segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Domingo com neve

A neve não cai, pousa.
Os meus olhos emocionam-se com a sua leveza.
O resto do meu corpo não. Gosta de sensações mais fortes.
Como Ray Charles. E chocolate quente.
O resto do corpo não está em sintonia com os meus olhos.
Para satisfação da alma.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O escritor e a cidade

O escritor estava no quarto a escrever. Sentava-se à escrivaninha e rabiscava num caderno liso. O escritor todo-poderoso escrevia sobre a cidade, sempre sobre a cidade, aquela cidade, a sua. O texto que andava a escrever desde ontem chamava-se justamente Cidade.
O escritor fez uma pausa na escrita. Para ir à casa de banho e lavar as mãos. De vez em quando fazia isto para refrescar não as mãos, mas as ideias. Quando regressou ao seu lugar, olhou pela janela. Para espreitar a cidade. Aquela cidade. Pensou: "Na quietude de coisa já vivida".
Nesse momento, mal o pensamento ocorrera, o escritor irritou-se, fartou-se, desesperou-se. Não da escrita, não do quarto, não da janela, não das mãos, não do pensamento, mas da cidade. Daquela cidade. Da sua cidade.
O escritor todo-poderoso não fez mais nada: agarrou na cidade pelos cabelos, amachucou-a e deitou-a para o cesto dos papéis. Depois, aliviado, regressou à escrita. Ao tal texto que se chamava Cidade.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Mulher magríssima

Andam imensas mulheres no mercado da Flagey, mas hoje só nos interessa aquela ali ao fundo, muito magra e direita. Tem cabelos cinza, muito esticados e enrolados para dentro. Caem por cima dos ombros como cortinas. Os lábios são gretados e o queixo também. A testa também. Na verdade, o rosto todo. (Vista ao perto, a cara desta mulher mais parece um puzzle de mil peças, de dez mil peças.)
Magríssima. Pele a mais para os ossos salientes. Pena não termos qualquer interesse pelo corpo humano, porque se tivéssemos poderíamos até estudar anatomia a partir do corpo desta mulher: na anca, depois do cinto teso de cabedal, avistamos o extremo do fémur, o grande trocanter, e mais abaixo a rótula e depois a tíbia, muito saliente e comprida, o mais longo dos ossos. Virou-nos as costas a mulher magra, está a pagar ao vendedor. Daqui se vêm as omoplatas e as costelas. Uma mulher magríssima com uma certa força na pose. Deve fazer yoga ou stretching, uma dessas aulas modernas, pois tem a coluna direitíssima e a pélvis bem centrada. Vem ao mercado comprar mangas.
Está a subir agora a Rue Malibran com a caixa ao colo. Uma caixa de cartão. Uns três quilos de mangas, se não mais. Tem o carro estacionado a meio da rua, um renault twingo azul escuro, com três portas. Abre o porta-bagagens, atira com a caixa lá para dentro, fecha o porta-bagagens, contorna o carro, entra no carro. Parece satisfeita.
A mulher magríssima vem todos os domingos ao mercado comprar mangas. A destreza dos movimentos denunciam-lhe o hábito. Se viesse comprar laranjas, ou cebolas, ou batatas, ou maçãs, ou café, ou cigarros, ou revistas cor-de-rosa, seria uma mulher normal. Mas não, esta mulher não quer nada disso.
É louca por mangas. Come mangas desenfreadamente.
Um vício, no mínimo, esquisito.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O senhor do chapéu II

Eu e o narrador voltámos ao parque no sábado. Eram onze horas da manhã e o sol fraquejava por causa das nuvens feias que povoavam o céu. O frio não nos desviou do nosso objectivo: o senhor do chapéu.
Não tardámos a encontrá-lo.
Hoje estava sentado num banco de jardim. A cauda do fraque descia pelo banco até ao chão e a cartola descansava na bengala, que estava, por sua vez, apoiada nas costas do banco. Um quadro engraçado de se ver. O senhor tinha as costas muito direitas e lia uma banda desenhada com o respeito de quem lê o novo testamento: os braços elevados e uma concentração muito séria. Quando passámos em frente ao banco, pudemos ver a capa do livro: Objectif Lune.
Sentámo-nos mais longe, a uns cinquenta metros, num banco de jardim que tinha vista para o seu. Ali ficámos muito tempo e, a certa altura, deixámos mesmo de escrever as nossas preciosas notas por já nos doerem todos os ossos das mãos. Estava frio, imenso frio. A esta altura já as nuvens do céu eram agora iguais às que saíam da boca. O senhor do chapéu continuava sem chapéu, concentrado na leitura.
Uma rapariga corajosa passa. Além das previsíveis calças de ganga e das botas de salto raso, traz um gorro enfiado na cabeça, luvas grossas, casaco almofadado, cachecol e uma trela colorida, a que vem preso um cão. O cão é branco, tem imenso pêlo, não parece ter frio.
Passam agora em frente ao senhor do chapéu que levanta os olhos do seu objectivo lunático para contemplar a dona e o domesticado.
A moça é bonita, é certo, quer para um mágico, quer para um cientista, mas o que nos surpreende, o que verdadeiramente nos ataca o peito como coisa jamais vista é o facto de o homem se ter levantado repentinamente para agarrar no cão e o enfiar pela goela abaixo da cartola. Isto aconteceu num só segundo, não mais. O cão nem teve tempo para ganir, subitamente já não estava. Com o choque, a rapariga nem gritou, dir-se-ia que tinha assistido ao desaparecimento do cão quase serenamente, não fosse ter começado a correr desenfreada pelo parque, com uns guinchos na voz que mais pareciam o latir de um cão.
Eu e o narrador decidimos agir imediatamente. Cinquenta metros depois estávamos em frente ao senhor do chapéu.
- Desculpe, você acabou de roubar um cão!
- Sim, o Milu! – e mostrou-nos uma imagem do Milu ao lado do Tintim.
- Você não pode roubar cães!
- Ai não?! Peço imensa desculpa.
- Onde está o cão?
- Na cartola, não se preocupem. Algum de vocês já foi à lua?
- Não, nunca fomos. E você?
- Também não, mas gostava. Sabem onde posso encontrar o professor Girassol?
- Não, não sabemos.
- E o Tintim?
- Também não. Desculpe, mas vai ter de devolver o cão. Onde está ele?
- Na cartola, já vos disse.
- Tem de devolvê-lo imediatamente. Não pode andar aí a roubar cães às pessoas. Além de que esse cão não é o Milu. É parecido com o Milu, mas não é o Milu.
- Ai não?!
- Não. Esses cães chamam-se Fox Terrier de pêlo duro.
- Pêlo duro é apelido?
- Não. É a raça. Fox Terrier de pêlo duro é a raça. O tipo de cão, percebe?
- Ah, ok. Não haverá outros de pêlo mole?
- Sim, claro.
- Então queria antes um desses. Ter pêlo duro é desagradável para quem dá festinhas, não acha?
- Acho!
- Sabe onde posso encontrar um cão de pêlo mole?
- Sim, sei. Eu levo-o ali a um canil para você escolher o cão que quiser.
- Obrigadíssimo. Vou então tirar o Milu da cartola.
O senhor meteu a mão no chapéu brilhante, mas, em vez de um Fox Terrier, tirou de lá outro animal, nomeadamente um coelho. No primeiro momento nenhum dos três disse nada, ficámos apenas a olhar para o roedor desconhecido. O senhor parecia muito desiludido, abanava a cabeça repetidamente. A única coisa que o cão e aquele coelho tinham em comum era a cor.
- Peço-vos imensa desculpa. De vez em quando acontece-me isto: as coisas que entram na cartola transformam-se em coelhos.
- A sério?! Então porquê?
- Não sei. Deve ser um erro no software.
- No software?
- Sim, no software.
- No software da cartola?
- Sim.
- Você é mágico?
- Não.
- Ah, então a nossa hipótese preferida comprova-se! Essa cartola é uma máquina do tempo.
- Sim, é verdade!
- Você vem do passado?
- Não, venho do futuro.
- Do futuro?!
- Sim, do futuro.
- Assim vestido?!
- Sim.
- Você é cientista?
- Não.
- Então é o quê?!
- Sou informático.
Em silêncio, eu e o narrador acompanhámos o senhor ao canil. Depois viemos para casa. Estávamos deveras tristes por a nossa personagem ser, afinal, um informático.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O senhor de chapéu I

O senhor que passeia no parque traz um chapéu na cabeça. Ao longe, e apesar de ser preto, brilha. O chapéu, não o senhor.
(O senhor não é preto, é branco.)
O chapéu, que é preto, brilha sempre. Com ou sem sol. Brilha.
Hoje, por exemplo, não está sol. Há nuvens escuras no céu, quase chove, e no entanto o chapéu deste senhor brilha. Ao longe e ao perto.
Além de preto, é alto, magro, bem parecido, tem umas asas curtas. Perdão, abas: o chapéu tem abas curtas.
Trata-se evidentemente de uma cartola. Insisto: o senhor que passeia no parque traz uma cartola na cabeça. Isto provoca em nós (em mim e no narrador) tal estranheza que gostaríamos de o seguir. Infelizmente nenhum dos dois tem tempo e ficamos só a observar.
O senhor anda muito devagar. De vez em quando pára, fica a olhar as árvores e as pessoas, tira um relógio do bolso, consulta as horas.
Para ajudar no lento compassar do passo, traz uma bengala, embora não se apoie nela. Em vez disso, empurra-a para a frente com força, poisa-a assertivamente no chão - os movimentos são largos e perigosos. De vez em quando gira a bengala no ar.
O senhor que passeia no parque vem vestido de fraque. O peito é inchado e a cauda comprida: parece um melro. O senhor que passeia no parque parece um melro. De facto.
Tem também um lenço de seda ao pescoço.
(Um homem de se lhe tirar o chapéu.)
Quero saber de onde vem este homem, para onde vai, qual a sua profissão, intenção, confusão. O narrador diz-me: Louco não é. Realmente, não é. Actor também não.*
Portanto, das duas, uma: o senhor que passeia no parque ou é mágico, ou é cientista. E nunca os dois ao mesmo tempo.
Se for mágico, tira coelhinhos brancos da cartola.
Se for cientista, descobriu a máquina do tempo e anda a passear no futuro.
Qualquer uma das hipóteses nos parece plausível, por isso, colocamos as duas.
Eu e o narrador voltamos para casa. Para investigar o caso.

*O narrador desta história não é omnisciente, mas reserva-se o direito de saber certas coisas. Uma delas é esta: o senhor que se passeia no parque não é louco nem actor.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

No quiosque

Saiu de casa para comprar um postal. Disse: "Vou comprar um postal" e foi. Abriu a porta, saiu, fechou-a, pôs-se a caminho.
Do quiosque. Dos jornais. Da rua.
Qualquer coisa o fascina no quiosque. Várias coisas. Todas as coisas. Não, afinal são só três.
A primeira é a porta. Um pedaço de madeira e vidro, muito leve, muito branco. Quando se abre ou fecha, toca um sino. Ou dois. Não dá bem para perceber. O som é parecido com os badalos que se ouvem no monte: com os chocalhos das vacas, das ovelhas, das cabras (e não com os sinos das igrejas).
A segunda (que não é coisa, mas sim pessoa) é a senhora. Aquela senhora. A do quiosque. Olha para a porta sempre que o sino toca. Para ver quem entra, quem sai, quem fica. Está sempre à caixa. Uma senhora amável. Que se pode amar. Que se ama. O homem que quer comprar um postal desconfia que os cabelos da senhora do quiosque da rua cheiram a tinta de impressão, que o seu rosto é de papel ou esferovite e não de carne e osso. Frágil. Tem óculos quadrados e neles se espelham todas as letras de todos os jornais.
A terceira coisa que o fascina é o próprio papel. Os sentidos segundo o papel. O cheiro do papel, a textura, os dedos, a voz, o peso. Papel mate, papel couchê, papel bouffant, papel de jornal, a arte de ser papel. Por agora, esquece-se desta paixão pelo papel. Tem outra: quer comprar um postal.
Foi até ao fundo do quiosque. Onde está a secção de postais. São muitos. Imensos. Demasiados. Uns dizem coisas, outros só uma palavra, outros nada de nada. Há postais de tudo. Aniversário, casamento, nascimento, baptizado, Natal, Páscoa. Postais para dizer que se ama. Para desejar as melhoras. Para pedir desculpa. O homem inquieta-se, confunde-se. Fica duas horas a ver postais. Uma decisão difícil. No final, escolheu um postal que não dizia nada: na frente tem uma azinheira no meio de um prado. No verso nada.
O homem que queria um postal já tinha o postal. Estava contente. Foi pagar. A senhora de papel recebe-o ao balcão. Diz:
- Escolheu um postal bonito.
- Gosta?
- Gosto.
- Estava ali um bocado indeciso, sabe?
- Sei, pois! Ficou duas horas a ver postais!
- Verdade?!
- Verdade. É tudo?
- Não. Queria também um selo, por favor.
- Correio nacional?
- Sim.
- Normal?
- Não. Correio azul, por favor.
- Para chegar mais rápido, estou a ver.
- Sim, o mais rápido possível.
O homem pagou. Guardou o selo na carteira, fechou a carteira, devolveu-a ao bolso. Já estava a preparar-se para sair, quando reparou no seguinte: ao lado da caixa registadora havia um pequeno mostrador com cartões de visita. Do quiosque. Era um cartão muito simples em fundo branco. O homem tirou um.
Assim já tinha o endereço. Com código postal e tudo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Roupão sem fim

Hoje tinha uma personagem no bolso. Dei por ela quando estava à procura das chaves de casa. Tirei-a cuidadosamente, mas ela não acabava de sair. Pensei: "É uma personagem sem fim", mas depois percebi que era o roupão.
Muito azul. E sem fim.
A personagem era mínima: tinha braços e pernas curtíssimos. Para não a magoar, pousei-a na bancada da cozinha e continuei a tirar roupão do bolso. Enquanto isso, a personagem começou a andar pelo lavatório. A pobre coitada tropeçava a cada passo, metia dó. Sentei-a numa cadeira para ela comer a sopa mas a personagem não conseguia agarrar na colher, tive de lhe arregaçar as mangas durante horas. Como não havia um fim para aquele roupão, despi a personagem e devolvi o roupão azul ao bolso.
Anunciei: "Pronto, acabou-se o roupão".
A personagem assustou-se. Depois enervou-se. Depois gritou: "Quero o meu roupão". Expliquei-lhe que aquele roupão era impossível, que tinha de a vestir com uma roupa normal. A personagem estrebuchou, atirou-me pedras, chamou-me nomes. Pacientemente, calcei-a com umas pequenas pantufas farfalhudas e vesti-a com um pijama de algodão. A personagem, enraivecida, cuspiu-me. Na cara. Gritou novamente: "Quero o meu roupão". E depois começou a chorar. Desesperadamente.
Passados dez minutos, perdi a paciência: agarrei na personagem pelos colarinhos, enfiei-a na boca e engoli-a. Pronto, já não havia personagem para ninguém.
Ri-me, aliviada: o roupão sem fim, agora, era só meu.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Então como estão os seus filhos?

- Olá, olá! Há quanto tempo! Então como estão os seus filhos?
- Desculpe, deve estar a confundir-me com alguém.
- Não, não estou! É mesmo consigo.
- Ai sim?
- Sim, sim, claro! Então como estão os seus filhos?
- Os meus filhos?!
- Sim, como estão eles? Enormes já, não?
- Não, minha senhora. Eu não tenho filhos.
- Ai, não me diga!
- Não, não tenho.
- Uma rapariga tão nova, tão cheia de força...
- Pois, pois! Mas não tenho.
- Ó, que pena! Então e se tivesse?
- Se tivesse?!
- Sim, se tivesse! Como estariam os seus filhos?
- Ó minha senhora, mas eu já lhe disse que não tenho filhos.
- Está bem. Mas e se tivesse?
- Se tivesse?!
- Sim, se tivesse filhos.
- Olhe, tinha-os!
- E como estariam os seus filhos então?
- Sei lá. Olhe, estariam bem, acho.
- Aaaaah, estariam bem! Ainda bem!
- Ainda bem?!
- Ainda bem que estão bem!
- Mas, minha senhora, isto era só uma mera hipótese. Se eles existissem!
- Sim, eu sei! Mas você acha que eles estão bem! Ainda bem que você acha isso.
- Mas porquê "ainda bem"?
- Porque sim, preocupo-me muito com os seus filhos.
- Mas eu já lhe disse que não tenho filhos.
- Está bem, já percebi. Mas podia ter.
- Podia, sim, mas não tenho.
- Mas se tivesse, eles estariam bem. É o que interessa.
- Ó minha senhora, isso não interessa nada. Se eu não tenho filhos, não interessa nada.
- Mas é como se os tivesse.
- Como se os tivesse?!
- Sim, claro. Se quer bem aos seus filhos, é como se os tivesse.
- Não, não é. Como poderia ser?! Eu nunca os conheci! Como poderia ser mãe deles? Não tenho filhos, percebe? Meta isso na cabeça.
- Sim, meto, claro! Mas não se irrite. Você é jovem. Ainda está muito a tempo.
- Muito a tempo?! Muito a tempo de quê?! De ter filhos?!
- Sim, claro. Ainda está a tempo.
- Mas, ó minha senhora, quem é que lhe disse que eu quero ter filhos?
- Ora essa, a menina ainda agora disse que queria!
- O quê?! Eu não disse nada disso.
- Você disse: "Estariam bem". Se tivesse filhos, "estariam bem"! E claro que estariam! Porque você trataria deles, seria uma mãe para eles. É óbvio que a menina quer ter filhos.
- Ó minha senhora, você nem me conhece! Nunca me viu na vida! Como é que pode estar a dizer isso?
- Menina, mãe é mãe. Se você quer bem aos seus filhos, é mãe. Mesmo que eles não existam.
- Desculpe, minha senhora, mas isso não faz grande sentido.
- Faz, sim. Todo o sentido… Olhe, vou ter de sair aqui nesta paragem, infelizmente.
- Ok! Passe bem, minha senhora.
- Você também. Adorei falar consigo!
- Ainda bem!
- Dê cumprimentos meus aos seus filhos.
- Olhe, gostava muito, mas não posso! É que eles não existem.
- Então invente-os! Se eles não existem, têm de ser inventados! Não acha?
- Não, não acho.
- Claro que acha, ora então! Dê-lhes cumprimentos meus, está bem?
- Já lhe disse que não posso.
- Também não precisa de ser já, querida. Dê-lhes depois.
- Depois?!
- Sim, depois.
- Depois, quando?
- Quando eles nascerem.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Debaixo da terra

Descemos umas escadas e estamos numa estação de metro. Debaixo da terra.
À nossa frente vem um rapaz que é quase um homem. Ou melhor, um rapaz que quer ser homem e não sabe. Ou que não sabe ser homem, mas quer sê-lo. Ou o contrário: que sabe ser e não quer. De qualquer das formas, pelo compasso das pernas e a posição minguante, há qualquer coisa que o rapaz quer e não sabe. Ou que sabe e não quer.
É estudante. Tem uma mochila às costas, logo deve ser. Frequenta um instituto técnico ou coisa do género. Passa nas práticas e chumba nas teóricas. Filho único, arriscamos. De mãe trabalhadora e pai ausente (ou, pelo menos, pouco presente).
Não se pode ter tudo, claro, mas o rapaz não sabe disso. Não quer isso. Não aceita.
Uma luz ao fundo do túnel, um som tempestuoso de Juízo Final e o metro chega. É sempre assim, por isso ninguém se assusta. Está quase vazio o metro por causa da hora (é cedo).
O rapaz não entra.
Achamos isto estranho e ficamos de pé atrás, mas depois percebemos: passam nesta estação duas linhas de metro, uma que vai para Norte, outra que vai para Sudoeste. O rapaz vai para cima e não para baixo. Logo, não entra.
O rapaz encosta-se à parede. Flecte um joelho e calca a parede com o pé direito. Tira do bolso um telemóvel demorado, consulta-o. O aparelho emite uma luz esquisita, igual à dos objectos voadores não identificados. Do outro bolso saem uns fios negros atrapalhados que sobem pelo peito como plantas trepadeiras e desaparecem nos ouvidos: uns headphones de enfiar até aos tímpanos. (O rapaz gosta do que ouve, ou pelo menos parece: abana a cabeça em consonância.)
Continua especado a olhar para o telemóvel, vai carregando nas teclas todas, não sabemos o que faz.
Chega outro metro. Vai para Norte. O rapaz descola o pé da parede e entra na primeira carruagem. (Nós também.) O rapaz senta-se. (Nós não. Vamos bem de pé.)
O rapaz pousa a mochila no colo, abre-a, tira um jornal equivocado. Trata-se possivelmente de uma edição estudantil a contestar o sistema educativo. Consulta a publicação de trás para a frente, salta os artigos. Não lê, vê. Fecha o jornal, gira-o na mão e interessa-se pela contracapa: um anúncio qualquer de um concerto ou de uma festa.
Regressa ao telemóvel, à luz não identificada. De repente levanta-se, sai naquela estação.
Ficamos a vê-lo desaparecer na plataforma. E o metro continua. A vida também.
Era um rapaz subterrâneo, submerso, triste.
Deve ser estranho crescer assim: sem contemplação.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Banda sonora para a manhã de quarta-feira

Acordou mais ou menos cedo. Isto é, tinha tempo. Mas não muito. Apenas o suficiente.
Vestiu-se só. Não tomou banho (já tinha tomado um duche na noite anterior).
Foi à cozinha. Para pôr o café a fazer.
Pôs.
Enquanto a água borbulhava na máquina, foi até à sala. No armário do fundo havia paralelepípedos com botões. Carregou num desses botões, depois noutro. Nesse instante, uma música preencheu o espaço.
Regulou o volume como quem controla a temperatura da água: primeiro para a direita, depois para a esquerda.
Era uma música sem voz. Ou seja, instrumental. Isto é, uma música com voz de instrumento. A mulher tentava explicar por dentro o que ouvia. Era uma nódoa em música, já se sabe. Mas identifica.
O instrumento. Uma guitarra.
A melodia era uma boa banda sonora para a manhã de quarta-feira, tinha um certo ar de viagem pelo Sul da Europa, com praia ao fundo e gente na esplanada. Era uma música boa, sim. Ajudava a disfarçar o cinzento do céu e o cansaço muito inchado das pálpebras.
(Sempre tivera olheiras. Desde que nascera, explicava a mãe. Um desgosto.)
Quem será o guitarrista?, pergunta-se, mas não quer realmente saber: há outras prioridades na vida, como beber café.
A propósito deste pensamento, regressou à cozinha. Passado pouco tempo reapareceu na sala. Trazia um tabuleiro nas mãos. E nele vinham deitados os talheres e um prato, a cafeteira e uma chávena que dizia: Dreams come true. Num dos cantos vinha escondido um pacote de manteiga. Pousou o tabuleiro na mesa de jantar e voltou à cozinha. Regressou com um saco de pão de forma que se chamava British breakfast.
A música acabou entretanto e ela teve pena. Teve realmente pena, imensa pena. Talvez se viesse a esquecer da melodia muito em breve, ou mesmo daqui a nada, parecia-lhe até que já se esquecia, que já se tinha esquecido. Uma música de viagem pelo Sul da Europa não devia acabar. Nunca. Ou pelo menos, não agora. Nesta manhã de quarta-feira. Como se chamaria a música? Como dar um nome a uma música sem voz?
Interrompeu o pensamento para ouvir o homem da rádio. Contava qualquer coisa. Um tom monocórdico, igual às manhãs. Ela pediu um desejo: Diz o nome do guitarrista, mas o homem da rádio não disse nada disso, tinha naturalmente outras prioridades.
O preto ganhou as eleições. Foi o que disse o homem da rádio. Não assim, claro. Ela é que já tinha processado a informação. Não se apercebera de que o pensamento fizera isto, muito menos de que substituíra a pessoa pela cor.
Parecia contente. Ele, o homem da rádio. (Estalavam-lhe pequenas esperanças na boca.) Ela não. Estava igual. Concentrava-se na tarefa árdua de barrar o pão e arqueava um pouco a testa por causa disso.
Bebeu café. Bebeu mais café. Comeu pão com manteiga. Pensou: E a música? Já não me lembro da música. Encolhe os ombros e escuta.
If there is anyone out there who still doubts that America is a place where all things are possible, who still wonders if the dream of our founders is alive in our time; who still questions the power of our democracy, tonight is your answer.
Do saco tirou mais uma fatia, barrou-a atenciosamente. Enquanto o fazia, pensava coisas boas sobre o preto. Por exemplo, que era bom orador. Que tinha coragem. Que era bonito. Que a sua voz também era uma banda sonora para aquela manhã de quarta-feira.
Bebeu café. A chávena dizia: Dreams come true e ela riu-se.
Disso. Dos sonhos. Dos seus. Dos sonhos dos outros. Daquele outro sonho. Da história da escravidão, daquele país feito de escravos, do descendente dos escravos que se fez rei. Perdão, presidente.
(Era a própria mulher que se corrigia.)
Se fosse rei, teria mais piada. Seria digno de conto tradicional, ao bom estilo dos irmãos Grimm ou do Andersen. Presidente já não servia. Era demasiado moderno.
Comeu pão com manteiga.
Pergunta-se: Como será a vida de alguém que muda o mundo? Que pode mudar o mundo? Que vai mudar o mundo? Que quer mudar o mundo? Que pessoa é essa? Para onde vai?
Admite: Antes ser música. Sim, antes música. Sem nome nem voz. Uma melodia que ninguém conheça, mas que toda a gente tenha ouvido. Uma vez na vida. De manhãzinha. Na rádio. Uma banda sonora para a manhã de quarta-feira.
Antes música, que presidente, pensava a mulher enquanto saía de casa.
Tinha outros sonhos.
Outras prioridades.
(Como, por exemplo, tomar o pequeno-almoço de manhã).

terça-feira, 4 de novembro de 2008

À hora do lanche

Para o mano, que fez 30.

De vez em quando lembro-me disto: de sermos miúdos e comermos que nem uns brutos à hora do lanche. A mãe a dizer qualquer coisa e nós a rir de outra qualquer. Sentados na cozinha, frente a frente. Perguntávamos um ao outro: Sabes o que é que eu estou a comer? Sabes? Sabes? E depois abríamos a boca para mostrar a comida mastigada.
Um nojo.
Repetíamos a pergunta até não haver mais pão.
De vez em quando, fazíamos bolinhas com o miolo. Atirávamo-las um ao outro ou jogávamos ao berlinde.
Comíamos chocolate em pó às colheradas. Se a mãe soubesse, matava-nos.
Suchard Express. Sobretudo, Suchard Express. Depois veio o Ovomaltine, mas não era tão bom.
Também gozávamos com os professores. Imitávamos as vozes e os gestos, ríamos que nem uns perdidos. Havia aquele professor da "crosta terrestre", coitado. E as histórias do Bernardo, que só fazia asneiras nas aulas.
Também víamos televisão. A rua Sésamo, talvez.
(De resto, não nos gramávamos, nem sequer brincávamos juntos nas horas mortas. Mas à hora do lanche, não era assim. Divertíamo-nos à brava. E comíamos que nem uns brutos.)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Estados muito Unidos

Coloquemos a seguinte pergunta:

Se os Estados muito Unidos fossem um corpo humano
com cabeça, tronco e membros,
o que seria o Alasca?

Sim, o que seria o Alasca? Veja o mapa e diga-me o que seria o Alasca.
É uma pergunta interessante.
Para ajudar o leitor a dar uma resposta, resolvemos fazer uma coisa muito americana, nomeadamente uma multiple choice question que é, basicamente, uma pergunta seguida de respostas: umas erradas e outras correctas. A pergunta vai atrás e as respostas à frente. Cá estão elas:

Se os Estados fossem um corpo humano com cabeça, tronco e membros, o Alasca seria…

a) …uma cabeça sem cavaleiro.
b) …o cu de Judas.
c) …um cão rafeiro.


Clique na sua resposta ou veja a sua resposta em baixo.

Se respondeu a)

Leia a pergunta aqui.

Na sua opinião, o Alasca seria uma cabeça sem cavaleiro.

Sim, percebo perfeitamente a sua escolha. À primeira vista somos tentados a dizer que o Alasca seria, de facto, uma cabeça separada do resto do corpo. Flutuante, fantasmagórica. Esta imagem traz-nos naturalmente à cabeça o tal cavaleiro sem a dita: uma lenda inventada - lá está! - por um americano, também ele com nome capital.
Infelizmente, esta resposta não está correcta. Se pretende saber qual a resposta certa, clique aqui ou continue a ler em baixo.

Se respondeu b)

Leia a pergunta aqui.

Na sua opinião, o Alasca seria o cu de Judas.

Ena! Você foi suficientemente perspicaz para virar o mapa ao contrário (e nunca o mundo, que esse está sempre em pé, para onde quer que o rodemos).
Neste caso, estando a América do avesso, somos obrigados a admitir que o Alasca passa de cabeça sem cavaleiro a cu de Judas ou a calcanhar de Aquiles ou a qualquer coisa no final do corpo, muito separado, muito desunido.
(Por exemplo, se os Estados Unidos defecassem, o Alasca poderia ser o seu resultado. No entanto, esta resposta não consta das múltiplas escolhas porque o Alasca também tem direito à vida. E como sabemos, a merda não vive.)
E estando o Alasca no final do corpo, o cu parece ser a resposta apropriada.
Infelizmente, esta resposta não é correcta. Já se sabe que não existem cus separados do corpo.
Se pretende saber qual a resposta certa, clique aqui ou continue a ler em baixo.

Se respondeu c)

Leia a pergunta aqui.

Na sua opinião, o Alasca seria um cão rafeiro.

Parabéns! Você acertou na resposta certa. Realmente, estando separado dos Estados muito Unidos, e caso estes fossem um corpo humano com cabeça, tronco e membros, o Alasca só poderia consistir num outro corpo. Independente dos Estados mais unidos, como é evidente, mas seguindo-os sempre e para todo o lado, mais ou menos perto, mais ou menos longe, fielmente. Concluímos assim que o Alasca seria, nem mais nem menos, do que um animal de estimação. Amicíssimo do corpo muito unido.
Um cão, portanto. Branco como a neve, com a cabeça naturalmente fria. Muito fria. (Não seria o Alasca se não tivesse a cabeça muito fria.) Tão fria que o cão não a usaria. Os seus próprios membros também não a coçariam.
E os outros Estados, por uma questão de comodidade, também não dariam festinhas no seu cocuruto gelado. O Alasca, coitado, seria um cão de circunstância. Muito carente, desamado, desacarinhado, desunido. O Alasca dormiria, comeria, ladraria. Nada mais.
E portanto, se os Estados Unidos fossem um corpo humano com cabeça, tronco e membros, o Alasca seria um cão, com a sua cabeça, o seu tronco e os seus membros. Provavelmente feio. Rafeiro. Doente. Cheio de pulgas carraças.

(E estava eu neste exercício de escrita quando me apercebi do seguinte: Ora bolas, a Sarah Palin é governadora do Alasca! Que triste coincidência. E vai daí, voltei atrás e substituí as pulgas por carraças.)