quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Uma lista de coisas

Ir de viagem. Contar os dias. Fazer uma lista. Não esquecer o guia. Nem sapatilhas. Pijama, passaporte. Kindle, caderno, guia. Máquina fotográfica, máquina do tempo. Ligar a este e àquele. Regar as plantas. Deixar as chaves. Falar com a porteira. Falar com os colegas. Ir ao banco. Ir à farmácia. Ir a casa. Reservar carro. Reservar hotel. Comprar bilhetes. Imprimir bilhetes. Confirmar horários. Enviar mails. Ler isto. Ler aquilo. Tripadvisor. Blogues. Lonely Planet. Tomar um copo. Almoçar com amigos. Lavar a roupa. Lavar a loiça. Lavar as ideias. Ver o mapa. Ver o plano. Fazer a mala. Escolher a mochila. Encher o saco. Fazer a cabeça. Desligar o frigorífico. Desligar o aquecimento. Desligar o mundo. Fechar a casa. Fechar a matraca. Ser uma lista. Uma enorme lista de coisas. Um bicho, uma casa. Um castelo de coisas em movimento. Aeroporto. Baggage drop off, segurança. Terminal A. Ver a porta de embarque, a hora de embarque. Esperar. Enfileirar. Embarcar. Sou uma lista de coisas. Uma enorme lista de coisas. Ir. Ver. Ser. Voltar.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Signe Baumane

Todos os anos vou animar para o Anima, o festival bruxelense (e bruxuleante) de filmes de animação.
Ontem descobri Signe Baumane, artista letã a viver em Nova Iorque que veio a Bruxelas apresentar o seu novo filme intitulado "Rocks in my Pockets", título sugestivo para uma história sobre três mulheres cheias de pedras nos bolsos numa Letónia em pleno desequilíbrio.
Aos 50 anos, Signe Baumane apareceu no palco de corpo são e mente vã numa versão dupla, de saia comprida por cima de um par de calças. Durante a conversa com o público, assumiu que passa a vida a pensar em sexo e também em suicídio. Logo a seguir esclareceu-nos que, felizmente para ela, pensa mais vezes em sexo do que em suicídio, o que lhe permite não só ter mais sexo, mas também sobreviver. O seu novo filme fala sobre isto e muito mais.
O trailer lança a primeira pedra, que aqui reproduzo em versão portuguesa: Neste mundo louco, de guerra, divórvio, política, sexo, negócios, educação, dinheiro, segredos, casamento, poder, maternidade e violência, como manter a sanidade? A resposta é difícil e também pouco saudável.
É Signe Baumane que dá vida - e também voz - a este filme autobiográfico sobre a sua avó, a sua mãe e também a própria Signe, numa história contada, narrada e ilustrada na primeira pessoa.
No final do filme, Signe Baumane atirou-nos pedras de papel, ofereceu ilustrações originais a uns quantos felizardos e falou-nos de tudo um pouco: da reação negativa de alguns familiares ao filme, dos ensaios intensivos para dar voz ao texto, do processo criativo.
Disse-nos que não faz filmes para si própria, mas sim para o público. Para nos entreter, para lançar perguntas (e também algumas pedras).
Deste encontro ressalta a ideia inquietante de que, apesar de tudo, há alguma esperança no pensamento suicida.
Nem que seja para ter a opção de escolha. E sobreviver.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Descascar batatas

Há um consolo subtil na atividade doméstica de descascar batatas.
A rotação da esfera imperfeita.
Um pedaço de terra nas mãos.
A pele rugosa e antiga.
Que pele?
A pele da batata. A pele das mãos.
A sensação ingénua de que, afinal, sempre dominamos algo.
Por exemplo, uma faca.
Por exemplo, o destino de um tubérculo.
Qualquer coisa cortada pela raiz.
Descasco uma batata e lembro-me.
De quê?
Não sei.
Uma recordação muito mais velha do que eu.
A minha mãe com uma batata na mão. A minha avó, a minha bisavó, a trisavó.
O gesto repetido desde o século XVI.
Uma esfera imperfeita de mulheres a descascarem esferas imperfeitas.
Eu igual a um tubérculo, cortada pela raiz.
A memória comum.
A lógica da batata.
O sentimento de pertença.
Qualquer coisa anterior a nós.
Impercetível.
Subterrânea.
Imperfeita.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Do coração

O coração cansa-me.
O meu e o dos outros.
E também aqueles corações rechonchudos que pululam o Dia dos Namorados. Bolachas e chocolates em forma de coração, meias e cuecas repletas de corações palpitantes, velas, canecas, livros vibrando de amor. Corações atravessados por uma seta ou então partidos ao meio para os mais desiludidos.
Atenção: não tenho nada contra o São Valentim. Até acho piada à história do santo e regozijo-me com a celebração do amor.
Eu passo a vida a celebrar o amor.
Ainda assim, vivo muito melhor sem o Dia dos Namorados.
O meu coração deve ter endurecido porque, a bem dizer, não percebo muito bem a sobrevalorização deste órgão muscular.
Por que razão será ele o símbolo por excelência das emoções e, em particular, do amor e da paixão?
É certo que o coração conhece razões que a razão desconhece, mas eu não me emociono no coração, acho. Aquele bater misterioso e previsível aborrece-me de morte (e de vida, no caso).
Eu cá sinto as emoções pelo corpo todo. Regra geral, comovo-me no fígado ou então na vesícula, fico com náuseas. As emoções mais bicudas picam-me nos pulmões. Falta-me logo o ar e dá-me a fraqueza por dentro. 
Nos dias que antecedem um momento fulcral, emociono-me nos joelhos, tremem-se-me as pernas. A comoção dá-me cabo das articulações e não propriamente dos ventrículos.
A verdade é que não sinto nada no coração além do bate-bate, bate-bate, bate-bate.
Apesar disso, sou emotiva. E desmesuradamente lamechas.
A paixão, em especial, dá-me a volta às entranhas. Ou seja, faço das tripas coração. Levo chibatadas no intestino delgado, valentes socos no estômago. Ou então mais abaixo, diretamente no útero.
O coração para mim é a vida.
Nos videojogos, por exemplo, é mesmo assim: quantos mais corações, mais vidas.
Paradoxalmente, o coração para mim também simboliza a morte.
Deve ser por causa da rainha de copas da Alice no País das Maravilhas ("Cortem-lhe a cabeça!"). E agora também me lembrei do mais inesquecível vilão do Indiana Jones, que arrancava corações com a mão. Para os que têm miocárdios mais resistentes, a cena está em linha.
Apesar do acima exposto, apraz-me que um dos símbolos de Portugal seja o coração de Viana, por ser um coração torto que nunca mais se endireita. Além disso, traz umas cornucópias de filigrana em cima que, segundo me contaram, simbolizam o fogo.
É um coração torcido e fogoso.
Eu tenho uns brincos desses. E um pêndulo também.
Não que eu seja uma portuguesa amorosa.
Sou é bastante torcida.
E também fogosa.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Daniel Ricardo

O que eu quero dizer é que o Daniel Ricardo morreu.
Estou em choque.
Sempre que apanho uma Visão, consulto a Ficha Técnica para verificar que o Daniel Ricardo continua a ser o editor executivo e que nada muda.
O que eu quero dizer é que perdemos um bom professor.
Aprendi com o Daniel Ricardo a escrever assim. Lá para o início do século, no Cenjor, Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas.
O Daniel Ricardo dizia: "Quando tiverem dúvidas sobre como escrever uma notícia, comecem assim: O que eu quero dizer é que, e a seguir, quando acabarem a primeira frase, tirem isso. Não faz falta nenhuma".
Eu faço este exercício semanalmente e depois tiro a expressão O que eu quero dizer é que.
Vou fazer igual com este texto. Resultado:
O Daniel Ricardo morreu. Perdemos um bom professor.
Acho que o Daniel Ricardo teria preferido a palavra morrer a falecer, mas não tenho a certeza.
O Daniel Ricardo falava e escrevia com precisão. Sem floreados. Sem bengalas. Sem incoerências.
Dizer não é o mesmo que afirmar nem declarar nem anunciar. Isto declarava o Daniel Ricardo debaixo de um casaco que não estava propriamente vestido, estava pousado nas costas, prestes a deslizar para o chão. O casaco do Daniel Ricardo raramente deslizava para o chão. Havia na sua postura um equilíbrio bastante exato.
Concordar não é o mesmo que anuir ou assentir. Subscrever não significa aprovar. Solicitar não significa pedir nem exigir nem rogar. Cuidadinho com os verbos.
Os sinónimos não são sinónimos. Os antónimos não são antónimos.
Tínhamos conversas animadas nos intervalos das aulas. Animadas no sentido de animadas. E não no sentido de entusiasmadas ou enérgicas ou esperançadas.
Também é preciso ter cuidado com os adjetivos.
Era um bom professor. O que não significa que fosse bondoso ou benévolo.
Talvez nunca lhe tenha dito (e não anunciado) isto. Que ele era bom professor e que eu gostava das aulas dele. É que gostava mesmo.
Há pouco tempo, comprei um manual do Daniel Ricardo, Ainda bem que me pergunta. Nunca pensei que não iria ter a oportunidade de lhe pedir (e não solicitar) um autógrafo.
O que eu quero dizer é que tenho pena de não ter aprendido mais com ele.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Saco roto

No outro dia andei a arrumar sacos. Fiquei horas nisto. Enfiei sacos dentro de sacos, alinhei asas de cordão, asas de algodão, asas torcidas. Separei os sacos de plástico dos de papel, separei os maiores dos mais pequenos. Pelo meio escorreguei nuns quantos sacos de plástico espalhados pelo chão e encontrei sacos verdadeiramente impressionantes porque tinham alças de tecido ou cintilavam no escuro ou eram resistentes, com reforço no fundo ou nas pegas.
Sacos de ráfia, sacos isotérmicos, sacos que são sacolas, sacões, saquetas, com pala autocolante ou cordões ajustáveis.
Alguns não têm asas nem alças. Só dão para levar ao colo, não se percebe. Ainda assim, são bonitos e recicláveis, impõem um certo respeito.
Descobri vários sacos para garrafas e sacos para presentes, sacos para livros, sacos para fatos, sacos-mochila.
Tenho centenas de sacos e não sei de onde vieram. Nem sequer sou de usar sacos.
Ando sempre com um saco de pano na mala que dá para transportar quase tudo, incluindo as minhas ilusões e reclamações, que são compactas e dobráveis em quatro. Até sei recusar sacos em várias línguas. Por exemplo:
Je n'ai pas besoin de sac.
Ik heb geen tasje nodig.
Keine Tüte bitte.
I don't need a bag.
Estou de saco cheio.
O meu esforço contra o consumo de sacos caiu em saco roto. Nunca pensei.
O que fazer com centenas de sacos que vão viver mais tempo do que eu? Voar com eles? Sufocar com eles?
Não vou deitá-los no lixo. Não vou oferecê-los a ninguém.
Qualquer coisa tem de mudar. É urgente.
Talvez a fiscalidade verde ajude. Quem sabe…
De resto, na Bélgica, continuamos a comprar sacos específicos para o lixo e para reciclar papel e embalagens. Para ficarem bem arrumados e separados por cor.
Não entendo.
Não aprovo.
Mas calo o bico.
E ponho a viola no saco.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Escrever com os pés

De vez em quando farto-me das canetas, das tampas das canetas, do barulho das canetas, das folhas com quatro vértices, das palavras.
Da escrita.
Da escrita?!
Sim, da escrita.

Um texto é um texto. Acaba no fundo da página, com um ponto final ou um ponto de exclamação ou de interrogação.
Por vezes adormeço na ponta dos dedos. Outras vezes, insisto na caneta e troco de cenário, de posição, de cadeira. Mudo de página ou então de letra.
Agora vou fazer letras compridas.
Nos momentos de parvoeira, seguro a caneta de formas esquisitas.
Agora sem o polegar, agora sem o indicador. Invariavelmente, espeto-me contra a página.
Também escrevo de maneiras invulgares.
Que maneiras invulgares?
Sei lá. De trás para a frente. De baixo para cima. Da direita para a esquerda. Aos círculos, aos ziguezagues. Brinco à poesia concreta. Por exemplo: concreta, Creta, careta, coreta. Brinco à caligrafia. Vou fazer uma bolinha no "i".
Em ocasiões espicaçantes, até escrevo de pé. Enquanto espero por alguém ou por alguma coisa. Pouso o caderno na palma da mão esquerda e dou-lhe com a direita. No meio da rua, ao frio e ao vento.
Quando o caderno é magro, é como se escrevesse na mão. As palavras ganham consistência. Fazem-me cócegas e eu rio-me. Fujo delas e, logo a seguir, encoraja-as. Trago as palavras na palma da mão. É divertido.
Gostava de escrever de pé mais vezes.
Felizmente, o IKEA já anda a vender umas mesas ajustáveis há uns meses.
A bem da coluna vertebral e da escrita vertical.
Vou escrever com os pés.


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O meu afia

O meu afia tem o parafuso no sítio e uma boca perfeita. É um afia clássico. Tem corpo de metal e faces curvilíneas para acomodar os dedos.
Por vezes, desaparece. Não o vejo durante dias. Fico desamparada.
Eu gosto de afiar lápis, de lhes torcer o pescoço. Giro o grafite e fico a assistir à queda das aparas, a ouvir o barulho do corte. É um espetáculo bonito.
Não há arte sem sacrifícios. O lápis diminui, a expectativa aumenta.
O meu afia aguça-me a mente. Fico aprimorada e pontiaguda. Até dói.
Eu digo afia-lápis. Não digo aguça nem afiador ou afiadeira. Nem apara-lápis ou apontador de lápis.
Um lápis bem afiado é uma arma. Um bom afia também.
O primeiro perfura, o segundo corta.
Afiar é um desporto de alto risco. Eu pratico e gosto.
Infelizmente, não tenho grande jeito. Arranco nacos de madeira aos meus lápis elegantes. Os bicos esmorecem e caem.
Tenho mãos grandes e uma vontade sôfrega.
O meu afia desafia.
Eu gosto disso.