terça-feira, 28 de julho de 2009

Johnny Depp

Neste fim-de-semana tive vontade de dar um par de estalos no Johnny Depp. Um estalo com a palma da mão direita e outro com as costas da mão direita, tudo isto em dois segundos: traz, traz.
Há quase 20 anos, na altura da série 21 Jump Street, o Johnny Depp era-me tão indiferente como bróculos cozidos, mas agora já não é assim. Gosto dele como de queijo fresco e eu gosto muito de queijo fresco.
Comecei a ter um fraquinho pelo Johnny Depp na altura do cavaleiro sem cabeça, por causa do rosto muito branco e do fato muito negro, o seu ar sombrio que trazia à memória os vestígios das suas inesquecíveis mãos de tesoura. O Johnny Depp tinha, já nessa altura, o Bem e o Mal no corpo, a Bela e o Monstro.
Este contraste cativa-me.
Quando se vestiu de Willy Wonka, quis saltar para dentro da sua cartola para entrar na sua cabeça. Também simpatizei com a sua madeixa branca e com o seu rosto ainda mais obscuro em Sweeney Todd.
Todas estas personagens e também o facto de Johnny Depp ter encarnado, a certa altura, Sir James Matthew Barrie fizeram com que lhe perdoasse todos os disparates, incluindo o bigode e a pêra que usou naquele filme enjoativo sobre chocolate.
Mas só quando Johnny Depp perdeu definitivamente o tino e pintou os olhos de negro para se transformar em Jack Sparrow é que tive vontade de me atirar ao mar e procurar aquele pirata improvável.
Ora, neste fim-de-semana fui ver o Public Enemies. O Johnny Depp é, nem mais nem menos, John Herbert Dillinger, o bandido americano mais procurado dos anos 30 que assalta bancos como quem rouba ameixas no quintal do vizinho. Johnny Depp anda com uma arma por baixo do sovaco, veste fato completo com colete no meio, frequenta bares de jazz e conquista a belíssima Marion Cotillard com duas frases: I like baseball, movies, good clothes, whiskey, fast cars... and you. What else you need to know?
Isto passou-se no filme, como é evidente, porque, na vida real, qualquer mulher – especialmente a Marion Cotillard – teria passado por cima de Johnny Depp, calcando-o cuidadosamente com os finíssimos saltos altos. Na vida real, com esta deixa, só Al Pacino teria levado a rapariga para casa. Mesmo o Robert De Niro não teria conseguido mais do que um beijinho na testa.
O Johnny Depp é ridículo num papel igual aos outros, porque não é um homem igual aos outros. O Johnny Depp é especial de corrida, tem de ser tratado como tal. O Johnny Depp devia ser fustigado por tentar ser igual aos outros.
Tenho a certeza de que Marion Cotillard não pensaria duas vezes, se tivesse pela frente o pirata das Caraíbas. Também ela se atiraria ao mar.
O Johnny Depp é um saltimbanco e não um assaltante de bancos. E devia levar um par de estalos para ver se aprende a lição.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Teoria da Revolução das Espécies

O professor Alberto Gago e Esperto é antropólogo de formação mas, para sobreviver, trabalha como outra coisa qualquer. Nos tempos livres dedica-se, contudo, à observação disciplinadíssima de pessoas seleccionadas ao calhas. Um exemplo clássico desta sua actividade como antropólogo é sentar-se num restaurante e ficar a observar um casal qualquer. Durante um longo período de tempo, o professor Alberto Gago e Esperto tira imensas notas e, caso haja informações relevantes, persegue o casal durante horas, se não mesmo dias ou semanas ou meses. Casos houve em que prolongou a sua observação durante anos, seguindo as pessoas escolhidas de carro ou a pé, no metro, no autocarro ou até de bicicleta. Por vezes entrevistava as suas pessoas de laboratório, interrogava-os à porta de casa, observava as suas línguas, apalpava as suas glândulas salivares, testava os seus reflexos.
Para o ajudar na sua difícil tarefa, trazia vários instrumentos enfiados numa mala de pele rectangular: um par de binóculos, uma máquina de filmar, um gravador de voz, um iPhone, um computador portátil, uma máquina fotográfica, um estetoscópio, um esfigmomanómetro, um bloco de notas A4, meia dúzia de canetas BIC e um enorme arquivo com o historial dos seus humanos. O professor Alberto Gago e Esperto passou anos nisto (na verdade, décadas) e queria agora publicar um livro com a sua teoria da evolução das espécies que, segundo nos conta, vai mais longe que a de Darwin. Isto porque, desde a Guerra Fria, o ser humano estava a viver um momento único na sua evolução. Os olhinhos do professor Alberto Gago e Esperto brilharam quando disse estas palavras.
Na sequência da sua observação, tinha reunido dados suficientes que permitiam concluir que o ser humano estava, não a evoluir, mas sim a regredir. Ou seja, a evoluir "ao contrário, para trás". Claro que a regressão era, também ela, uma evolução, pelo que o professor Alberto Gago e Esperto intitulou a sua teoria, não de regressão, mas de revolução.
Para este antropólogo, os factos estavam à vista de todos. Os seres humanos andavam cada vez mais corcundas e tinham feições cada vez mais feias, bastava andar pelas ruas das capitais europeias para perceber isso. As mulheres de hoje tinham visivelmente muito mais pêlos do que antigamente e os homens recomeçavam a comer de boca aberta e eram cada vez mais agressivos. No curto espaço de meio século, era possível ver toda esta regressão (ou melhor, revolução). As próprias classes dirigentes andavam mais animalescas. As trombas do presidente iraniano e os cornos de Manuel A. A. Pinho ilustravam claramente esta tendência. Na sua opinião científica, era possível que, nas próximas três gerações, nascesse o primeiro australopiteco. Isto porque a revolução das espécies se estava a dar muito mais rápido do que a evolução. As pessoas eram cada vez menos inteligentes e tomavam atitudes cada vez mais irracionais.
No final desta conversa, o professor revelou uma outra hipótese ainda por comprovar. O professor Alberto Gago e Esperto previa que, no futuro, o ser humano menos sapiente fosse domesticado por uma espécie mais inteligente. Os sinais de hoje pareciam apontar nesse sentido: as pessoas já não tinham ideologias mas queriam seguir quem as guiasse, além de que eram cada vez mais carentes e desorientadas. As observações do professor sobre os acessórios femininos são também extremamente perspicazes no atinente à domesticação da espécie humana1.
A pergunta que se coloca é saber quem será a espécie domesticadora. Mas esta teoria, promete o professor Alberto Gago e Esperto, ficará para um outro livro.
É, pois, com impaciência que aguardamos a publicação desta revolucionária Teoria da Revolução das Espécies.

1 "As mulheres ocidentais do século XXI cobrem os pulsos de pulseiras que tilintam com qualquer movimento do corpo. Ora, o som destas pulseiras é muito semelhante ao dos chocalhos das ovelhas. Não me parece que esta semelhança seja uma coincidência."

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mohammed Ajmal Amir Kasab

O narrador deste texto anda a pensar em Mohammed Ajmal Amir Kasab há dois dias. O autor deste texto também, mas não pelos mesmos motivos.
Vejamos: o narrador deste texto interessa-se por Mohammed Ajmal Amir Kasab, pela pessoa de 21 anos; o autor não, está-se profundamente nas tintas para este paquistanês.
O narrador pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab e vê o indivíduo, lamenta o indivíduo, não o compreende, não o aceita e anda preocupado precisamente com o seguinte: se encontrar na rua o rapaz de nome Mohammed Ajmal Amir Kasab, não sabe o que dizer-lhe. Isto porque o narrador deste texto fica de rastos sempre que lhe faltam as palavras, parte do princípio de que o diálogo não é possível sem as palavras.
Ora, a verdade é que o narrador deste texto gostaria de ter uma coisa clarividente para dizer a este rapaz. Uma coisa única, extraordinária, brutal, capaz de mudar o jovem capaz de matar dezenas de pessoas. O narrador deste texto gostaria de o encontrar na rua e de lhe dizer uma coisa capaz de mudar o mundo. Apenas isto.
O narrador, por lhe faltar o corpo, tem destas presunções, mas o autor deste texto não o leva a sério, como é evidente. Desce a rua, sem lhe prestar atenção.
O autor não esconde que também anda a pensar em Mohammed Ajmal Amir Kasab, mas, na prática, não quer saber do rapaz. Quando pensa nele, pensa nos atentados de Bombaim, como é natural, e depois deixa logo de pensar em Bombaim e na Índia e no mundo, passa a pensar só na Europa e, logo a seguir, só na sua casa. O autor, quando pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab, espera o seguinte: que o terrorismo não chegue a Bruxelas. Depois distrai-se com esta ideia, pensa nos potenciais alvos para um ataque terrorista nesta capital europeia e tem pena de estar ao pé de todos eles.
Enquanto desce a rua, o autor acha todas estas suposições mais mórbidas do que o livro sobre vampiros que anda a ler, por isso resolve pensar noutra coisa. Regressa a Mohammed Ajmal Amir Kasab e pensa novamente em Bombaim, na tal estação de comboios. Depois distrai-se outra vez e começa a planear uma viagem nos comboios indianos. Lembra-se do anúncio "Incredible India" que tanto passa na BBC, lembra-se do filme Slumdog Millionaire. Gostaria de ir, por exemplo, a Goa, ao Taj Mahal, a Deli.
O autor deste texto anda evidentemente preocupado com o seu umbigo e, a propósito disso, pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab. Não anda propriamente preocupado com o rapaz paquistanês de 21 anos.
O narrador deste texto sim, anda preocupado com o rapaz de 21 anos, porque é europeu e acredita na carta dos direitos fundamentais, nomeadamente no artigo 2.º relativo ao direito à vida. Mas enquanto desce a rua enfiado no capuz do autor assusta-se com a ideia de encontrar Mohammed Ajmal Amir Kasab ao virar da esquina, tem vergonha da sua incapacidade para o diálogo, deixa de perceber a razão da sua existência.
O autor deste texto também é europeu mas, antes de mais, é humano, tem um corpo a sério e uma vida pela frente. O narrador não, tem uma existência intermitente: aparece e desaparece no capuz do autor. Indiferente a tudo isto, o autor desce a rua e pensa agora em Gandhi, nos seus ensinamentos. Volta a pensar no seu umbigo e depois em Mohammed Ajmal Amir Kasab.
Repete na sua cabeça a esperança de que o terrorismo não chegue a Bruxelas. Depois pensou em coisas boas. Por exemplo, no facto de o rapaz estar a ser julgado na Índia. Essa era uma coisa boa. Por a Índia ser um país longínquo. E por aí se aplicar a pena de morte.
O narrador fica tão chocado com o pensamento do autor que decide morrer. Atira-se do capuz e morre. Não obstante o seu direito à vida.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Da noite e do espaço


Sonhava muitas vezes que voava até à última nuvem e mergulhava para fora da Terra. O voo era tão silencioso que deixava de ser e o corpo caía devagar.
No Espaço.
Trazia vestido um fato de astronauta e a respiração repetia-se na cabeça como as ondas da praia.
O Espaço era igual à noite.
Havia certas luzes que interrompiam a escuridão e, portanto, muitas sombras. Havia também sons desconhecidos, tão misteriosos e longínquos que era necessário conter a respiração para ouvi-los.
O corpo vestido de astronauta boiava no Espaço de planeta em planeta, assistia ao nascer de outros sóis. Nem sempre sabia regressar à Terra.
O ar expirado embaciava o visor, por isso também era preciso conter a respiração para contemplar.
Nos sonhos bons, a Terra resplandecia inteira num outro céu e os lobos uivavam para ela. O corpo regressava, então, a casa.
Nos sonhos maus, a Terra não estava à vista e o corpo perdia-se para sempre no Espaço.
Aquele astronauta tinha, como é natural, um certo fascínio pelo Espaço. Mas gostava mais da Terra. Muito mais da Terra.
Vista do Espaço.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Senhora Eleonora

Durante a hora de almoço estivemos a observar a senhora Eleonora. Para isso, tivemos de dobrar os nossos olhos como sinos porque a senhora Eleonora estava sentada na mesa do lado. Decidimos observar a senhora Eleonora por ela ser muito gorda e saltar, por isso mesmo, à vista.
A julgar pelo volume do peito, a senhora Eleonora podia ser prima-dona de profissão, vocação e temperamento, mas rapidamente concluímos que não era.
Uma pena.
Quando a comida chega, a senhora Eleonora recebe-a de braços literalmente abertos. Pega no garfo com a mão inteira e enrola com pressa um novelo de massa, que enfia de uma só vez na enorme boca. Temos fome só de a ver.
A senhora Eleonora não está sozinha. À sua frente, uma mulher magra desinteressante conta qualquer coisa e a senhora Eleonora come e cala. De vez em quando pressiona um guardanapo na boca e bebe um trago de água sem gás. No final de um relato visivelmente cómico, a senhora Eleonora dá uma gargalhada profunda e engasga-se porque ri, bebe e come ao mesmo tempo. A gargalhada, interrompida por uma curtíssima tosse, deixa adivinhar a enorme caixa-de-ar e nós temos novamente pena de a senhora Eleonora não ser prima-dona. Isto porque, tendo em conta a simpleza do apetite, não restam dúvidas de que a senhora Eleonora não actua nas óperas das grandes cidades. Desejamos, portanto, que a sua profissão e atitude na vida sejam tão prezáveis como as de uma prima-dona.
A senhora Eleonora fala agora de olhos esbugalhados e a sua voz é tão poderosa que queremos ouvir a sua história. Infelizmente nenhum de nós parla italiano, por isso não percebemos a história certamente animadíssima, pois já se sabe que as pessoas gordíssimas e respectivas histórias são, por norma, mais animadas do que as outras pessoas e as outras histórias, por causa do enorme apetite que têm por todos os prazeres da vida.
A senhora Eleonora regressa à massa com a sua mão sapuda e domina-a facilmente. Ri enquanto come, mas agora já não se engasga.
Observamos a indumentária da senhora Eleonora e reparamos, em primeiro lugar, nos enormes brincos redondos e cor-de-rosa que apontam para a frente no final dos caracóis. Descendo pelo pescoço, apercebemo-nos de que o colar é feito das mesmas esferas cor-de-rosa. Ora, isto causa-nos um certo espanto. Dir-se-ia que a senhora Eleonora, além de ser gorda, ostenta este facto nas orelhas e no pescoço, orgulhosa das suas formas redondíssimas. Nunca tínhamos visto uma mulher deste tamanho com tanta vocação para ser gorda.
Estamos conquistados, por isso observamo-la ainda.
No final da refeição, quando já nada há no prato, enquanto a mulher magra e desinteressante vai dizendo uma outra coisa, a senhora Eleonora pega num pedaço de pão e arrasta-o pelo prato, desenhando círculos perfeitos. Enquanto come olha para o prato imaculado, à procura de vestígios. Não encontra.
Está visto: a senhora Eleonora adora ser gordíssima. Por esta razão, temos imensa pena de não sermos tão gordos.
No final desta hora de almoço, damos graças a Deus Nosso Senhor por a senhora Eleonora não ser prima-dona.
Só então nos apercebemos de que não acreditamos em Deus.
Dizemos em tom de correcção: Ainda bem que a senhora Eleonora não é prima-dona.
Repetimos: Ainda bem.
Pois não seria tão graciosa nem tão sublime.
E isso seria lamentável.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Das raízes

A propósito de um post da Pitucha sobre esta notícia.

Uma mulher de nome Maria decidiu cortar as raízes que trazia nos pés. Ora, não era costume as pessoas andarem por aí a cortar as raízes dos pés, na verdade nunca se tinha ouvido falar de tal prática. Diga-se que a mulher de nome Maria também não gostava propriamente de cortar: parecia-lhe um verbo demasiado definitivo e tinha medo do arrependimento. Contudo, a mulher de nome Maria estava muito habituada a usar a tesoura no seu dia-a-dia e não via nenhum problema em cortar também as raízes.
Tinha, por exemplo, o hábito de cortar as unhas das mãos. Outras mulheres e outros homens também cortavam as unhas das mãos, mas algumas pessoas roíam-nas simplesmente e outras deixavam-nas crescer até que elas se partissem.
A mulher de nome Maria preferia cortar as unhas das mãos e fazia-o com alguma regularidade. Também não se importava de cortar as unhas dos pés, embora tal implicasse um esforço físico maior que exigia desenterrar as pernas, lavar os dedos, cortar as unhas onduladas e voltar a enterrar as pernas até aos joelhos. Ora, isto era extremamente custoso, além de que ninguém via as unhas dos pés da mulher de nome Maria por estarem precisamente enterradas com os ditos pés.
Em dias especiais cortava também os cabelos. Nessas alturas não cortava o cabelo a si própria: ia ao cabeleireiro e uma outra pessoa cortava o seu cabelo. Outros seres humanos também iam ao cabeleireiro cortar o cabelo, mas também havia quem cortasse o cabelo em casa, em frente ao espelho.
Naquele dia, porém, a mulher de nome Maria decidiu cortar as raízes. E sem dramatismos, agarrou na tesoura e cortou.
O corte em si não foi doloroso, porque não implicava nenhuma cirurgia, apenas uma manobra parecida com a poda, porque as raízes, como todos sabemos, são como os cabelos e as unhas: voltam a crescer indefinidamente e, em excesso, não fazem falta.
A mulher de nome Maria disse ainda: "Já não pertenço a esta terra" e deitou a terra fora. Como não podia sobreviver sem terra, escolheu uma terra nova para passar o tempo. Escolheu também um vaso novo, de terracota. Deitou o antigo fora, que era da Vista Alegre. Empurrou o vaso novo até à janela, para apanhar mais sol.
Depois atirou-se para dentro do vaso e enterrou-se até aos joelhos.
As outras mulheres e os outros homens ficaram muito indignados. Disseram que ninguém podia cortar as raízes, por isso, esquecendo-se das suas outras raízes católicas, atiraram pedras à mulher de nome Maria, que se estava profundamente nas tintas, porque o seu lugar ao sol estava longe dos seres humanos indignados e as pedras não a alcançavam.
Ora, o narrador e o autor deste texto jamais cortariam as suas raízes, apesar de terem mudado de terra há cerca de cinco anos. Gostam de ter as mesmas raízes do início. A mulher de nome Maria não. Nós - autor e narrador - não vemos problema nisso.
Até porque a pátria, como disse um certo mestre desta pátria, é a nossa língua e a mulher de nome Maria, falando português, gostava mais de ser brasileira. Por causa do samba, imaginamos. Nós compreendemos e aceitamos.
Pena a mulher de nome Maria estar enterrada até aos joelhos. Senão, até podia sambar como os brasileiros.
Mas assim, enterrada como está, não pode. Deve ser estranho uma pessoa ser estrangeira na sua própria terra.
O que vale à mulher de nome Maria é o piano.
E a ortografia, que é milagrosamente a mesma.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A casa (VI)

O Belgavista faz 2 anos amanhã.
E eu resolvi mudar o papel de parede.

Acordava de manhã e nem sempre a casa lhe parecia igual. O chão estava, por vezes, muito inclinado e as janelas um pouco mais estreitas. Para se certificar de que aquela era a sua casa, cheirava as paredes e reconhecia nelas as memórias de outras casas, de outras cómodas, de outros espelhos, candeeiros, cadeiras, livros.
Não era bom tocar nas paredes logo pela manhã, eram muito frias.
Ideia: Um dia haveria de comprar um papel de parede para o seu quarto.
Imaginou todas as formas, todos os desenhos.
Ideia: Ou então talvez bastasse pintar as paredes de várias cores.
As cores do arco-íris, as cores primárias, as cores do mar.
Depois desistiu de todas estas ideias, continuou a cheirar as paredes.
Tinha medo de subir o escadote e o tecto do seu quarto era muito alto.
Resolveu comprar um quadro. O filho de um quadro. Um pedaço de um quadro. Só não sabia qual. Não gostava especialmente de nenhum artista, mas sim de alguns quadros de determinados artistas.
Naquela sexta-feira, foi ao centro da cidade e, inesperadamente, apaixonou-se. Por um homem sem rosto, atrás de uma maçã, um filho de outro homem. Gostava, acima de tudo, do chapéu do tal homem atrás da maçã, tentava adivinhar o seu rosto. Comprou, naturalmente, uma reprodução daquele quadro.
Colocou-o na parede virada a Norte e contemplou-o durante várias horas.
Estava deveras apaixonada pelo homem atrás da maçã, por isso abraçava-o.
Depois começou a falar para as paredes.
E nunca mais saiu de casa.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Coração Independente Dourado

Gostaríamos de trazer pela mão um coração dourado.
Não um cão, não um papagaio, não um brinquedo nem uma criança.
Gostaríamos de trazer pela mão um coração dourado. Independente.
Maior do que o corpo, do que as portas das casas. Mais aberto do que as janelas.
Um coração impossível, flutuando no ar como uma nuvem. Como um balão.
Gostaríamos de trazer pela mão um coração independente dourado.
Para respirarmos mais alto. Mais profundo.
Mais ar, mais sentimento.
Um coração maior do que o corpo.
Para sermos mais humanos, mais transparentes.
E percorreríamos as ruas da cidade para que os outros vissem o nosso coração, sentissem o nosso pulsar.
Para que tocassem nos nossos ventrículos.
Bem que nós gostaríamos de percorrer a cidade trazendo pela mão aquele coração dourado. E partilhar todo aquele sangue, todo aquele amor, todo aquele engenho, para os quais nunca tivemos corpo nem alma nem tempo. Nem arte.