tivesse vindo pelas escadas!". Ela diz teatral: "Nunca!" e eles riem-se em uníssono.
O génio desaparece no fumo do cigarro. Ele e ela vão a conversar pela rua, mas infelizmente não ouvimos nada pois entretanto as portas do elevador fecham-se e as cortinas também.
Fim do 4.º voo.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Espécie de peça de teatro em 5 voos – 3.º voo

Estamos pouco depois das três e o alarme toca. Ele diz um palavrão redondo e abana a cabeça. Sempre achou aqueles exercícios uma estupidez mas obedece ao sistema: pega no casaco e dirige-se para as escadas.
(Abrem-se as cortinas. No centro do palco há uma escada de vários lances numa estrutura impossível de metal, qual Torre Eiffel, por onde descem dezenas de figurantes cabisbaixos, de casacos postos ao ombro e olhos postos no chão, numa marcha disciplinada, pé ante pé, degrau a degrau.)
No lance de escadas abaixo, ele reconhece o cocuruto da colega do 5.º andar que, por milagre, olha para cima. Sorriem. Ela diz quase num grito: "Afinal também nos encontramos aqui!".
Já lá em baixo, ele puxa de um cigarro e tudo se torna mais misterioso atrás do fumo. Diz: "Pelo menos já sabemos onde ficam as escadas!" e ela ri um riso primaveril de passarinho na copa da árvore. Falam de elevadores, de arranha-céus, de Nova Iorque, sem nunca perguntarem nada sobre o outro.
Regressam no elevador com mais oito pessoas.
(Início do 3.º voo.)
Ele diz: "Podíamos ter ido pelas escadas!" e ela responde: "Mas nós não sabemos onde ficam!". Riem-se sincronizados. O elevador pára no 1.º e sai uma pessoa de cena. Ele sugere: "Podíamos perguntar a alguém!" e ela confessa: "Não me oriento neste edifício!". O elevador pára no 2.º e saem duas pessoas. "Já sei!", exclama ele, "Roubamos a planta do edifício aos seguranças!" e ela encolhe os ombros: "Sou péssima a ler mapas!". Ele oferece-se: "Eu levo-a!" e ela aceita. Pára no 3.º e saem três pessoas. No 4.º andar, por todos os desejos se tornarem realidade, já vão sozinhos. No 5.º ela diz: "Até amanhã!" e ele responde confiante: "Não, não! Ainda nos encontramos mais logo!". Ela diz que sim e, mais uma vez, sorri.
O elevador pousa no 6.º e ele vem a assobiar enquanto recolhe as asas.
(As cortinas vão-se fechando ao mesmo tempo.)

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Espécie de peça de teatro em 5 voos – 2.º voo

A meio do dia, já meio cansado, decide que tem fome. Levanta-se, veste o casaco e sai do escritório. Chama o elevador. Não espera quase nada. O voo começa mas é subitamente interrompido no 5.º andar. Ele pede um desejo e as portas do elevador abrem-se.
(As cortinas também.)
Entra a tal colega do 5.º andar com a sua gabardina simpática e ele agradece ao céu e à terra por isso. Ela diz descomprometida: "Cá nos encontramos!" e ele, por estar com fome, parte imediatamente para a ofensiva: "Coisa que não aconteceria, se tivesse ido pelas escadas!". Ela ri-se com vontade e ele faz-lhe a vontade: ri-se por ela se rir. O elevador pára no 2.º.
Ele e ela entreolham-se surpreendidos: acaba de entrar o tal senhor mal-disposto e eles mastigam silenciosos uma gargalhada. O elevador chega ao rés-do-chão e o colega carrancudo sai de cena. Ela deseja um "Bom apetite!" e ele dá-lhe passagem. Nessa altura, por a fome ser tudo, arrisca tudo. Diz: "Olhe, quando voltar não vá pelas escadas!". Ela lança a cabeça para trás soltando uma risada sonora e ele grita por dentro: "Quem não arrisca, não petisca!". As portas do elevador fecham-se.
(As cortinas também.)
Fim do 2.º voo.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Espécie de peça de teatro em 5 voos – 1.º voo

Nota aos espectadores: se a peça não for grande coisa,
voltem para a semana que isto só acaba por essa altura.

Chega ao trabalho um pouco mais cedo do que os outros. Sai da garagem, sobe a pé até ao rés-do-chão e entra no edifício. Chama o elevador. Enquanto espera, reconhece ao longe os passos da colega do 5.º andar e fica nervoso. Dizem em coro: "Bom dia!", ele mais alto que ela. As portas do elevador abrem-se.
(As cortinas também.)
Ele dá-lhe passagem para entrar no elevador, mas precipita-se de seguida: carrega no 5 e no 6 ao mesmo tempo e a colega olha-o surpreendida por ele saber o seu andar. Sobem muito bem sozinhos, mas o elevador pára logo no 1.º. Entra um colega que murmura: "Bom dia!" como quem deseja que seja mau. Carrega no 2 e o elevador pára outra vez. Quando as portas se voltam a fechar, a colega comenta: "Há pessoas que não sabem usar as escadas!" e ele ri-se mais do que necessário.
Voam sem parar no 3.º. Nem no 4.º.
No último segundo, ele lembra-se de uma resposta. Arrisca: "Se calhar não sabem onde ficam!". Ela sorri cordialmente e despede-se. O elevador aterra finalmente no 6.º e ele regressa ao mundo. As portas fecham-se.
(As cortinas também.)

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Engate

A gata estica o nariz. Diz: "Aqui há gato", olha para o lado e lá vem o gato todo eriçado. "Tens olhos de gata", diz o gato enquanto penteia o bigodaço e a gata desilude-se com aquele dizer tão parvo. O gato pavoneia-se desinteressado e a gata espanta-se, pois acha o andar daquele gato diferente do de toda a gente. De repente repara que ele está calçado e conclui que o gato não é dali. Pergunta: "De onde vem?" e o outro diz com desdém: "Sou maltês". A gata ironiza: "Logo, toca piano e fala francês". O gato escaldado toca-lhe de raspão no tornozelo e, pelo pêlo, adivinha: "A menina é persa", mas a gata desconversa e vai cheia de pressa para outro lado. Diz o gato das botas todo lambe-botas, de costas direitas: "Que princesa tão perfeita!" e a gata mia e fica à espreita. É afinal a gata borralheira e nunca ninguém a trata assim. Insiste o gato: "Cheiras a alecrim" e a gata cheia de cio agora só diz que sim. E naquele telhado, onde havia dois, há agora um só gato com duas línguas de gato. Quebra-se então o feitiço e a gata ri satisfeita. A princesa perfeita é agora Cat Woman e agarra o gato pelo bigodaço. Diz-lhe: "Faço de ti gato-sapato!" e Dona Chica bem que se assustou com o berro que o gato deu: "Miau!".

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

A nadadora

Tinha um sonho feito de água que era ouvir o hino nacional no pódio dos jogos olímpicos. Nadava cinco horas por dia (cinquenta metros para lá, cinquenta metros para cá) e no final o treinador batia-lhe nas costas largas. Tinha ganho medalhas em campeonatos regionais e exibia-se nas horas livres em estilo mariposa, qual monstro marinho.
O sonho era só um sonho, por isso a nadadora não chorou quando percebeu que não ia aos jogos olímpicos. Casou nem nova nem velha e teve duas filhas. Dava aulas de natação a crianças, pegava-as ao colo, perguntava-lhes pelas notas. Os miúdos faziam desenhos da nadadora debaixo de água e entregavam-nos timidamente. Isso bastava para a nadadora boiar de felicidade.
No final do dia, quando chegava a casa, os gritos das crianças na piscina ainda ecoavam na cabeça e a nadadora fechava a porta da cozinha para não ouvir as vozes das filhas. Era uma cozinheira certeira no tempero, cheirava os vapores com a ponta do nariz e mexia a colher de pau assertiva. O marido chegava a casa quando o último prato pousava na mesa por a mulher trabalhar ao segundo e viver a vida a crawl, disciplinada e rotineira, de corpo contra a água.
Certo dia, as filhas foram juntas à festa de anos de um vizinho e o marido estava num jantar da empresa, para o qual a mulher não tinha sido convidada. A nadadora sentou-se em frente à televisão mas não a ligou por os gritos dos miúdos ainda ecoarem na cabeça. Nesse momento, a nadadora teve uma ideia e correu para a casa de banho. Levou um relógio consigo para não perder o rumo e trancou a porta.
Encheu a banheira. Verificava de segundo em segundo a temperatura da água com a ponta dos dedos e finalmente, a nadadora saltou nua para a piscina. Aí ficou várias horas, a cabeça debaixo da água e os olhos abertos para o tecto. Vinha várias vezes buscar ar à superfície e voltava de seguida para o fundo do poço. Debaixo de água o silêncio era tão profundo que ela se ouvia por dentro.
Desenhou mentalmente cinquenta metros e percorreu-os a bruços. Para que o sonho não tivesse fim, pensou numa piscina sem fim. Lembrou-se da aula de filosofia em que se falou de Zenão, o filósofo do infinito.
Pensou como ele.
Para nadar metade da piscina, teria de nadar metade da metade da piscina. Fez contas e adivinhou "Doze vírgula cinco metros". Depois calculou a metade da metade da metade e assim por diante até concluir que a piscina era infinitamente divisível: de facto não havia um fim para aquela banheira e o corpo batalhava contra o cansaço.
Crescia um mundo paralelo debaixo de água e a nadadora agradeceu à matemática por isso. Estava tão cansada que adormeceu antes de a família chegar a casa. E nessa noite teve um sonho feito de água.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Setembro

Tenho frio
e lembro-me
daquele Setembro de sempre
quando o vento varria o tempo
da calçada.

Por dentro
era madrugada
e só as folhas contavam segredos.

Ao longe
um sol
alinhado ao centro

e a tristeza era bem-vinda
e mais bonita
por ser Setembro
e madrugada.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Contemplação

O quadro ocupava várias paredes, mas naquela altura isso era irrelevante porque as paredes deixavam de existir e o mundo era agora o quadro. As telas gigantes representavam um jardim e era tão bom olhar para elas, que a mulher se lembrou do Jardim do Éden. A arte emocionava-a e ela disse bem alto: "A mão de Deus nas coisas". A mulher chamou-se a si própria Eva e atravessou o quadro. Primeiro com a mão, depois um pé, depois o outro.
Tinha chovido naquela manhã, adivinhou, pois a relva estava húmida e as últimas gotas desequilibravam-se das árvores. A mulher estava agora nua e o seu corpo era tão branco que mais parecia uma estátua em movimento. Afastou a cortina de um chorão e sentou-se à beira do lago: era bom ouvir a água pousar nas margens.
Horas mais tarde sentiu-se sozinha e foi então que pensou no primeiro homem. Imaginou-o nu e branco como ela e antecipou o primeiro beijo. Depois levantou-se e encheu os pulmões de ar. Gritou: Adão!, mas nesse momento caiu sobre o jardim uma nuvem enorme e a mulher calou-se. A sombra ia descendo na sua direcção e Eva dirigiu-se a ela sem medo. Finalmente reconheceu cinco dedos enormes que, acariciando-lhe primeiro o rosto, a pegaram ao colo. A mão de Deus nas coisas.
Neste caso, era a mão do pintor. Vinha ver o seu jardim de tempos a tempos e gostava de colher os seus frutos. Pintor e obra olharam-se com demora, ele enorme e ela muito pequena.
Quem os vê, pensa: Um não existe sem o outro.
Mais uma história de amor.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Conto infantil para adultos: Cinderela sem pés nem cabeça

A Cinderela foi à praia. A água estava fria, mas mesmo assim a Cinderela mergulhou e logo de seguida perdeu o pé. Assustada, começou a procurar o seu pé pois sem ele não podia andar. Nisto apareceu a raia madrinha que lhe explicou o feitiço: "Não tens pé porque tens uma barbatana. Ou seja, hoje és sereia em vez de Cinderela".
A Cinderela feita sereia achou aquele discurso uma estupidez e quis saber qual o sentido daquele feitiço. A raia madrinha contou-lhe que, durante aquela tarde, passaria um marinheiro que se apaixonaria por ela. A Cinderela agora sereia riu-se. Na história que lhe cabia só havia príncipes e sapatos, por isso ignorou a raia madrinha e foi antes passear para o fundo do mar, que era realmente bonito. Tão bonito, tão bonito, que a Cinderela sereia se distraiu com as horas e, à meia-noite certinha, a sereia virou Cinderela. Uma vez que não conseguia respirar no fundo do mar, começou a nadar em direcção à superfície, mas infelizmente morreu a meio do caminho. Não tinha pés para tanto.
A raia madrinha chorou de desgosto mas o marinheiro não. Na história que lhe cabia não havia Cinderelas. Apenas sereias e a ilha dos amores.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Gesto repetido

Ao meu lado vem sentada uma rapariga e classifico-a de estranha. Senta-se muito direita e sacode a cabeça repetidamente com movimentos curtos, violentos, intermitentes. Traz o pescoço sempre tenso, a cabeça presa, prensada, pesada. Ao mesmo tempo vem a ler qualquer coisa. Não olho directamente para ela mas interesso-me pelo gesto repetido.
Interpreto.
Talvez corra no seu cérebro um pensamento eléctrico e haja um curto-circuito a meio que provoque pequenos choques na cabeça. Ou um qualquer brainstorming de electrões ferozes, ou uma frase negativa a circular no sangue, ou até mesmo um mandamento. Não matarás, não cobiçarás, não falarás, não pensarás em coisas boas.
A testa enrugada da rapariga lembra-me os rochedos do Cabo da Roca, imponentes, impenetráveis, inultrapassáveis. Os olhos movem-se irrequietos: abrem, fecham, semicerram. De novo sacode a cabeça. Adivinho sofrimento e tenho pena da rapariga. Se tivesse alguma fé que não somente a fé na sorte, rezaria por ela, acenderia uma vela, sacrificaria uma virgem, uma vaca, qualquer coisa.
Ganho coragem e resolvo espreitar o livro que lê (talvez a leitura seja a culpada pelo gesto repetido, todos nós vibramos quando lemos). Vejo linhas, símbolos e a única expressão inteligível é "molto fortíssimo". Reconheço uma pauta de música e vem-me à cabeça o solfejo, a professorinha ao piano e nós muito pequenos de flauta da boca, a clave de sol que ninguém sabia desenhar.
A rapariga apanha-me em flagrante e, de repente, é como se não falássemos a mesma língua. Finjo-me interessada: "É bonita a música?" e ela ri-se surpreendida. Diz que sim com a cabeça e não tem mais palavras para mim. Toda ela é melodia, daí o curto-circuito no corpo.
Interrompo novamente: "É uma música triste?" e ela olha-me como se nunca tivesse pensado nisso. Perdoo-a: "Sente, logo não pensa". Resolve dizer que não e fecha o livro. Já não sacode a cabeça e é nessa altura que vejo a caixa negra aos seus pés: parece resistente e tem a forma de um violino.
Dá-se um curto-circuito na minha cabeça. Não falamos a mesma língua, por isso não digo nada. Ouço um violino por dentro e sofro. Ordeno a mim própria: Não pensarás. Na paragem seguinte, a rapariga pega na caixa e sai do metro. Traz o livro debaixo do braço e parece-me feliz. Concluo: sofre mas não sabe.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Rinofaringite

Ouviu os ouvidos estalarem como balões e uma palavra perdida no ar. Repetiu de si para si: "Rinofaringite" e achou o título adequado à doença. Falaram-lhe do período de incubação e, nessa noite, ela sonhou com cubos. De manhã doíam-lhe os olhos e viu 54 quadrados de cores diferentes. Contou-os várias vezes como quem conta carneirinhos nas noites de insónia. Eram cor-de-rosa, cor-de-laranja, cor-de-céu, cor-de-árvore, cor-de-sol, cor-de-nada, tinham uma textura lisa e simpática, tocava-se-lhes e tinha-se frio. "São feitos de azulejo", concluiu. Nesse momento percebeu que o seu quarto era um cubo mágico e rodou-o incansavelmente à procura da solução. Depois tossiu e a boca jorrou quadrados multicolores. Na terceira noite perdeu a conta aos dias por os algarismos terem saltado dos lábios para o espaço. Olhava para os dedos e não sabia quantos tinha.
Certo dia saltaram-lhe da boca todas as letras possíveis e não sobrou uma palavra, uma sílaba, um som. As cordas vocais calaram-se em estado de choque e ela imaginou o vento para que o silêncio não fosse total. Finalmente, pela primeira vez em dias, levantou-se. Dobrou-se sobre si própria e da boca saíram cubos. De repente, vomitou a própria alma. Saiu cúbica e maleável com a flexibilidade impossível das serpentes. O corpo reconheceu a alma, era o cubo mágico da sua infância e amou-a por isso. No dia seguinte eram um só e ela cuspiu para o chão por prazer.
Anos mais tarde, numa manhã de sol, corpo e alma estalaram por dentro. Pensou: "Sou um cubo mágico" e olhou para dentro de si. Viu seis faces de si própria, cada uma com a sua cor. Era a sua solução matemática. Respirou fundo e o ar circulando por dentro como o vento circulava por fora lembrou-a da rinofaringite. Havia algo de terapêutico naquela palavra, uma espécie de viagem ao centro do eu. Uma doença em forma de cura.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

A casa (IV)

A nossa casa é um moinho:
roda sobre si própria como as crianças
e tem asas nas costas como os anjos.
Nela moemos o trigo do nosso pão.
Somos moleiros em queda livre:
fomos e viemos com o vento
como os pássaros que migram.
É o voo que dá fôlego à nossa casa.
Ou seja, é de vento que se faz o nosso pão.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Alegoria da caverna

Dizem-me: "Não és sombra do que eras!" e não percebo logo o sentido da frase.
Reajo sem pensar: olho para trás à procura da minha sombra e, em vez dela, vejo outra pessoa. Assusto-me e viro-me para a frente.
Não olho para trás durante muito tempo e imagino um monstro nas minhas costas, pronto para me devorar.
Lembro-me do sombrio Peter Schlemihl que se tornou sombra de si próprio depois de vender a sombra ao diabo. Penso: "Se não sou sombra do que era, hei-de ser sombra de outra coisa".
Fecho os olhos e regresso à infância, a uma noite de Verão em que Peter Pan voou pela minha janela deixando a sua sombra no meu quarto. (Era uma boa amiga a sombra de Peter Pan, brincávamos juntas pela noite fora à luz do candeeiro.)
Segredam-me ao ouvido: "Não tens sombra porque estás no escuro" e abro os olhos.
Não o podia ver, talvez fosse este o monstro nas minhas costas. Ouvia-o mexer em objectos estaladiços e de repente acendeu-se uma chama. E da chama nasceu a luz. Olhei para ele.
Tinha o rosto afunilado de Peter Pan, os mesmos olhos rebeldes. Pensei: "A criança feita homem".
Disse-me: "Há outra forma de luz lá fora" e levou-me pela mão. Podia ser este o diabo a quem Fausto vendera a alma e outros venderam o corpo, mas encolhi os ombros despreocupada. Ofereço-lhe tudo isso de bom grado por ser dono da luz. Caminhamos lado a lado com a dignidade com que os amantes caminham para o altar. Estamos fora da caverna.
Não somos sombra do que éramos e a luz atravessa-nos ao meio. Ou seja, não temos sombra e trocamos de alma como quem troca de corpo. Somos livres.


Nota informativa: volto dia 18 de Setembro depois de uma viagem pela luz.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Recém-nascer

Para a Nina

A certa altura o feto estava de cabeça para baixo mas não sabia. Sentia-se bem naquela posição, tinha finalmente aprendido a girar dentro do balão de água. Passado muito tempo o feto abriu os olhos e contemplou as suas mãos. Já tinham pequenas rugas e o feto interessou-se pela trajectória complicada daquelas linhas. No céu do ventre as nuvens ficaram sisudas, pintaram-se de um vermelho demasiado escuro e de repente um raio de luz dividiu o céu ao meio trazendo à memória as imagens dos santos em dias de milagre. O feto disse: "Que belo dia para nascer!" e voou ao encontro do céu, onde o esperavam duas mãos mas, em vez de subir, o bebé caiu e essa mudança de perspectiva assustou-o. Gritou: "Quero a minha casa".
Um corte de tesoura e a ligação quebrou-se abruptamente. O recém-nascido chorava de terror, sangrava da barriga, tinha frio, detestava a vida fora de casa. Disseram: "É um menino" como se o bebé pudesse ser outra coisa, por isso o recém-nascido pensou: "O que sou hoje é um mero acaso". Deitaram-no no colo da mãe e ele lembrou-se do balão de água, do colchão macio da placenta. Perguntou-se: "Para quando o regresso?". Mãe e filho olharam-se pela primeira vez. Era um olhar surpreendido, cheio de tempo e de espaço. Ela disse: "Sou a mãe!" e ele reconheceu a voz. Ficou a ouvi-la falar e concluiu: "És a minha casa vista por fora!".

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

A casa (III)

A mulher do 2.º direito estava a aspirar a casa. Agachou-se um pouco para enfiar o tubo debaixo da cama, mas o bocal começou a puxar o atacador de um sapato escondido atrás da colcha. A mulher urrou impaciente, deixou cair os ombros, desligou o aspirador com um pontapé e o enrolador automático sorveu a ficha à velocidade com o que o filho mais novo engolia o esparguete. A mulher abriu a janela do quarto, pegou no aspirador à bruta e atirou-o pela janela fora, levando-o primeiro ao alto da cabeça qual king kong de dentes cerrados.
Depois coleccionou outros aparelhos domésticos e atirou-os também pela janela: o ferro de engomar, o microondas, a batedeira, a televisão, a aparelhagem, as colunas de som, o leitor de DVD, o computador portátil, a impressora a lazer do filho mais velho, o telefone sem fios (a propósito de fios, esquecemo-nos de mencionar que a mulher perdera algum tempo a desenrolar cuidadosamente os fios da televisão e da aparelhagem para poder separá-las do armário).
No final a mulher avançou para as cadeiras, os quadros, os cristais decorativos, o banco de camurça, a enorme escultura em madeira de um preto raquítico. Quando a polícia chegou a mulher estava a rasgar lençóis, mas apercebera-se a tempo do carro a estacionar lá fora e correra escadas abaixo, saindo pela porta das traseiras.
Correu durante horas, parou para comer qualquer coisa numa tasca e continuou a correr. De repente estava no Cabo da Roca, desequilibrou-se na ponta da terra, agarrou-se à rocha e desceu pelo desfiladeiro sem medo. Como a terra acabava, a mulher do 2.º direito atirou-se ao mar e nadou disciplinada, braço ante braço, até que um pescador a pescou por engano e a levou para uma ilha, onde atracou de seguida um cargueiro que a levou a bordo até aos Estados Unidos.
Chegados à terra prometida, a mulher continuou a correr, pedia perdão, informações, boleia, dinheiro. Chegou a São Francisco, tirou uma fotografia à ponte vermelha por ser igual à de Lisboa, apanhou um ferry boat para Alcatraz e aí conheceu o neto de um ex-prisioneiro que sabia de cor as histórias do avô e as contou uma a uma durante mil e uma noites em águas pacíficas. Almoçaram juntos em Tóquio e despediram-se para sempre cheios de protocolo em Quioto. A mulher percorreu o Japão a correr e foi feita refém na Coreia do Sul por um terrorista da Coreia do Norte. Devido à inexistência de um intérprete com a combinação linguística coreano-português, a mulher do 2.º direito foi libertada e atada a um lugar executivo do voo que ligava a Coreia do Sul à cidade Londres, onde foi recebida pela família em directo para a televisão. No dia seguinte, chegou a casa acompanhada pelos filhos e encontrou todos os aparelhos no sítio: a televisão, a aparelhagem, o leitor de DVD, o telefone. Calou-se de espanto e fechou-se na cozinha. Talvez o marido tivesse estado todo aquele tempo a arranjar os aparelhos, talvez tivesse comprado tudo de novo com as poucas poupanças, mas a mulher preferia pensar que, na verdade, aquele ataque de nervos nem tinha acontecido, que ela tinha voltado atrás no tempo durante aquela volta ao mundo, que era dona de um poder poderosíssimo. Riu-se sozinha enquanto lavava a loiça e começou a fazer planos para várias viagens à volta do mundo que a levassem até aos seus 20 anos. Num segundo, arrependeu-se de toda a vida. Atirou os pratos ao chão enquanto prometia a si mesma: "Não serei a mulher do 2.º direito" e deitou mãos à obra. Saiu pela porta das traseiras e desta vez foi de carro até ao Cabo da Roca para poupar energias.