sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Do dia em que foi para casa

Levanta-se às 8h, mas devia levantar-se mais cedo. Por causa disso, acelera o passo. Puxa o autoclismo e o dia começa. Bebe um copo de água e queixa-se (a água é muito fria no Inverno). Toma um duche rápido e eficaz. Enquanto o faz, não pensa em nada. Seca-se e veste o pijama. Depois repara que não devia ter vestido o pijama e pragueja baixinho. Despe o pijama, veste outra coisa. Vai até à sala. Nessa altura já vem de casaco e cachecol vestidos. Abre as cortinas, espreita. O céu cinzento, a rua cinzenta, tudo cinzento. Encolhe os ombros. É melhor que preto. Canta um fado. Não, não canta, esboça palavras na boca. Não, não é um fado, é outra coisa. Uma melodia doce. Sobre Lisboa, parece. Bela canção. Vai à cozinha, regressa com um regador em punho. Rega as plantas do parapeito (são muito bonitas, apesar do céu cinzento). Vai até ao quarto, beija a testa de quem ficou na cama, sai de casa, desce as escadas, entra no mundo. O vizinho polaco passeia o cão, cumprimentam-se com um aceno. (Na entrada do metro, mesmo antes das escadas rolantes, há, pelo menos, vinte beatas no chão. Toda a gente apaga o cigarro no mesmo sítio, é um fenómeno curioso.) O metro está a chegar e a mulher corre para ele. Vem cheio, entulhado, impossível. Por isso, não entra, espera pelo próximo. Enquanto espera, vê as pessoas passar. As mulheres não gostam que olhem para elas. Os homens gostam. Os cães também. Algumas crianças adoram, outras escondem-se atrás da mãe. Entra na última carruagem e sai duas paragens depois. Encontra um colega. Dois colegas. Três colegas. Ou nenhum. Hoje, por exemplo, não tinha encontrado ninguém, subia sozinha a rua. Pára nos semáforos. Algumas pessoas não esperam pelo sinal verde, atravessam a rua a correr. Ela não. Espera. Entra no edifício e abre a mala para procurar o cartão. Em vez disso, tira as chaves de casa. Devolve-as à mala e tira o cartão. As portas abrem-se. O segurança pisca o olho às mulheres, é atrevido. Apanha o elevador para o quinto andar, diz uma frase de circunstância para os colegas que sobem com ela. Algumas pessoas detestam frases de circunstância, não respondem. Entra no gabinete, abre a janela, liga o computador. Tem uma chamada não atendida. Do chefe. Liga de volta. Se podia fazer uma nota da mesa até às onze, para sair ao meio-dia. Com certeza. Desliga o telefone, sai do gabinete, desce as escadas, cumprimenta os colegas, cumprimenta o chefe, recebe o documento, sobe as escadas, entra no gabinete, lê a nota. É pequena. Pega na caneca e vai até ao café do primeiro andar. Às vezes esquece-se da caneca. Por norma, esquece-se da caneca. Um café, uma garrafa de água, um pão-de-leite. Paga. Senta-se com os colegas, bebe, fala, come. Não devia falar de boca cheia, mas fala. Paciência. Volta para o gabinete, trabalha. Alguém telefona. É uma colega. Se quer ir almoçar à cantina. Claro, almoçar na cantina é sempre bom. Ao meio-dia e meia. Imprime o documento, lê o documento, corrige. Não gosta de certas frases, de certas palavras, não sabe como resolvê-las. Consulta páginas na Internet, abre dicionários, fecha dicionários. Escreve, risca, reescreve. Imprime novamente. Sai do gabinete, desce as escadas, entrega o documento, explica qualquer coisa, diz: "Até logo!". Sobe as escadas, entra no gabinete, continua qualquer coisa do dia anterior. Mais interessante do que a nota da mesa. Ao meio-dia e vinte e cinco sai do gabinete, desce as escadas, atravessa a ponte, entra no outro edifício, segue pelo corredor, apanha o elevador, sai no primeiro e espera em frente à cantina. A colega atrasa-se dois minutos, nada de grave, riem-se de qualquer coisa. Hoje havia espetadas, bolonhesa e uma espécie de empadão com conteúdo imperceptível. Escolhe as espetadas. Espera na fila. Pega no tabuleiro, espera noutra fila, paga, senta-se numa mesa sem fim e espera pela colega, que chega, pousa o tabuleiro e se senta. Comem. Contam coisas, imensas coisas, são muito expressivas nos gestos e nas palavras. Acabam de comer, vão ao café, bebem café, separam-se. Cada uma para o seu edifício. Continuamos com a mulher inicial. Apanha o elevador, sai do elevador, vira à direita, segue o corredor, atravessa a ponte, entra no seu edifício, sobe as escadas, entra no gabinete. Nas restantes horas fica a maior parte do tempo a olhar para o computador. Por vezes, imprime folhas e lê no papel. Também vai à casa de banho. Encontra colegas por lá, conversam animadamente enquanto lavam as mãos. (Algumas colegas não falam, dizem só bom dia ou boa tarde.). Às cinco e meia sai a correr para apanhar a perfumaria aberta. Cheira um perfume, resolve comprar 50 mililitros, escolhe um verniz para as unhas, uma água-de-colónia. Pede à menina para embrulhar tudo em separado. Tira da carteira uma lista, risca alguns nomes. Pensa nas prendas que faltam, distrai-se com as ideias. Quer pagar e, em vez da carteira, tira as chaves de casa. Devolve-as à mala, paga com o multibanco. Sai da loja, entra no metro. Desce duas paragens depois, vai ao supermercado. Tinha-se esquecido dos sacos, esquecia-se sempre dos sacos. Azar. Compra peitos de frango, leite, pão, queijo, salmão fumado, um champô da Dove, cotonetes, papel higiénico, amaciador para a roupa, uma alface, um quarto de abóbora, maçãs, uvas, pêra abacate e pinhões. Na fila, as pessoas são muito sérias. Enquanto se passeiam pelo supermercado não são tão sérias. Paga novamente com o multibanco. Despede-se da senhora da caixa, vai para casa. Caminha devagar por causa do peso, doem-lhe os braços a meio do caminho. O vizinho polaco está a passear o cão, diz-lhe qualquer coisa em italiano, não sabemos porquê. Entra em casa, liga o computador, põe música. Talvez Seasick. Enquanto ouve, arruma as compras. O marido chega. Vem a ouvir outra música no iPod. Cozinham juntos. Ou não. Depende. Comem juntos. Sempre. Nem sempre lavam a loiça a seguir. Têm pressa. Saem de casa, vão a qualquer lado. Atrasados, sempre atrasados. Não gostam de chegar atrasados, mas chegam. Sempre. Uma peça de teatro, provavelmente. Ou uma festa em casa de alguém. Ou um concerto na AB. É menos comum irem ao cinema. É estranho que assim seja: toda a gente vai ao cinema. Comentam isso, interessam-se por isso, conversam sobre todas as coisas. Chegam ao sítio que os espera. Ela quer encontrar os bilhetes ou a carteira ou os óculos e, em vez disso, tira as chaves de casa. Mais uma vez, as chaves de casa. Conclui que quer estar em casa e não está. Quer ir para casa e não vai. Apercebe-se de que tem saudades de casa. Imensas saudades. Anuncia: "Vou para casa". E vai.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Domingo com neve

A neve não cai, pousa.
Os meus olhos emocionam-se com a sua leveza.
O resto do meu corpo não. Gosta de sensações mais fortes.
Como Ray Charles. E chocolate quente.
O resto do corpo não está em sintonia com os meus olhos.
Para satisfação da alma.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O escritor e a cidade

O escritor estava no quarto a escrever. Sentava-se à escrivaninha e rabiscava num caderno liso. O escritor todo-poderoso escrevia sobre a cidade, sempre sobre a cidade, aquela cidade, a sua. O texto que andava a escrever desde ontem chamava-se justamente Cidade.
O escritor fez uma pausa na escrita. Para ir à casa de banho e lavar as mãos. De vez em quando fazia isto para refrescar não as mãos, mas as ideias. Quando regressou ao seu lugar, olhou pela janela. Para espreitar a cidade. Aquela cidade. Pensou: "Na quietude de coisa já vivida".
Nesse momento, mal o pensamento ocorrera, o escritor irritou-se, fartou-se, desesperou-se. Não da escrita, não do quarto, não da janela, não das mãos, não do pensamento, mas da cidade. Daquela cidade. Da sua cidade.
O escritor todo-poderoso não fez mais nada: agarrou na cidade pelos cabelos, amachucou-a e deitou-a para o cesto dos papéis. Depois, aliviado, regressou à escrita. Ao tal texto que se chamava Cidade.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Mulher magríssima

Andam imensas mulheres no mercado da Flagey, mas hoje só nos interessa aquela ali ao fundo, muito magra e direita. Tem cabelos cinza, muito esticados e enrolados para dentro. Caem por cima dos ombros como cortinas. Os lábios são gretados e o queixo também. A testa também. Na verdade, o rosto todo. (Vista ao perto, a cara desta mulher mais parece um puzzle de mil peças, de dez mil peças.)
Magríssima. Pele a mais para os ossos salientes. Pena não termos qualquer interesse pelo corpo humano, porque se tivéssemos poderíamos até estudar anatomia a partir do corpo desta mulher: na anca, depois do cinto teso de cabedal, avistamos o extremo do fémur, o grande trocanter, e mais abaixo a rótula e depois a tíbia, muito saliente e comprida, o mais longo dos ossos. Virou-nos as costas a mulher magra, está a pagar ao vendedor. Daqui se vêm as omoplatas e as costelas. Uma mulher magríssima com uma certa força na pose. Deve fazer yoga ou stretching, uma dessas aulas modernas, pois tem a coluna direitíssima e a pélvis bem centrada. Vem ao mercado comprar mangas.
Está a subir agora a Rue Malibran com a caixa ao colo. Uma caixa de cartão. Uns três quilos de mangas, se não mais. Tem o carro estacionado a meio da rua, um renault twingo azul escuro, com três portas. Abre o porta-bagagens, atira com a caixa lá para dentro, fecha o porta-bagagens, contorna o carro, entra no carro. Parece satisfeita.
A mulher magríssima vem todos os domingos ao mercado comprar mangas. A destreza dos movimentos denunciam-lhe o hábito. Se viesse comprar laranjas, ou cebolas, ou batatas, ou maçãs, ou café, ou cigarros, ou revistas cor-de-rosa, seria uma mulher normal. Mas não, esta mulher não quer nada disso.
É louca por mangas. Come mangas desenfreadamente.
Um vício, no mínimo, esquisito.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O senhor do chapéu II

Eu e o narrador voltámos ao parque no sábado. Eram onze horas da manhã e o sol fraquejava por causa das nuvens feias que povoavam o céu. O frio não nos desviou do nosso objectivo: o senhor do chapéu.
Não tardámos a encontrá-lo.
Hoje estava sentado num banco de jardim. A cauda do fraque descia pelo banco até ao chão e a cartola descansava na bengala, que estava, por sua vez, apoiada nas costas do banco. Um quadro engraçado de se ver. O senhor tinha as costas muito direitas e lia uma banda desenhada com o respeito de quem lê o novo testamento: os braços elevados e uma concentração muito séria. Quando passámos em frente ao banco, pudemos ver a capa do livro: Objectif Lune.
Sentámo-nos mais longe, a uns cinquenta metros, num banco de jardim que tinha vista para o seu. Ali ficámos muito tempo e, a certa altura, deixámos mesmo de escrever as nossas preciosas notas por já nos doerem todos os ossos das mãos. Estava frio, imenso frio. A esta altura já as nuvens do céu eram agora iguais às que saíam da boca. O senhor do chapéu continuava sem chapéu, concentrado na leitura.
Uma rapariga corajosa passa. Além das previsíveis calças de ganga e das botas de salto raso, traz um gorro enfiado na cabeça, luvas grossas, casaco almofadado, cachecol e uma trela colorida, a que vem preso um cão. O cão é branco, tem imenso pêlo, não parece ter frio.
Passam agora em frente ao senhor do chapéu que levanta os olhos do seu objectivo lunático para contemplar a dona e o domesticado.
A moça é bonita, é certo, quer para um mágico, quer para um cientista, mas o que nos surpreende, o que verdadeiramente nos ataca o peito como coisa jamais vista é o facto de o homem se ter levantado repentinamente para agarrar no cão e o enfiar pela goela abaixo da cartola. Isto aconteceu num só segundo, não mais. O cão nem teve tempo para ganir, subitamente já não estava. Com o choque, a rapariga nem gritou, dir-se-ia que tinha assistido ao desaparecimento do cão quase serenamente, não fosse ter começado a correr desenfreada pelo parque, com uns guinchos na voz que mais pareciam o latir de um cão.
Eu e o narrador decidimos agir imediatamente. Cinquenta metros depois estávamos em frente ao senhor do chapéu.
- Desculpe, você acabou de roubar um cão!
- Sim, o Milu! – e mostrou-nos uma imagem do Milu ao lado do Tintim.
- Você não pode roubar cães!
- Ai não?! Peço imensa desculpa.
- Onde está o cão?
- Na cartola, não se preocupem. Algum de vocês já foi à lua?
- Não, nunca fomos. E você?
- Também não, mas gostava. Sabem onde posso encontrar o professor Girassol?
- Não, não sabemos.
- E o Tintim?
- Também não. Desculpe, mas vai ter de devolver o cão. Onde está ele?
- Na cartola, já vos disse.
- Tem de devolvê-lo imediatamente. Não pode andar aí a roubar cães às pessoas. Além de que esse cão não é o Milu. É parecido com o Milu, mas não é o Milu.
- Ai não?!
- Não. Esses cães chamam-se Fox Terrier de pêlo duro.
- Pêlo duro é apelido?
- Não. É a raça. Fox Terrier de pêlo duro é a raça. O tipo de cão, percebe?
- Ah, ok. Não haverá outros de pêlo mole?
- Sim, claro.
- Então queria antes um desses. Ter pêlo duro é desagradável para quem dá festinhas, não acha?
- Acho!
- Sabe onde posso encontrar um cão de pêlo mole?
- Sim, sei. Eu levo-o ali a um canil para você escolher o cão que quiser.
- Obrigadíssimo. Vou então tirar o Milu da cartola.
O senhor meteu a mão no chapéu brilhante, mas, em vez de um Fox Terrier, tirou de lá outro animal, nomeadamente um coelho. No primeiro momento nenhum dos três disse nada, ficámos apenas a olhar para o roedor desconhecido. O senhor parecia muito desiludido, abanava a cabeça repetidamente. A única coisa que o cão e aquele coelho tinham em comum era a cor.
- Peço-vos imensa desculpa. De vez em quando acontece-me isto: as coisas que entram na cartola transformam-se em coelhos.
- A sério?! Então porquê?
- Não sei. Deve ser um erro no software.
- No software?
- Sim, no software.
- No software da cartola?
- Sim.
- Você é mágico?
- Não.
- Ah, então a nossa hipótese preferida comprova-se! Essa cartola é uma máquina do tempo.
- Sim, é verdade!
- Você vem do passado?
- Não, venho do futuro.
- Do futuro?!
- Sim, do futuro.
- Assim vestido?!
- Sim.
- Você é cientista?
- Não.
- Então é o quê?!
- Sou informático.
Em silêncio, eu e o narrador acompanhámos o senhor ao canil. Depois viemos para casa. Estávamos deveras tristes por a nossa personagem ser, afinal, um informático.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O senhor de chapéu I

O senhor que passeia no parque traz um chapéu na cabeça. Ao longe, e apesar de ser preto, brilha. O chapéu, não o senhor.
(O senhor não é preto, é branco.)
O chapéu, que é preto, brilha sempre. Com ou sem sol. Brilha.
Hoje, por exemplo, não está sol. Há nuvens escuras no céu, quase chove, e no entanto o chapéu deste senhor brilha. Ao longe e ao perto.
Além de preto, é alto, magro, bem parecido, tem umas asas curtas. Perdão, abas: o chapéu tem abas curtas.
Trata-se evidentemente de uma cartola. Insisto: o senhor que passeia no parque traz uma cartola na cabeça. Isto provoca em nós (em mim e no narrador) tal estranheza que gostaríamos de o seguir. Infelizmente nenhum dos dois tem tempo e ficamos só a observar.
O senhor anda muito devagar. De vez em quando pára, fica a olhar as árvores e as pessoas, tira um relógio do bolso, consulta as horas.
Para ajudar no lento compassar do passo, traz uma bengala, embora não se apoie nela. Em vez disso, empurra-a para a frente com força, poisa-a assertivamente no chão - os movimentos são largos e perigosos. De vez em quando gira a bengala no ar.
O senhor que passeia no parque vem vestido de fraque. O peito é inchado e a cauda comprida: parece um melro. O senhor que passeia no parque parece um melro. De facto.
Tem também um lenço de seda ao pescoço.
(Um homem de se lhe tirar o chapéu.)
Quero saber de onde vem este homem, para onde vai, qual a sua profissão, intenção, confusão. O narrador diz-me: Louco não é. Realmente, não é. Actor também não.*
Portanto, das duas, uma: o senhor que passeia no parque ou é mágico, ou é cientista. E nunca os dois ao mesmo tempo.
Se for mágico, tira coelhinhos brancos da cartola.
Se for cientista, descobriu a máquina do tempo e anda a passear no futuro.
Qualquer uma das hipóteses nos parece plausível, por isso, colocamos as duas.
Eu e o narrador voltamos para casa. Para investigar o caso.

*O narrador desta história não é omnisciente, mas reserva-se o direito de saber certas coisas. Uma delas é esta: o senhor que se passeia no parque não é louco nem actor.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

No quiosque

Saiu de casa para comprar um postal. Disse: "Vou comprar um postal" e foi. Abriu a porta, saiu, fechou-a, pôs-se a caminho.
Do quiosque. Dos jornais. Da rua.
Qualquer coisa o fascina no quiosque. Várias coisas. Todas as coisas. Não, afinal são só três.
A primeira é a porta. Um pedaço de madeira e vidro, muito leve, muito branco. Quando se abre ou fecha, toca um sino. Ou dois. Não dá bem para perceber. O som é parecido com os badalos que se ouvem no monte: com os chocalhos das vacas, das ovelhas, das cabras (e não com os sinos das igrejas).
A segunda (que não é coisa, mas sim pessoa) é a senhora. Aquela senhora. A do quiosque. Olha para a porta sempre que o sino toca. Para ver quem entra, quem sai, quem fica. Está sempre à caixa. Uma senhora amável. Que se pode amar. Que se ama. O homem que quer comprar um postal desconfia que os cabelos da senhora do quiosque da rua cheiram a tinta de impressão, que o seu rosto é de papel ou esferovite e não de carne e osso. Frágil. Tem óculos quadrados e neles se espelham todas as letras de todos os jornais.
A terceira coisa que o fascina é o próprio papel. Os sentidos segundo o papel. O cheiro do papel, a textura, os dedos, a voz, o peso. Papel mate, papel couchê, papel bouffant, papel de jornal, a arte de ser papel. Por agora, esquece-se desta paixão pelo papel. Tem outra: quer comprar um postal.
Foi até ao fundo do quiosque. Onde está a secção de postais. São muitos. Imensos. Demasiados. Uns dizem coisas, outros só uma palavra, outros nada de nada. Há postais de tudo. Aniversário, casamento, nascimento, baptizado, Natal, Páscoa. Postais para dizer que se ama. Para desejar as melhoras. Para pedir desculpa. O homem inquieta-se, confunde-se. Fica duas horas a ver postais. Uma decisão difícil. No final, escolheu um postal que não dizia nada: na frente tem uma azinheira no meio de um prado. No verso nada.
O homem que queria um postal já tinha o postal. Estava contente. Foi pagar. A senhora de papel recebe-o ao balcão. Diz:
- Escolheu um postal bonito.
- Gosta?
- Gosto.
- Estava ali um bocado indeciso, sabe?
- Sei, pois! Ficou duas horas a ver postais!
- Verdade?!
- Verdade. É tudo?
- Não. Queria também um selo, por favor.
- Correio nacional?
- Sim.
- Normal?
- Não. Correio azul, por favor.
- Para chegar mais rápido, estou a ver.
- Sim, o mais rápido possível.
O homem pagou. Guardou o selo na carteira, fechou a carteira, devolveu-a ao bolso. Já estava a preparar-se para sair, quando reparou no seguinte: ao lado da caixa registadora havia um pequeno mostrador com cartões de visita. Do quiosque. Era um cartão muito simples em fundo branco. O homem tirou um.
Assim já tinha o endereço. Com código postal e tudo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Roupão sem fim

Hoje tinha uma personagem no bolso. Dei por ela quando estava à procura das chaves de casa. Tirei-a cuidadosamente, mas ela não acabava de sair. Pensei: "É uma personagem sem fim", mas depois percebi que era o roupão.
Muito azul. E sem fim.
A personagem era mínima: tinha braços e pernas curtíssimos. Para não a magoar, pousei-a na bancada da cozinha e continuei a tirar roupão do bolso. Enquanto isso, a personagem começou a andar pelo lavatório. A pobre coitada tropeçava a cada passo, metia dó. Sentei-a numa cadeira para ela comer a sopa mas a personagem não conseguia agarrar na colher, tive de lhe arregaçar as mangas durante horas. Como não havia um fim para aquele roupão, despi a personagem e devolvi o roupão azul ao bolso.
Anunciei: "Pronto, acabou-se o roupão".
A personagem assustou-se. Depois enervou-se. Depois gritou: "Quero o meu roupão". Expliquei-lhe que aquele roupão era impossível, que tinha de a vestir com uma roupa normal. A personagem estrebuchou, atirou-me pedras, chamou-me nomes. Pacientemente, calcei-a com umas pequenas pantufas farfalhudas e vesti-a com um pijama de algodão. A personagem, enraivecida, cuspiu-me. Na cara. Gritou novamente: "Quero o meu roupão". E depois começou a chorar. Desesperadamente.
Passados dez minutos, perdi a paciência: agarrei na personagem pelos colarinhos, enfiei-a na boca e engoli-a. Pronto, já não havia personagem para ninguém.
Ri-me, aliviada: o roupão sem fim, agora, era só meu.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Então como estão os seus filhos?

- Olá, olá! Há quanto tempo! Então como estão os seus filhos?
- Desculpe, deve estar a confundir-me com alguém.
- Não, não estou! É mesmo consigo.
- Ai sim?
- Sim, sim, claro! Então como estão os seus filhos?
- Os meus filhos?!
- Sim, como estão eles? Enormes já, não?
- Não, minha senhora. Eu não tenho filhos.
- Ai, não me diga!
- Não, não tenho.
- Uma rapariga tão nova, tão cheia de força...
- Pois, pois! Mas não tenho.
- Ó, que pena! Então e se tivesse?
- Se tivesse?!
- Sim, se tivesse! Como estariam os seus filhos?
- Ó minha senhora, mas eu já lhe disse que não tenho filhos.
- Está bem. Mas e se tivesse?
- Se tivesse?!
- Sim, se tivesse filhos.
- Olhe, tinha-os!
- E como estariam os seus filhos então?
- Sei lá. Olhe, estariam bem, acho.
- Aaaaah, estariam bem! Ainda bem!
- Ainda bem?!
- Ainda bem que estão bem!
- Mas, minha senhora, isto era só uma mera hipótese. Se eles existissem!
- Sim, eu sei! Mas você acha que eles estão bem! Ainda bem que você acha isso.
- Mas porquê "ainda bem"?
- Porque sim, preocupo-me muito com os seus filhos.
- Mas eu já lhe disse que não tenho filhos.
- Está bem, já percebi. Mas podia ter.
- Podia, sim, mas não tenho.
- Mas se tivesse, eles estariam bem. É o que interessa.
- Ó minha senhora, isso não interessa nada. Se eu não tenho filhos, não interessa nada.
- Mas é como se os tivesse.
- Como se os tivesse?!
- Sim, claro. Se quer bem aos seus filhos, é como se os tivesse.
- Não, não é. Como poderia ser?! Eu nunca os conheci! Como poderia ser mãe deles? Não tenho filhos, percebe? Meta isso na cabeça.
- Sim, meto, claro! Mas não se irrite. Você é jovem. Ainda está muito a tempo.
- Muito a tempo?! Muito a tempo de quê?! De ter filhos?!
- Sim, claro. Ainda está a tempo.
- Mas, ó minha senhora, quem é que lhe disse que eu quero ter filhos?
- Ora essa, a menina ainda agora disse que queria!
- O quê?! Eu não disse nada disso.
- Você disse: "Estariam bem". Se tivesse filhos, "estariam bem"! E claro que estariam! Porque você trataria deles, seria uma mãe para eles. É óbvio que a menina quer ter filhos.
- Ó minha senhora, você nem me conhece! Nunca me viu na vida! Como é que pode estar a dizer isso?
- Menina, mãe é mãe. Se você quer bem aos seus filhos, é mãe. Mesmo que eles não existam.
- Desculpe, minha senhora, mas isso não faz grande sentido.
- Faz, sim. Todo o sentido… Olhe, vou ter de sair aqui nesta paragem, infelizmente.
- Ok! Passe bem, minha senhora.
- Você também. Adorei falar consigo!
- Ainda bem!
- Dê cumprimentos meus aos seus filhos.
- Olhe, gostava muito, mas não posso! É que eles não existem.
- Então invente-os! Se eles não existem, têm de ser inventados! Não acha?
- Não, não acho.
- Claro que acha, ora então! Dê-lhes cumprimentos meus, está bem?
- Já lhe disse que não posso.
- Também não precisa de ser já, querida. Dê-lhes depois.
- Depois?!
- Sim, depois.
- Depois, quando?
- Quando eles nascerem.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Debaixo da terra

Descemos umas escadas e estamos numa estação de metro. Debaixo da terra.
À nossa frente vem um rapaz que é quase um homem. Ou melhor, um rapaz que quer ser homem e não sabe. Ou que não sabe ser homem, mas quer sê-lo. Ou o contrário: que sabe ser e não quer. De qualquer das formas, pelo compasso das pernas e a posição minguante, há qualquer coisa que o rapaz quer e não sabe. Ou que sabe e não quer.
É estudante. Tem uma mochila às costas, logo deve ser. Frequenta um instituto técnico ou coisa do género. Passa nas práticas e chumba nas teóricas. Filho único, arriscamos. De mãe trabalhadora e pai ausente (ou, pelo menos, pouco presente).
Não se pode ter tudo, claro, mas o rapaz não sabe disso. Não quer isso. Não aceita.
Uma luz ao fundo do túnel, um som tempestuoso de Juízo Final e o metro chega. É sempre assim, por isso ninguém se assusta. Está quase vazio o metro por causa da hora (é cedo).
O rapaz não entra.
Achamos isto estranho e ficamos de pé atrás, mas depois percebemos: passam nesta estação duas linhas de metro, uma que vai para Norte, outra que vai para Sudoeste. O rapaz vai para cima e não para baixo. Logo, não entra.
O rapaz encosta-se à parede. Flecte um joelho e calca a parede com o pé direito. Tira do bolso um telemóvel demorado, consulta-o. O aparelho emite uma luz esquisita, igual à dos objectos voadores não identificados. Do outro bolso saem uns fios negros atrapalhados que sobem pelo peito como plantas trepadeiras e desaparecem nos ouvidos: uns headphones de enfiar até aos tímpanos. (O rapaz gosta do que ouve, ou pelo menos parece: abana a cabeça em consonância.)
Continua especado a olhar para o telemóvel, vai carregando nas teclas todas, não sabemos o que faz.
Chega outro metro. Vai para Norte. O rapaz descola o pé da parede e entra na primeira carruagem. (Nós também.) O rapaz senta-se. (Nós não. Vamos bem de pé.)
O rapaz pousa a mochila no colo, abre-a, tira um jornal equivocado. Trata-se possivelmente de uma edição estudantil a contestar o sistema educativo. Consulta a publicação de trás para a frente, salta os artigos. Não lê, vê. Fecha o jornal, gira-o na mão e interessa-se pela contracapa: um anúncio qualquer de um concerto ou de uma festa.
Regressa ao telemóvel, à luz não identificada. De repente levanta-se, sai naquela estação.
Ficamos a vê-lo desaparecer na plataforma. E o metro continua. A vida também.
Era um rapaz subterrâneo, submerso, triste.
Deve ser estranho crescer assim: sem contemplação.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Banda sonora para a manhã de quarta-feira

Acordou mais ou menos cedo. Isto é, tinha tempo. Mas não muito. Apenas o suficiente.
Vestiu-se só. Não tomou banho (já tinha tomado um duche na noite anterior).
Foi à cozinha. Para pôr o café a fazer.
Pôs.
Enquanto a água borbulhava na máquina, foi até à sala. No armário do fundo havia paralelepípedos com botões. Carregou num desses botões, depois noutro. Nesse instante, uma música preencheu o espaço.
Regulou o volume como quem controla a temperatura da água: primeiro para a direita, depois para a esquerda.
Era uma música sem voz. Ou seja, instrumental. Isto é, uma música com voz de instrumento. A mulher tentava explicar por dentro o que ouvia. Era uma nódoa em música, já se sabe. Mas identifica.
O instrumento. Uma guitarra.
A melodia era uma boa banda sonora para a manhã de quarta-feira, tinha um certo ar de viagem pelo Sul da Europa, com praia ao fundo e gente na esplanada. Era uma música boa, sim. Ajudava a disfarçar o cinzento do céu e o cansaço muito inchado das pálpebras.
(Sempre tivera olheiras. Desde que nascera, explicava a mãe. Um desgosto.)
Quem será o guitarrista?, pergunta-se, mas não quer realmente saber: há outras prioridades na vida, como beber café.
A propósito deste pensamento, regressou à cozinha. Passado pouco tempo reapareceu na sala. Trazia um tabuleiro nas mãos. E nele vinham deitados os talheres e um prato, a cafeteira e uma chávena que dizia: Dreams come true. Num dos cantos vinha escondido um pacote de manteiga. Pousou o tabuleiro na mesa de jantar e voltou à cozinha. Regressou com um saco de pão de forma que se chamava British breakfast.
A música acabou entretanto e ela teve pena. Teve realmente pena, imensa pena. Talvez se viesse a esquecer da melodia muito em breve, ou mesmo daqui a nada, parecia-lhe até que já se esquecia, que já se tinha esquecido. Uma música de viagem pelo Sul da Europa não devia acabar. Nunca. Ou pelo menos, não agora. Nesta manhã de quarta-feira. Como se chamaria a música? Como dar um nome a uma música sem voz?
Interrompeu o pensamento para ouvir o homem da rádio. Contava qualquer coisa. Um tom monocórdico, igual às manhãs. Ela pediu um desejo: Diz o nome do guitarrista, mas o homem da rádio não disse nada disso, tinha naturalmente outras prioridades.
O preto ganhou as eleições. Foi o que disse o homem da rádio. Não assim, claro. Ela é que já tinha processado a informação. Não se apercebera de que o pensamento fizera isto, muito menos de que substituíra a pessoa pela cor.
Parecia contente. Ele, o homem da rádio. (Estalavam-lhe pequenas esperanças na boca.) Ela não. Estava igual. Concentrava-se na tarefa árdua de barrar o pão e arqueava um pouco a testa por causa disso.
Bebeu café. Bebeu mais café. Comeu pão com manteiga. Pensou: E a música? Já não me lembro da música. Encolhe os ombros e escuta.
If there is anyone out there who still doubts that America is a place where all things are possible, who still wonders if the dream of our founders is alive in our time; who still questions the power of our democracy, tonight is your answer.
Do saco tirou mais uma fatia, barrou-a atenciosamente. Enquanto o fazia, pensava coisas boas sobre o preto. Por exemplo, que era bom orador. Que tinha coragem. Que era bonito. Que a sua voz também era uma banda sonora para aquela manhã de quarta-feira.
Bebeu café. A chávena dizia: Dreams come true e ela riu-se.
Disso. Dos sonhos. Dos seus. Dos sonhos dos outros. Daquele outro sonho. Da história da escravidão, daquele país feito de escravos, do descendente dos escravos que se fez rei. Perdão, presidente.
(Era a própria mulher que se corrigia.)
Se fosse rei, teria mais piada. Seria digno de conto tradicional, ao bom estilo dos irmãos Grimm ou do Andersen. Presidente já não servia. Era demasiado moderno.
Comeu pão com manteiga.
Pergunta-se: Como será a vida de alguém que muda o mundo? Que pode mudar o mundo? Que vai mudar o mundo? Que quer mudar o mundo? Que pessoa é essa? Para onde vai?
Admite: Antes ser música. Sim, antes música. Sem nome nem voz. Uma melodia que ninguém conheça, mas que toda a gente tenha ouvido. Uma vez na vida. De manhãzinha. Na rádio. Uma banda sonora para a manhã de quarta-feira.
Antes música, que presidente, pensava a mulher enquanto saía de casa.
Tinha outros sonhos.
Outras prioridades.
(Como, por exemplo, tomar o pequeno-almoço de manhã).

terça-feira, 4 de novembro de 2008

À hora do lanche

Para o mano, que fez 30.

De vez em quando lembro-me disto: de sermos miúdos e comermos que nem uns brutos à hora do lanche. A mãe a dizer qualquer coisa e nós a rir de outra qualquer. Sentados na cozinha, frente a frente. Perguntávamos um ao outro: Sabes o que é que eu estou a comer? Sabes? Sabes? E depois abríamos a boca para mostrar a comida mastigada.
Um nojo.
Repetíamos a pergunta até não haver mais pão.
De vez em quando, fazíamos bolinhas com o miolo. Atirávamo-las um ao outro ou jogávamos ao berlinde.
Comíamos chocolate em pó às colheradas. Se a mãe soubesse, matava-nos.
Suchard Express. Sobretudo, Suchard Express. Depois veio o Ovomaltine, mas não era tão bom.
Também gozávamos com os professores. Imitávamos as vozes e os gestos, ríamos que nem uns perdidos. Havia aquele professor da "crosta terrestre", coitado. E as histórias do Bernardo, que só fazia asneiras nas aulas.
Também víamos televisão. A rua Sésamo, talvez.
(De resto, não nos gramávamos, nem sequer brincávamos juntos nas horas mortas. Mas à hora do lanche, não era assim. Divertíamo-nos à brava. E comíamos que nem uns brutos.)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Estados muito Unidos

Coloquemos a seguinte pergunta:

Se os Estados muito Unidos fossem um corpo humano
com cabeça, tronco e membros,
o que seria o Alasca?

Sim, o que seria o Alasca? Veja o mapa e diga-me o que seria o Alasca.
É uma pergunta interessante.
Para ajudar o leitor a dar uma resposta, resolvemos fazer uma coisa muito americana, nomeadamente uma multiple choice question que é, basicamente, uma pergunta seguida de respostas: umas erradas e outras correctas. A pergunta vai atrás e as respostas à frente. Cá estão elas:

Se os Estados fossem um corpo humano com cabeça, tronco e membros, o Alasca seria…

a) …uma cabeça sem cavaleiro.
b) …o cu de Judas.
c) …um cão rafeiro.


Clique na sua resposta ou veja a sua resposta em baixo.

Se respondeu a)

Leia a pergunta aqui.

Na sua opinião, o Alasca seria uma cabeça sem cavaleiro.

Sim, percebo perfeitamente a sua escolha. À primeira vista somos tentados a dizer que o Alasca seria, de facto, uma cabeça separada do resto do corpo. Flutuante, fantasmagórica. Esta imagem traz-nos naturalmente à cabeça o tal cavaleiro sem a dita: uma lenda inventada - lá está! - por um americano, também ele com nome capital.
Infelizmente, esta resposta não está correcta. Se pretende saber qual a resposta certa, clique aqui ou continue a ler em baixo.

Se respondeu b)

Leia a pergunta aqui.

Na sua opinião, o Alasca seria o cu de Judas.

Ena! Você foi suficientemente perspicaz para virar o mapa ao contrário (e nunca o mundo, que esse está sempre em pé, para onde quer que o rodemos).
Neste caso, estando a América do avesso, somos obrigados a admitir que o Alasca passa de cabeça sem cavaleiro a cu de Judas ou a calcanhar de Aquiles ou a qualquer coisa no final do corpo, muito separado, muito desunido.
(Por exemplo, se os Estados Unidos defecassem, o Alasca poderia ser o seu resultado. No entanto, esta resposta não consta das múltiplas escolhas porque o Alasca também tem direito à vida. E como sabemos, a merda não vive.)
E estando o Alasca no final do corpo, o cu parece ser a resposta apropriada.
Infelizmente, esta resposta não é correcta. Já se sabe que não existem cus separados do corpo.
Se pretende saber qual a resposta certa, clique aqui ou continue a ler em baixo.

Se respondeu c)

Leia a pergunta aqui.

Na sua opinião, o Alasca seria um cão rafeiro.

Parabéns! Você acertou na resposta certa. Realmente, estando separado dos Estados muito Unidos, e caso estes fossem um corpo humano com cabeça, tronco e membros, o Alasca só poderia consistir num outro corpo. Independente dos Estados mais unidos, como é evidente, mas seguindo-os sempre e para todo o lado, mais ou menos perto, mais ou menos longe, fielmente. Concluímos assim que o Alasca seria, nem mais nem menos, do que um animal de estimação. Amicíssimo do corpo muito unido.
Um cão, portanto. Branco como a neve, com a cabeça naturalmente fria. Muito fria. (Não seria o Alasca se não tivesse a cabeça muito fria.) Tão fria que o cão não a usaria. Os seus próprios membros também não a coçariam.
E os outros Estados, por uma questão de comodidade, também não dariam festinhas no seu cocuruto gelado. O Alasca, coitado, seria um cão de circunstância. Muito carente, desamado, desacarinhado, desunido. O Alasca dormiria, comeria, ladraria. Nada mais.
E portanto, se os Estados Unidos fossem um corpo humano com cabeça, tronco e membros, o Alasca seria um cão, com a sua cabeça, o seu tronco e os seus membros. Provavelmente feio. Rafeiro. Doente. Cheio de pulgas carraças.

(E estava eu neste exercício de escrita quando me apercebi do seguinte: Ora bolas, a Sarah Palin é governadora do Alasca! Que triste coincidência. E vai daí, voltei atrás e substituí as pulgas por carraças.)

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

nascer do sol

a luz recém-chegada
não nasceu aqui.
não viveu aqui.
não pertence aqui.

é estrangeira.

a luz veio à terra morrer.
e não nascer.
jamais nascer.

a aurora é triste.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

No escritório do chefe (IX)

(Última parte)
- O grau dos adjectivos?!
- Sim, o grau dos adjectivos!
- Mas agora voltámos à Edite Estrela?!
- Ó Vasco, a Edite Estrela é uma grande mulher.
- Mas eu não quero saber da Edite Estrela, ainda não percebeu isso?
- Eu também não quero saber dela pra nada, ó Vasco. Mas do grau dos adjectivos, quero.
- Olhe, eu não! Estou-me nas tintas para o grau dos adjectivos. Badamerda pró grau dos adjectivos.
- Pois, é aí que o Vasco falha. É aí que o Vasco falha. Exactamente aí. Não há nada mais importante do que o grau dos adjectivos. Nada!
- Olhe, chefe, você definitivamente não me vai deixar falar. Não há paciência! De maneira que eu vou dizer o que tenho a dizer assim às três pancadas. Número 1: já não quero trabalhar mais para si. Número 2: arranjei outro emprego. Número 3: você é estúpido que nem uma porta, não compreende o que se passa na sua própria empresa e está-se a borrifar para os homens e as mulheres que trabalham nesta casa. Número 4: Vai daí, caguei para isto. Vou-me embora. Adeus.
- Está a ver, Vasco? Está a ver? Você, com um pouco mais de gramática, um pouquinho só, ia longe. Ia longe. Longe mesmo. Mas como lhe falta o léxico, você não vai mais longe, vai ficar aí, percebe? Aí, nesse sítio, nessa jaula de jardim zoológico. Para sempre.
- Tudo bem. Não vou mais longe! Isso para mim está tudo bem. Eu não quero ir mais longe, entende? Quero mesmo é ir-me embora. Você pode ficar com o léxico e a gramática e o grau dos adjectivos, que eu não me importo nada. Mesmo nada. E no entretanto, você, para mim, continua a ser estúpido.
- Pois continuo, para uns somos sempre estúpidos, não haja ilusões. Não quero convencê-lo do contrário. Agora veja o seguinte, Vasco. Veja o seguinte: você, com um pouco mais de gramática, se calhar tinha ganho esta batalha.
- E ganhei-a, chefe!
- Ganhou-a?! Você está parvo? Acha que o seu discurso alterou alguma coisa em mim? Em você? No mundo? Acha?! Você veio aqui com essa pose de herói e não conquistou nada nem ninguém.
- Olhe, tem graça, você também não.
- Eu não queria conquistá-lo, Vasco. Estive aqui o tempo todo a dar-lhe as ferramentas. Para você me conquistar.
- Eu não queria ferramentas. Queria só dizer-lhe o que tinha a dizer. E você não me ouviu, nunca ouviu, não quer ouvir. Ora, quem não ouve, ou é surdo, ou é estúpido. Você é estúpido.
- Vasco, você não tinha nada para dizer. Nada, absolutamente nada! Percebe? Veio aqui para chamar-me estúpido, era esse o seu objectivo.
- E cumpri-o! Cumpri-o! Logo, ganhei a batalha.
- Ganhou?! Ganhou?! Ora esta agora… Ganhou o quê?
- Isso: chamar-lhe estúpido. Chamei, não chamei?! Logo, ganhei.
- Isso aí não é um prémio, homem, não é um prémio. É um feito. Está ao seu alcance. É uma obra, nada mais. Deus sonhou, você quis e a coisa fez-se.
- Ao contrário, chefe.
- Ao contrário o quê?
- Deus quis, eu sonhei e a obra nasceu. Não foi Ele que sonhou. Ele quis.
- Está bem, Deus quis e você sonhou, pronto. E depois você entrou por aqui adentro e concretizou. Pronto, foi só isso. Não há aí nenhum prémio, nenhuma recompensa, o mundo é igual ao de há bocado. E sabe porquê, Vasco? Sabe porquê?
- Diga lá porquê, chefe!
- Porque não houve uma consequência. Uma só que fosse. Não houve. Você, com essa atitude, não conseguiu nada. Nada, percebe? Nada de nada. É assustador como a energia do Vasco não gerou nada.
- Gerou, sim. Gerou, sim, eu bem sei que sim. Gerou auto-estima, auto-confiança. Eu gosto mais de mim hoje, chefe, do que alguma vez gostei. Esta é, para mim, a medalha d'ouro! Gosto de mim!
- Você sempre gostou de si, você só gosta de si! E no entanto, Vasco, não mudou o mundo. Repare nisto: não mudou o mundo. Esteve perto disso e não o fez. Por opção. Você não mudou o mundo por opção. Isto é que é gritante! E tudo por causa do grau dos adjectivos.
- Epá, já não posso com o grau dos adjectivos, chefe! Acabe lá com isso.
- Pois, é aí a sua falha. Como lhe disse, é aí a sua falha. Eu a querer a ensiná-lo, a querer fazer de si um homem melhor, e você não quer aprender, não quer ouvir, não quer ser.
- Pois não.
- Pois não. Pois não! Logo, você para mim, é estúpido.
- Olhe, essa agora também não mudou o mundo, ó chefe, que pena!
- Pois não, não mudou. Não se pode mudar o mundo com gente estúpida, ó Vasco.
- Não, não, pare já com essa de virar a ponta ao prego.
- Não páro, não. Porque eu tenho imensa coisa para lhe dizer, Vasco, imensa coisa. O meu objectivo não é chamar-lhe estúpido, isso para mim é menor, não me limito aos tomates, percebe? Quero ir mais longe, quero transformá-lo, quero indicar-lhe um caminho. Para você deixar de ser estúpido. Mas você, por opção, não quer saber do conhecimento que eu tenho para lhe dar.
- Pois não.
- Pois não. Pois não! Você era quase um herói, Vasco. Quase um herói. Mas não se pode mudar o mundo sem gramática, Vasco. Não se pode. Repito: Não se pode mudar o mundo sem gramática.
- Ai não, chefe?
- Não, Vasco. Porque só ela permite o diálogo. Só ela permite o diálogo. E sem diálogo, não há comunicação. Só a gramática permite a comunicação. Entre si e os outros, entre si e os seus tomates, entre nós e o mundo. Percebe?
- Pronto, tudo bem, a gramática vai salvar o mundo. Mas você, para mim, continua a ser estúpido.
- Olhe só a coincidência disto, Vasco, olhe só: você, para mim, também continua a ser estúpido. É incrível, Vasco.
- Pois é. Então se calhar, nenhum de nós é herói, ó chefe.
- Se calhar não, Vasco.
- Mas somos os dois estúpidos.
- Sim, é verdade. Temos isso em comum. E temos outra coisa ainda em comum: somos dois estúpidos com tomates.
- É verdade.
- E no entanto eu sou chefe. E o Vasco não.
- Sim, é verdade. O chefe é chefe. Mas eu sou livre. E o chefe não.
- É uma perspectiva. É uma perspectiva. Vá-se lá embora então.
- Vou sim, chefe. Não disse tudo o que queria ter dito, mas enfim, fica para a próxima.
- Não se pode ter tudo nesta vida, Vasco.
- Pois não, chefe.
- Pois não.
- Ora então, cumprimentos à selva, chefe.
- Obrigado. E à sua jaula também.


(FIM)

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

No escritório do chefe (VIII)


- Não, eu não estou a alegar nada, você é que não está a dizer a verdade.
- Você chamou o chefe de estúpido?!
- Não estou a dizer a verdade?! Está a chamar-me de mentiroso, agora?
- Você chamou o chefe de estúpido?!
- Sim, de certa forma, sim. É mentiroso, sim! Está a deturpar a verdade.
- Você está a chamar o chefe de mentiroso?
- Ó Vasco, você está realmente confuso.
- Eu não estou confuso.
- Ó chefe, este homem está confuso. Quer que eu chame a polícia?
- Não, Alídio. Não chame ninguém. Aliás, se fizer favor, pode até retirar-se. Não houve aqui agressão nenhuma, vamos resolver tudo isto a bem.
- Ó chefe, desculpe estar a intrometer-me, mas o que se está a passar aqui é agressão pura.
- Alídio, você tem toda a razão. Tem toda a razão mesmo, mas aqui o colega Vasco não concorda consigo. Aqui o Vasco acha que no jardim zoológico temos de chamar nomes às pessoas.
- No jardim zoológico?!
- Sim, o Vasco gostaria de viver no jardim zoológico.
- No jardim zoológico?!
- Eu nunca disse tal coisa, você está a manipular o meu discurso.
- Ó chefe, este homem não está bem. O melhor é mesmo chamar a polícia.
- Ó homem, não se meta onde não é chamado.
- Onde não sou chamado?! Eu sou o segurança deste edifício.
- Olhe, Alídio, vamos fazer o seguinte: se eu precisar de si, ligo lá para baixo, pode ser?
- Está bem, chefe, pode ser. Mas eu, por mim, resolvia já a coisa. Não vale a pena sermos heróis nestas alturas, chefe.
- Herói?! Você está a chamar o chefe de herói?!
- Pronto, Alídio, mas eu realmente preferia resolver isto à minha maneira, se não se importa.
- Este homem é um merdas, não é nenhum herói.
- Pronto, chefe, então se precisar de mim, já sabe onde estou.
- Claro, Alídio, sei muito bem. Obrigado por ter passado.
- É todo um merdas! Uma verdadeira papa de tomate com açúcar.
- De nada, chefe. Sempre às ordens. Mas já sabe o que eu acho, eu por mim...

[O segurança sai.]

- Já viu este rapaz, Vasco? Já viu bem? Tem uns 27 anos, não tem mais. Eu sei disso porque conheço a mãe dele e este miúdo já veio depois da minha filha.
- Você é um merdas!
- E agora está ali, pá, parece um homem. Parece um homem! Lembro-me dele pequeníssimo. Assim, desta altura. Gosto da juventude, quando ela é assim, sabe? Bem feita, bem parida, bem vivida. Assim é que é.
- ...
- Vasco, sente-se aí outra vez.
- Não quero, você é um merdas!
- Sente-se, vá. Vamos lá resolver isto, faça-se um homem! O Vasco precisa de se acalmar. Está muito confuso.
- Confuso?! Eu?! Já lhe disse que não estou confuso. Sei bem o que disse, por que o disse e quando o disse. E o que eu disse foi: Você é estúpido. E um merdas. Não me arrependo disso. Ouviu? Não me arrependo.
- Aaaah, agora que o segurança se foi embora já não se arrepende.
- Ó chefe, você está a dar a volta ao meu discurso, eu nunca me arrependi de nada.
- Vasco, eu entendo isso tudo, entendo isso tudo: a sua fúria, o seu mal-estar, essa confusão toda que vai na sua cabeça. Entendo isso tudo. É verdade que entendo. Porque eu sou, no fundo e à superfície, um homem bom, 'tá a ver? Um homem compreensivo, pacífico, aberto ao outro. Pode perguntar a quem quiser, sou mesmo assim. E muito embora as hostilidades estejam definitivamente abertas entre mim e o Vasco, não consigo deixar de o ver como um ser humano, 'tá a ver? Não consigo. Você, para mim, é um ser humano. Nada mais que isso. Mesmo que queira viver no jardim zoológico, você, para mim, é humano. Igual aos outros. Com uma capacidade enorme para o erro e para o contraditório. Porque nós somos, por natureza, contraditórios, Vasco. Mesmo os meios-heróis. Somos todos contraditórios. Há que aceitá-lo. E em situações de perigo ainda mais contraditórios somos. É assim porque é assim. Sempre foi assim, há que aceitar o passado anterior a nós. Não o podemos alterar. E é exactamente por isso que o conflito entre o que somos e o que queremos é enorme. O fosso é profundo, temos vertigens só de olhar para ele, ficamos confusos com tudo isto. Mas ao mesmo tempo é isso que faz de nós seres humanos. Isso e nada mais. E é aqui que regressamos à tal conversa dos tomates.
- Não, não, chefe. Desculpe, mas não voltamos aos tomates, não senhor.
- Voltamos sim, é aí que tudo começa.
- Não, já chega de tomates. Não quero saber de tomates.
- Ai não? Não quer saber de tomates?! Então quer saber do quê?
- Do meu discurso. Das palavras. Do que tenho para lhe dizer. E depois vou-me embora. Vou-me mesmo embora. Para sempre.
- Ai sim? Mas o Vasco tem alguma coisa para dizer?
- Como assim, chefe? Então o que é que estamos aqui a fazer?! Então eu não estou aqui desde as nova da manhã para lhe dizer o que vim para dizer?
- Não. Estamos aqui por causa do que eu tinha para dizer. O que o Vasco disse foi que ia dizer o que eu queria ouvir, não o que tinha para dizer.
- Não, não disse nada disso. Não disse nada disso!
- Bom, então devo ter percebido mal, só pode. Peço desculpa, também tenho direito ao erro, não acha, Vasco?
- Acho, chefe!
- Muito obrigado. Ora então diga, Vasco. Essa tal coisa que tinha para dizer, diga, diga. Não é difícil dizer o que se tem para dizer, pois não?
- Olhe, mas também não é fácil.
- Pois não.
- Não sou muito bom com as palavras.
- Ai não?
- Não, chefe, não sou.
- Então já percebeu a importância do que lhe falei há pouco? Já percebeu?
- A importância do quê, chefe?
- Isso pergunto-lhe eu: A importância do quê, Vasco?
- Dos tomates?!
- Não, Vasco. Claro que não. Deixe lá os tomates.
- Do jardim zoológico?!
- Não, homem! Dos adjectivos. Do grau dos adjectivos! Não há nada mais importante do que o grau dos adjectivos.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

No escritório do chefe (VII)

- …
- Diga, diga, Vasco. Sou todo ouvidos.
- É todo ouvidos?! Você é todo um merdas, não é todo ouvidos. É todo um merdas.
- Ó Vasco, se você vai passar o tempo todo a insultar-me, então não vale a pena ficar a ouvi-lo, não acha?
- Cale-se, já lhe disse. Isto foi só uma maneira de introduzir o tema, de começar a conversa, nada mais.
- Não, não foi. Desculpe, mas não foi. Foi um insulto. Assim não se pode conversar, Vasco. Depois de tanto insulto, não há diálogo, homem. É que, neste caso, só mesmo eu para o ouvir, ó Vasco. Só eu. Que outro chefe é que ficava aqui a ouvi-lo?! Que outro chefe? Diga lá. Qualquer outra pessoa mandava-o embora e não queria saber mais de si, Vasco. Mas eu não sou assim, nunca fui assim. Cuido realmente do que é meu e estou aqui para cuidar de si. Acredito nisto até ao fim do mundo, entende? Até ao fim do mundo. Há que cuidar do que é nosso. Mas, por outro lado, se "o que é nosso" nos rejeita, então não podemos cuidar mais. E portanto, se o Vasco vem aqui com duas pedras na mão, então não há diálogo possível, não é verdade?
- Está a ver isto, chefe?! Está ver isto? Você está mais uma vez a discursar e eu a ouvi-lo.
- Desculpe, tem razão, Vasco. Tem toda a razão. Queria só sensibilizá-lo para isto. Só isso, nada mais. Já não está aqui quem falou.
- Ah, ainda bem. Que eu gosto é de falar para as paredes. Ora bem, tinha eu começado por dizer que você é todo um merdas, mas agora retiro o que disse para não ferir susceptibilidades. Retiro até o atributo estúpido que tão bem lhe colei à testa.
- Não, não. Nada disso. Não tira, não. Não se apaga o passado numa conversa destas. Não se apaga nada. Mas o que é isto? Um homem do presente assume o passado, não anda para aí a inventar. É preciso reconhecer o passado, percebe? Aceitá-lo. Resolvê-lo. Eu já o aceitei. Agora, se o Vasco está com peso na consciência, das duas, uma: ou vive com esse peso na consciência ou livra-se dele tomando uma medida no futuro. Resolvendo o passado, percebe? Mas aqui, neste escritório e neste momento, o passado permanece. Você chamou-me de estúpido. É por aí que começamos.
- Ora então, comecemos: Você é estúpido.
- Ó Vasco, não é preciso repetir. O que está dito, está dito. Além de que está a entrar em contradição consigo próprio. Ainda há pouco estava arrependido de ter escolhido tal atributo e agora já está novamente nessa insistência.
- Arrependido? Eu?! Acha que estou arrependido de o ter chamado estúpido?
- Sim, acho! Claro que o Vasco está arrependido! Até queria apagar isso do seu discurso.
- Bom, vamos lá ver uma coisa, eu não estou arrependido de nada.
- Mas bem que queria apagar o tal atributo do seu discurso.
- Sim, queria. Para ganhar os seus ouvidos, nada mais. Estava a cativá-lo, percebe? Com tanta lábia, nunca leu nada sobre retórica, chefe?
- Para ganhar os meus ouvidos?! Então tanta pujança para dizer o que quer e agora vai dizer o que eu quero?

[Batem à porta e antes mesmo que alguém responda, entram. É o segurança.]

- Desculpe interromper. Passa-se aqui alguma coisa? Ligaram-me lá para baixo a dizer que havia agressão.
- Não, não se passa nada.
- De certeza, chefe?
- De certeza. Foi só aqui o colega que veio ao escritório do chefe chamar-me nomes. Mas ele agora já está arrependido, de maneira que não há problema nenhum.
- Não, ó chefe, isso não lhe admito.
- Não me admite o quê?
- Eu não disse nada disso. Você está a pôr coisas no meu discurso que eu nunca disse.
- Como assim? Como assim? Você está a alegar que nunca me chamou estúpido?

(continua)

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

No escritório do chefe (VI)

- Ó Vasco! Você começa a irritar-me com essa.
- Que essa?
- Com essa coisa. Das pessoas estúpidas.
- Ai sim, chefe? Desculpe, não era minha intenção irritá-lo.
- Pois, mas de facto começa a irritar-me essa insinuação constante, essa coisa aí entre dentes.
- Mas que coisa, chefe?
- Essa coisa, essa coisa. Das pessoas estúpidas, já lhe disse. Essa acusação velada sempre pronta a sair. Isso não é nada bom para esta nossa conversa de heróis, sabe?
- De meios-heróis, chefe!
- Sim, de meios-heróis.
- Não queira ser mais do que é, chefe! Por agora, é meio-herói. Depois se verá.
- Certo, certo! Mas vamos então deixar essa insinuaçãozinha que já me começa a melgar os ouvidos, está bem?
- Insinuaçãozinha?!
- Sim, insinuaçãozinha. Você sabe bem do que estou a falar, Vasco. Essa insinuação das pessoas estúpidas.
- Mas eu não insinuei nada, chefe, já lhe disse o que tinha a dizer: Você é uma pessoa estúpida. Efectivamente uma pessoa estúpida, sem sombra para dúvidas, evidentemente, indubitavelmente. Estúpida, pronto.
- Ó Vasco, não me diga que vamos voltar ao princípio?! Já lhe disse para não me chamar estúpido!
- Mas é que entretanto já o chamei quinhentas vezes, portanto não vale a pena fugir com o rabo à seringa.
- Como se atreve? Como se atreve?!
- Olhe, é de tal forma que até vou escrever aqui na folhinha que o chefe me deu. Porque também já aprendi uma coisa hoje.
- Pare já com isso, pare já com isso, Vasco.
- Chefe, tracinho, estúpido. Pronto, já está. Chefe, tracinho, estúpido. Também é o título de um romance.
- Ó Vasco, o que é que o Vasco pretende com esse comportamento? O que pretende? O que pretende?
- Ora bem, inicialmente era mesmo só chamá-lo de estúpido. Pronto, só isso, estava cheio de ganas de vir aqui, entrar no seu gabinete e dizer-lhe: Você é estúpido. E hoje, justamente por o dia se ter posto tão bonito, vinha com essa na cabeça, que o mundo merecia que eu fizesse algo por ele, que eu merecia que o mundo fizesse algo por mim...
- Que o mundo fizesse algo por si?! Que o mundo fizesse algo por si?! Mas que idade é que você tem, homem?
- Ora bem, agora sou eu que lhe digo: Pare já com isso! Pare já. Imediatamente. Estou farto. Farto. FARTO. Percebe? Farto de si e dessa sua maneira.
- Dessa minha maneira?
- Sim, dessa sua maneira. De virar a ponta ao prego.
- De virar a ponta ao prego?!
- Sim, de virar a ponta ao prego. Pensa o quê? Que nasci ontem? Que cheguei agora à selva? Não preciso dos seus conselhos de meio-herói nem das suas teorias estúpidas de português viúvo, entende? Não quero os seus bloquinhos nem as suas canetinhas, estou-me nas tintas para os seus tomates, 'tá a ouvir? Estou-me nas tintas. Os seus tomates, para mim, são ketchup. Ketchup! Uma papa de tomates com açúcar, percebe? Detesto ketchup. Detesto!
- Homem, você acalme-se! Acalme-se, que você precisa de ajuda. Isto aqui é muito grave.
- Gravíssimo, chefe! Gravíssimo! Grau superlativo absoluto sintético e sei-lá-que-mais. Que eu hoje até tive de lhe aturar uma lição de gramática, chefe! De gramática! Que coisa mais patética, mais inconcebível! Parecia que estava a ver aquele programa da Edite Estrela.
- E que mal tem, homem? Que mal tem a Edite Estrela? Estamos aqui para aprender, Vasco! E se eu tenho coisas para lhe ensinar, ensino!
- Você não tem nada para me ensinar! Nada. Entende? Nada de nada. Pare com essa generosidadezinha manhosa. Pare com isso, que já não tenho paciência. Deixe lá essa lábia de campanha eleitoral. Não voto em si, percebe? Não voto em si! Eu nunca votei em si! Jamais votaria em si!
- Ai sim? Então vota em quê, homem? Vota em quê? No jardim zoológico? Nas jaulazinhas? É isso que quer? Uma revolta por dentro, escondidinha, ad eternum? Não seja maricas, Vasco, faça-se um homem. Mas onde é que estamos? Na escola primária?
- Você, se não pára de me dar conselhos, vou-lhe às trombas. É que vou mesmo. Está dito: vou-lhe às trombas.
- Como?! Ó Vasco, você passou-se, passou-se! Não me resta alternativa, Vasco. Não me resta alternativa! Vou chamar a polícia, Vasco!
- Que polícia, homem? Acha que eu lhe dava tempo para chamar a polícia? Saltava-lhe logo em cima e pontapeava-o, ouviu? Como você faz aos pombos e aos cães e aos gatos. Acha que eu teria compaixão? Matava-o logo. Em três tempos.
- Vasco, não se exalte dessa maneira, sente-se aí.
- Já lhe disse para não me dar conselhos.
- Bom, isto não eram conselhos.
- Ai não? Ai não?!
- Não. Eram ordens! Na verdade, eram ordens! Sente-se.
- Ok, sento-me. Nesta sua cadeira estúpida. Confortabilíssima. Detestável.
- Vasco, relaxe, que o dia ainda não acabou. O dia de hoje é francamente bonito e está para ficar. Vou aqui abrir mais a janela para não perdermos este sol. Hein? Que acha? Cá está ele, cá está ele: temos de agradecer ao universo este sol, há que saudá-lo todos os dias. Todos os dias. Não nos podemos esquecer. E entretanto deixe-me que lhe diga o seguinte: não faz grande sentido você vir aqui de ouvidos moucos só para me chamar de estúpido, percebe? Não faz sentido. Não faz. Porque você só perde a razão, percebe? Perde a luta na selva, 'tá a perceber? Porque, se assim for, eu chego aqui, prego-lhe com uma falta indisciplinar, você sai deste escritório com o rabo entre as pernas e não arranja emprego em mais lado nenhum... E eu fico aqui a coçar os tomates e a ver o sol brilhar para mim, 'tá a ver a ideia? Agora, se você abrir um pouco os ouvidos e ouvir o que há realmente para dizer, talvez as coisas sejam mais negociáveis, não acha?
- Negociável? Mas você acha que eu quero negociar alguma coisa? Que tenho medo dessas ameaças de rei da selva? Não, não tenho, não tenho medo de si, estou-me nas tintas para a sua selva, já lhe disse.
- Pronto, está visto: você veio aqui de ouvidos moucos. De ouvidos moucos. E o estúpido sou eu?! Não creio.
- De ouvidos moucos? Eu?! De ouvidos moucos?! Cale-se já. Não fiz mais nada hoje senão ouvi-lo, chefe! Já não posso ouvi-lo. Não posso, percebe? Cale-se de uma vez por todas.
- Muito bem, Vasco, muito bem. Vamos lá a isso. Vou aqui sentar-me com o meu bloquinho no colo para o ouvir. Só para o ouvir. Eu cá sou todo ouvidos. Todinho. Ora então diga lá.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

No escritório do chefe (V)


- Epá, essa foi mesmo boa, ó Vasco! É que foi mesmo boa! Agora até estou com pena de os tomates não terem pés.
- Pois é, mas também podem ir assim a rebolar, também dá.
- Pois dá! Desde que vão pelo seu próprio pé, não é, Vasco?
- É, sim, senhor.
- Sabe que a diferença entre um herói e um comum mortal está mesmo aí, Vasco!
- O quê? Nos tomates?
- Claro, é evidente. Não acha que é evidente?! Os comuns mortais, os tais mariquinhas que não se chateiam com nada, os tais saudosistas do Estado Novo... A tal gente sem vontade para salvar o mundo, esse todos e mais alguns têm um problema de tomates.
- Pois é, chefe, há muita gente aí com falta de tomates. Mas olhe, antes isso que falta de comida ou de saúde. Ao menos é um povo ignorante, mas feliz.
- Feliz?! Feliz?! Qual feliz, qual carapuça! Você acha este povo feliz? Este povo é tudo menos feliz, ó Vasco. Por favor, homem! É que é tudo menos feliz! Agora até está outra vez na moda ouvir fado, bolas! Quer coisa mais triste que fado? Deus me livre, que povo mais viúvo.
- Viúvo, chefe?
- Sim, viúvo. Somos uns viúvos, uns mal-amados, homem, andamos na praia à espera dos marinheiros e das sereias e do Dom Sebastião e do raio-que-o-parta. Somos uns viúvos vestidos de negro, Vasco, uns viúvos. Cheios de ansiedades e sonhos. Mas sem vontade, 'tá a ver? Uns coitadinhos. Especados, a olhar para o mar, presos ao passado, a uma tristeza anterior a tudo, pá, com pena de nós próprios. Com pena de nós próprios, Vasco, que povo mais ridículo.
- Você tem pena de si próprio, chefe?
- Eu, Vasco?! Eu?! Acha?! Claro que não, homem. Estava a falar dos outros, dos outros, dos pobrezinhos. Eu e o Vasco, não, não somos dessa raça, somos d'alta categoria, andamos aqui cheios de vontade para salvar o mundo, uns meios-heróis todos armados, hein? Com quilo e meio de tomates.
- Há bocado era só um quilo, chefe!
- Não faz mal, agora é um e meio! Um e meio! Amanhã são dois, se sairmos bem daqui, está bem?
- Está certo!
- E portanto, estava eu a dizer-lhe que esses viúvos que praí andam têm um problema justamente de tomates. De tomates! Esses tipos só estão preocupados com os tomates, com os seus instintos e as suas necessidades pequeninas, percebe? Não vêem mais nada, não querem mais nada. E, no entanto, por serem humanos, falta-lhes qualquer coisa, um além-mar qualquer, percebe? Falta-lhes horizonte. Mas eles não sabem o que é que lhes faz falta, nunca saberão. Pensam pequenino, com os tomates.
- E o chefe sabe?
- Claro que sei. Claro que sei! E o Vasco também sabe. A diferença entre nós e eles é essa, Vasco. É nós sabermos.
- Eu não sei.
- Sabe, sabe. Sabe, sim. A diferença entre nós e eles é que os nossos tomates vão precisamente pelo seu próprio pé!
- Não me diga?! Verdade?
- Digo, digo. Nós, Vasco, temos tomates com vontade própria, entende? Soubemos educá-los. E ficámos livres da pequeninice, das coisas básicas da vida. Nós vamos mais longe, sempre mais longe. Daí a vontade. Aquela tal vontade. De mudar o mundo.
- De salvar o mundo, chefe.
- Isso, isso, de salvar o mundo. Repare no seguinte: os seus colegas que trabalham consigo nunca entraram aqui para me chamarem de estúpido. Nunca!
- Pois não, se calhar são um bocado mais espertos.
- Se calhar, são. Se calhar, são. Mas repare também no seguinte: eles lá no seu cantinho também me acham estúpido. Também me acham estúpido e têm todos vontade de mo dizer assim na cara, de chegar aqui e pontapear-me como nos filmes americanos. E no entanto, não o fazem. Porque será, Vasco?
- Porque não têm tomates, chefe!
- Não, Vasco, isso não é verdade. São homens e mulheres com muitos tomates. Os portugueses têm muitos tomates, é uma terra de tomates, homem!
- Ó chefe, as mulheres não têm tomates.
- Ó Vasco, você está parvo? Claro que têm! Porra, essas então ninguém as pára. Deus me livre! Mas ter tomates não é tudo, Vasco, não é tudo. Na verdade, os que têm muitos tomates costumam dar-se mal. Exactamente porque estão muito preocupados com eles, só pensam neles, só querem satisfazer as necessidades deles.
- E nós, com quilo e meio de tomates, não?!
- Não, Vasco. Porque os nossos tomates andam pelo seu próprio pé, já lhe expliquei isto. Daí o Vasco estar aqui hoje. Você não está preocupado com as suas necessidades básicas, você quer salvar o mundo. E eu também!
- Meio-herói mais meio-herói dá um herói completo.
- Exactamente, Vasco. Você e eu, temos o mundo aqui.
- Pois é.
- Pois é. Vou então escrever mais uma notinha no meu bloquinho... Cá está ela: Os tomates andam pelo seu próprio pé.
- Epá, ó chefe, estou entusiasmado. Também quero escrever umas notinhas, se pudesse ser.
- Com certeza, Vasco. Vou então dar-lhe aqui uma folha de papel. Isto hoje vai ser só aprender, Vasco.
- Tem piada, ó chefe. Não estava a contar com nada disto. Nunca pensei que fosse aprender alguma coisa hoje.
- Pois é, Vasco. A vida pode ser muito imprevisível.
- É verdade. Mas realmente não estava nada a contar com esta.
- Há sempre coisas para aprender com os outros.
- Sim, mas com pessoas estúpidas é mais raro.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

No escritório do chefe (IV)


- Epá, ó Vasco, eu noutro dia qualquer corria consigo ao pontapé. Epá, é que corria mesmo. Noutro dia qualquer, levantava-me daqui e corria consigo ao pontapé: trás! trás! trás!. Como se faz aos cães e aos gatos e aos pombos e a tudo o que é animal. Que o ser humano corre ao pontapé tudo o que é animal! É ou não é? É ou não é, Vasco?
- É, é. Temos um bocado a mania que somos o rei da selva, lá isso é verdade.
- E somos, Vasco, e somos de facto o rei da selva. Tem alguma dúvida? Claro que somos o rei da selva.
- Bom, uns mais do que outros.
- É verdade, mas se não fosse assim, se não fosse assim, homem, isto não era uma selva, ó Vasco. Não era uma selva.
- Não, era uma coisa melhor.
- Melhor?! Você quer melhor do que a selva, homem?
- Sim, já agora. Queria assim uma coisa mais limpa, mais justa, mais partilhada, mais equitativa, mais organizada, em que cada um tivesse o seu espaço, a sua voz, o seu voto. Isso é que eu queria. Agora uma selva, não. Fiquem lá com a selva. Não quero a selva pra nada.
- Ó Vasco, você está mesmo passado. O que você está a dizer é que prefere um jardim zoológico a uma selva! Cada um na sua jaula com a sua comidinha e o seu espacinho e o seu jardinzinho, tudo muito justo, tudo muito dividido. É essa a sociedade que você quer?
- Não, eu nunca disse que queria uma jaula.
- Ó homem, mas se você sai da selva, sai do seu habitat natural! É que perde a luta para sempre.
- Não faz mal, eu não quero lutas.
- Como assim, não quer lutas?! Como assim? Como assim?
- Não quero, não.
- Como, não quer? Como, não quer? Você entra aqui, chama-me de estúpido e não quer lutas? Não quer lutas? Ó homem, claro que você quer lutas, você quer lutas. Porque você é um homem de luta, pá! Você, se saísse da selva, morria. Morria, está a perceber? Íamos todos ao seu funeral. Você, sem luta, não era ninguém. Ninguém, Vasco. O meio-herói que há em si é um lutador!
- Não, lutador não. É um justiceiro, chefe.
- É um lutador, sim! Um justiceiro é um lutador, não me venha com merdas. E você, como é óbvio, não quer viver num jardim zoológico, Vasco, isso é prós maricas. Você quer ir à luta. E a luta faz-se aqui, na selva.
- Ok.
- Ora então seja bem-vindo, Vasco! Bem-vindo à selva!
- Obrigado, chefe. Obrigado.
- Bom, vou então pegar aqui no meu bloquinho de papel e na minha canetinha, como já lhe tinha dito. E vou já escrever qualquer coisinha no meu bloquinho. Sabe porquê?
- Porque quer apontar uma coisinha?
- Exactamente, exactamente. Porque, entretanto, já aprendi uma coisinha hoje, sabe? Vou então escrever aqui: Vasco, tracinho, justiceiro. Cá está: Vasco, tracinho, justiceiro. Pronto, já está.
- Epá, ó chefe, parece o título de um romance.
- E é, Vasco. E é. Vasco, tracinho, justiceiro. É o título de um romance. Só que ninguém o escreveu. Tanto escritor que anda praí, pá, e ninguém o escreveu. Mas isto não invalida que você não seja um romance. Os escritores é que andam distraídos.
- Andam noutras lutas, chefe.
- Pois andam, devem andar. Esperemos bem que andem, Vasco.
- Esperemos bem que sim, chefe.
- Um país sem arte é um país de gente amorfa, não acha, Vasco?
- Sim, ou pior!
- Pior?!
- Sim. Um país de gente estúpida.
- Pois, isso é bem pior. Ó Vasco, entretanto deixe-me que lhe diga o seguinte: Você, Vasco, você tem tomates que é uma coisa doida, pá.
- É verdade, chefe, é mesmo verdade.
- É que tem mesmo! Você tem à vontade um quilo de tomates dentro das calças, pá. Um quilo de tomates! Só de acartá-los deve ficar estoirado, não, Vasco?
- Não, chefe. Por acaso, os meus tomates não me cansam nada.
- Não?!
- Não. Eles também já são crescidos, chefe. Vão pelo seu próprio pé.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

No escritório do chefe (III)


- Cale-se, homem. Não diga mais disparates! Não diga mais disparates!
- Disse o estúpido ao louco.
- Sim, disse o estúpido ao louco. Claro que disse! Porque um estúpido, embora estúpido, não diz disparates: diz estupidezes. Mas disparates, não. Percebe? Dizer uma estupidez é diferente de dizer um disparate. Muito diferente, percebe?
- Diferentíssimo.
- Exactamente, Vasco, exactamente. Diferentíssimo e não diferente. Então vamos lá embora. Sente-se aí.
- Não me vou sentar, chefe, já lhe disse. Tenho muito que fazer.
- Outro disparate, outro disparate. Pare de dizer disparates, já não posso ouvir mais disparates hoje. Sente-se já aí. É uma ordem.
- Muito bem, vou então sentar-me.
- Está confortável, homem?
- Estou, estou. É uma cadeirinha confortável esta. Confortabilíssima.
- Ainda bem que é, é para isso que eu a quero: para ela ser confortabilíssima para quem se senta nela, 'tá a ver? E eu hoje, mais do que nunca, só quero o seu conforto. Noutro dia qualquer, estava-me realmente nas tintas, sabe, Vasco? Tenho outras prioridades, mas hoje, porque o dia se pôs tão bonito, quero só o seu conforto.
- Muito obrigado.
- Não tem de quê, Vasco, não tem de quê. Agradeça ao sol, não a mim. Era o que faltava eu mandar também no tempo, não era, ó Vasco? Essa é que era. Já lhe chega um chefe no trabalho e outro em casa, hein, Vasco?
- É verdade, chefe. Deus me acuda.
- O Vasco acredita em Deus?
- Não muito, se me permite a expressão.
- Eu também não. Mas sou católico. Quer dizer, baptizei os meus filhos. Mais por eles do que por mim, percebe? Era aquela coisa: Não queria que lhes faltasse nada, 'tá a ver? E pronto, baptizei-os. Uma coisa idiota, claro está, mas na altura achei que sim, que devia baptizá-los. Não fosse o Diabo tecê-las, hein? Aqui aplica-se mesmo o dito.
- Pois, compreendo. Fazemos coisas muito estúpidas pelos nossos filhos.
- É verdade, Vasco. É verdade. Mas vamos então ao que interessa. Vou então pegar aqui no meu bloco de notas e na minha canetinha. Sabe para quê?
- Calculo que para tirar notas.
- E calculou muito bem, Vasco, calculou muito bem. Porque, como lhe disse, eu hoje estou disposto a salvar o mundo. Está um dia tão bonito, Vasco, que realmente só me apetece fazer isso: salvar o mundo. E vejo que aqui o Vasco também.
- Cá está uma coisa que temos em comum, chefe.
- Exactamente. E na minha opinião, duas pessoas que estão dispostas a salvar o mundo são potenciais heróis. Ainda não são heróis, claro, mas têm efectivamente esse potencial, poderão vir a provar a sua heroicidade, 'tá a ver? São potenciais heróis. Por outras palavras, considero que a vontade já faz alguma coisa por nós. O Vasco concorda com isto?
- Concordo, sim, chefe. A vontade é meio caminho andado.
- Pois claro que é. E se assim é, eu e o Vasco somos meios-heróis. Hein? Já é alguma coisa.
- Pois é, chefe, pois é!
- Ora bem, uma conversa entre dois meios-heróis só pode ser uma coisa importante, Vasco. É que só pode ser. Sabe porquê?
- Porque meio-herói mais meio-herói, dá um herói completo, não, chefe?
- Não tinha visto as coisas por esse prisma, Vasco. Realmente não tinha, mas podemos ir por aí, podemos ir por aí. Eu e o Vasco juntos, temos o mundo aqui, como dizia aquele outro Vasco num daqueles filmes do Estado Novo, lembra-se?
- Lembro-me, sim senhor.
- Gosta desses filmes, Vasco?
- Gosto, chefe, bastante até. Mas do Estado Novo, não.
- Pois claro que não, homem. Só as pessoas estúpidas é que gostam do Estado Novo.
- Não é bem assim, chefe, não podemos dizer isso.
- Pois claro que é assim, ó Vasco. Só pode ser assim. Há que dizê-lo com frontalidade, como dizia o outro. Para sermos sintéticos, é isto: há pessoas pró-Estado Novo e pessoas contra o Estado Novo. As primeiras só podem ser estúpidas.
- Bom, talvez. Mas e o chefe? Gosta desses filmes?
- Gosto, pois. Mas também não gramo o Estado Novo, Vasco.
- Pois, 'tá a ver?! Não podemos generalizar. Ele há pessoas estúpidas que não gostam do Estado Novo.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

No escritório do chefe (II)

Ler parte I.

- Ó homem, você está louco! Você está louco, Vasco! Está louco! Louco!
- Olhe, se calhar sim, estou louco, chefe!
- É que está mesmo, percebe? Está mesmo! Completamente louco! Está a perceber bem? Você está louco.
- Talvez, talvez. Sou louco, pronto, sou louco. Mas você é estúpido. Sou louco e você é estúpido! Cada um é como é. E você é estúpido.
- Pare já de me chamar estúpido, ouviu? Está proibido de me chamar estúpido! Pro-i-bi-do! Você, Vasco, você está louco.
- Antes louco que estúpido.
- Ó Vasco, pare com isso! Você controle-se. Você controle-se, homem, qu'isto é grave! Isto é grave, percebeu?
- Pois claro que sim. E concordo, chefe! É grave.
- Pois é, é! É grave! E você nem sabe quão grave isto é. É que é mesmo muito grave, Vasco, muito grave mesmo.
- Claro que é, chefe! Há que ver as coisas como elas são. Se é grave, é grave. E realmente, tem toda a razão, é grave!
- Gravíssimo, Vasco. Gravíssimo. É o mais grave.
- Muito grave, sim senhor.
- Não! Muito grave, não, Vasco. Muito grave, não. Não é muito grave, não! É gravíssimo! Gravíssimo, percebe?
- Percebo. Gravíssimo.
- Pois, gravíssimo. Que "muito grave" não chega, está a entender? "Muito grave" não chega.
- Ora pois, não chega.
- Não chega, não. Sabe porquê, Vasco? Sabe porquê?
- Então porquê, chefe?
- É uma questão de grau, Vasco. De grau! De grau, percebe?
- De grau?! De grau de gravidade?!
- Não, Vasco, claro que não. Claro que não. Qual grau de gravidade?! Você, Vasco, você… Eu já não tenho idade pra isto, Vasco, já não tenho idade pra isto... O grau de gravidade?! Mas o que é isto?!
- Não sei, chefe! Não sei. O chefe é que estava a falar de grau.
- Sim, de grau. Mas não de gravidade, Vasco. Não de gravidade. A gravidade é só uma, homem, é só uma. É uma lei, nada mais, não há graus de gravidade. Estava o Newton encostado à macieira e pimba!, fez-se a lei da gravidade. Essa gravidade não é práqui chamada, não é práqui chamada. Percebeu? Eu estava a falar do grau dos adjectivos. Dos adjectivos, Vasco. Percebeu agora?
- Ah, ok.
- Sabe o que são os graus dos adjectivos? Sabe o que são?
- Sim, sei. Tenho uma vaga ideia.
- Uma vaga ideia?! Tem uma vaga ideia?! Você não pode ter uma vaga ideia, Vasco! Não pode! Tem de saber os graus dos adjectivos. Tem de saber! Um homem que é homem tem de saber usar os graus dos adjectivos. E um homem que entra aqui - no escritório do chefe - e me chama a mim, me chama a mim, de estúpido, tem de saber os graus dos adjectivos. Tem de saber!
- Mas olhe, eu realmente não sei, e continuo a achá-lo estúpido!
- Pare já com isso, pare já com isso, Vasco, que ainda morremos os dois aqui! Pare já, pare já! Não temos idade pra isto, Vasco, não temos idade.
- Pois não temos, não.
- Pois claro que não temos, homem. E se você quer andar por aí a salvar o mundo, a defender ideias, a fazer discursos, a chamar as pessoas de estúpidas, a dizer seja o que for, você tem de saber os graus dos adjectivos. Tem de saber!
- Certo, tenho de saber.
- Porque "muito grave" não é o mesmo que "gravíssimo", Vasco. Não é o mesmo! Toda a gente sabe isto! Uma coisa é o superlativo absoluto analítico, outra coisa é o sintético. O sintético! Percebe? O que é sintético tem mais pujança. 'Tá a ver? É mais eficaz, mais eficiente, mais capaz!
- Ok! Sintético!
- Sim, sintético! Portanto, se eu lhe digo que isto é gravíssimo, não me responda que é grave nem muito grave. É gravíssimo. Superlativo absoluto sintético: Gravíssimo!
- Gravíssimo! É gravíssimo!
- Pois é gravíssimo, sim. Gravíssimo. E sabe porquê, Vasco? Sabe por que é que é gravíssimo? Sabe?
- Sei.
- Ai sim? Ai sim? Sabe? Sabe? Então, diga lá, Vasco. Então, diga lá!
- É gravíssimo, porque o chefe, com todo o respeito que merece e que eu lhe devo, é estúpido.
- Como?! Como?!
- O chefe é estúpido.
- Cale-se! Já não o posso ouvir com isso.
- Sim, já me calo! Mas para ser sintético, é isto: o chefe é estúpido.
- ...
- É gravíssimo termos um chefe estúpido.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

No escritório do chefe (I)

- Desculpe, chefe, dá-me licença?
- Claro, Vasco. Ora essa. Entre, entre.
- Muito obrigado. Ora bem, peço desculpa, mas queria só mesmo um minutinho, se pudesse ser…
- Ó Vasco, por favor! Um minutinho?! Eu tenho todos os minutinhos para si, homem. Sente-se aí.
- Não, não. Não é preciso sentar-me.
- Claro que é, Vasco. Puxe dessa cadeira, homem.
- Não, deixe estar. É que realmente é só um minutinho da sua atenção, se pudesse ser...
- Pronto, pronto, Vasco, diga lá então. É que hoje, sinceramente, pode dizer-me qualquer coisa, sabe? Há aqueles dias assim, pá, um homem acorda de manhã e apetece-lhe salvar o mundo, 'tá a ver? Estou inspiradíssimo.
- Sim, pois, às vezes é assim, não é, chefe?
- É verdade. E hoje tenho ganas de salvar o mundo, pá! Ir por aí desenfreado com uma máscara do Zorro, hein? A galope...
- Pois é, chefe. Ou então a trote para não ser tão depressa.
- É verdade, ó Vasco. Não se pode salvar o mundo à pressa, não é?
- Não, não se pode. O que é preciso é ter calma, chefe.
- Exactamente, Vasco, exactamente. Você é um homem esperto. Então sente-se aí, vá.
- Não, não, chefe, não tenho tempo.
- Não tem tempo?
- Pois não, não tenho.
- Tem, sim senhor! Pois claro que tem tempo! Está um dia tão bonito, ó Vasco. Olhe para isto, veja lá como o dia se pôs bonito, veja lá bem isto.
- Pois, está muito bonito, sim senhor, mas tenho mesmo qu'ir.
- Epá, ó Vasco, não me diga que vai salvar o mundo?!
- Mas é que vou mesmo, chefe. Se me deixar, vou mesmo.
- Epá, você, Vasco, é um homem do caraças, pá. É que gosto dessa atitude, gosto mesmo! Dá-me um gozo diabólico. Um homem dedicado ao seu trabalho é uma inspiração, pá! Pronto, vá lá então salvar o mundo! Quem sou eu para o parar?
- Vou, vou. Vou salvar o mundo. Mas antes disso queria então fazer o tal reparo, pode ser?
- Pode ser, claro que pode ser. O mundo não anda para a frente sem reparos, ó Vasco.
- Pois não, chefe. Então vamos a isto.
- Diga, diga, Vasco.
- É mesmo uma coisinha rápida.
- Sim, sim, sou todo ouvidos, faça lá o seu reparo.
- Bom, ora bem, queria só informá-lo do seguinte: você, chefe, realmente, é uma pessoa muito estúpida. Realmente estúpida. Pronto, estúpida. Do mais estúpido que pode haver, percebe? Achei que devia dizer-lhe isto.

(continua)

terça-feira, 7 de outubro de 2008

História sem acção

Havia no fundo da sala um relógio de parede que respirava segundos.
Três mil segundos. (É o tempo que dura esta história.)
Um rapaz está deitado no sofá. Não sabemos há quanto tempo, mas está.
O rapaz permanece deitado.
Aparentemente para sempre. Eternamente. Até ao fim do mundo. Mas na verdade não, porque esta história só dura três mil segundos.
Durante este tempo (equivalente a cinquenta minutos) o rapaz não adormece. Os olhos dele estão abertos para uma outra dimensão, não seguem os ponteiros do relógio.
Também não fuma, não lê, não come. Tem aliás as mãos presas atrás da nuca, os cotovelos apontados para o tecto. E para que conste, também não fala nem assobia nem tosse.
Perguntam-me: Esse rapaz está triste? Profundamente triste? Irremediavelmente triste? E eu digo: Não, não está.
(Mas também não está alegre.)
O rapaz está. Só isso.
Está.
No final dos três mil segundos, o rapaz ainda está assim. Deitado.
Perguntam-me: O que estará ele a fazer? E eu digo: Nada. O rapaz não faz nada, rigorosamente nada. Digo mais ainda: Se uma mosca passasse, ele não olharia para ela. E se ela pousasse no seu nariz, ele não a sacudiria.
Nenhuma mosca passa, é claro. Mas se passasse, aconteceria o que vos digo.
E tudo porque o rapaz está deitado no sofá. De cotovelos apontados para o tecto. É essa a sua prioridade. O seu objectivo.
E vendo bem os factos, temos de confessar o seguinte: estar deitado é uma ocupação como qualquer outra.
Um pouco menos querida, é certo. Menos badalada. Menos perfeita.
Mas nem por isso diferente das restantes.
É aliás, se me permitem, uma ocupação mais elevada do que outras. Por ser mais digna. Mais útil. E verdadeira.
É, por exemplo, mais útil estar deitado do que escrever sobre alguém que está deitado. Do que ler sobre alguém que está deitado. Do que não estar deitado.
Deixemos portanto o rapaz.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Senhora de saltos altos

Aquela senhora de saltos altos vai sempre a pé para casa. Sabemos isto porque já nos cruzámos com ela na place Jourdan várias vezes. Avistamo-la lá ao fundo, à saída do parque e ficamos a vê-la desembocar na praça. Tem um passo solto e as costas muito direitas. As pernas parecem fortes e o rosto vem sempre com aquele ar liberto, a baloiçar no dia, como quem regressa a algum lado.
Estamos certos de que vai para casa. 
A senhora dos saltos altos não vem cansada. Daí acharmos que, ou gosta muito do que faz ou não se chateia com pormenores. Dá uns saltinhos pela rua, a cabeça abana imprevisível. Sabemos que a senhora trabalha, porque passa por aqui quase sempre às seis da tarde. Por vezes mais tarde, outras vezes mais cedo, mas por norma durante aquela parte indefinida do dia, entre a tarde e a noite. Deve portanto trabalhar num escritório ali perto. Talvez numa agência de viagens, num consultório médico, provavelmente num banco. Sim, certamente. Num banco.
Agora que a vemos de perfil, não há dúvida: é uma mulher das economias. Goza a vida no concreto, tem um corte de cabelo prático, não olha para as pessoas nas esplanadas. Não é uma pessoa sozinha, pelo contrário. Tem família, amigos, inimigos, tem olhos acompanhados. Imaginamos que se despeça dos colegas com um adeus sempre risonho. Simpático, cordial, correcto.  
A senhora não vem a rir pelo caminho, seria estranho que o fizesse. Mas adivinhamos-lhe aquelas pequenas rugas de riso nos cantos da boca e tiramos ilações: tem gostos musicais, vai ao cinema. 
Olha atentamente para os carros antes de atravessar a rua, agradece com um pequeno aceno a quem a deixa passar. Segue depois pelo parque de estacionamento e sobe aquela rua, à esquerda. Depois não sabemos para onde vai, porque a perdemos de vista, mas deve morar ali perto. Sabemos isto pela maneira como apressa o passo e levanta a cabeça: a apanhar balanço. 
Apetece-nos conhecer a senhora dos saltos altos, percebê-la, acompanhá-la. Mas, à falta de pretexto, não fazemos nada disto. Ficamos a vê-la passar.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

O homem a rimar

Para o tio Pedro.

Nós, que ignoramos o mundo e tudo o que nele existe, não conhecemos Luanda nem Tundavala nem Benguela nem o deserto do Namibe, mas vimos um pouco disto através dos olhos do homem que rimava, que ria a rimar, que raiava. Eram olhos soalheiros aqueles, de final de tarde, ampliados por óculos redondos, avolumados.

Este homem tinha, também ele, um certo ar de paisagem, por a sua presença ser espaço, viagem, deserto. Os cabelos ondulavam ao vento, espelhavam vários sóis: iguais ao mar.

Penso muitas vezes no seu quarto musical, no seu Porto de chegada. Nas suas memórias de África, com a qual todos nós sonhamos como outros sonharam com a Terra do Nunca: um lugar impossível cheio de histórias paralelas, diferentes das nossas.

Do Porto se fez ao asfalto. Aquele homem. Sempre rimando. Remando. E nós a vê-lo viajante, debruçado sobre os mapas. Das estradas, dos tesouros.

Sonhamos sobretudo com a sua rolote. Aventureira, poeirenta, a rolar pela Europa. Não conhecemos essa rolote e temos pena.

Quem nos dera ter viajado nela.

Um homem chamado Pessoa e que o era até ao final de si mesmo. Não o conhecemos como devíamos, como podíamos, como queríamos. Mas sabemo-lo assim: um homem profundo como o horizonte.

A rimar com o mundo.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

A senhora Madalena

Hoje à tardinha a senhora Madalena sentou-se no sofá. Era uma coisa que raramente fazia, mas hoje assim foi: sentou-se. É que, apesar de o sol ainda estar alto, a senhora Madalena já tinha a sopa feita e a roupa passada a ferro, já tinha lavado o chão da cozinha e mudado os tapetes da casa de banho.

E portanto, estava livre a senhora Madalena. Completamente livre. Tão livre, que a senhora Madalena chegou até a considerar ir à missa das seis, mas logo afastou essa ideia da cabeça porque não era dada a eucaristias e não gostava das beatas da igreja.

Em alternativa, podia ir às compras, mas realmente a senhora Madalena detestava as filas àquela hora e o frigorífico estava cheio. Além de que não conduzia à noite, via mal e tinha medo do escuro. Para o jantar tinha os restos do empadão. Para depois do jantar uma cama feita de lavado. Para a manhã seguinte o comprimido na mesinha de cabeceira e pão fatiado no armário. E portanto a senhora Madalena, naquela tarde, não tinha absolutamente nada para fazer.

Absolutamente nada. Por isso, fez o que nunca fazia: sentou-se.

A senhora Madalena entusiasmou-se: tinha finalmente tempo para bordar a tal toalha ou para ler o tal livro ou para ligar à tal prima ou para pregar os botões do tal casaco ou para ver uma coisa qualquer na televisão. A escolha era tanta que a senhora ficou indecisa, não sabia o que fazer com o tempo. E, em vez de fazer fosse o que fosse, a senhora Madalena ficou para ali especada a olhar.

É que passou tanto tempo assim que, a certa altura, era hora de jantar. A senhora Madalena apercebeu-se disso porque o estômago falou. E então, a senhora levantou-se e foi comer a sopa. Pôs também o empadão a aquecer no microondas. No entretanto cortou um tomate fresco para acompanhar, temperou-o com oregãos, azeite, sal e vinagre. Comeu tudo com enorme gosto, bebeu um copo água e descascou uma maçã.

Quando acabou de comer o último quarto da maçã, reuniu a loiça num tabuleiro e foi pousá-lo no lavatório. A senhora Madalena tinha uma máquina de lavar loiça, mas nunca a usava, porque preferia lavar tudo à mão. E nessa noite, enquanto calçava as luvas, a senhora Madalena sentiu-se deveras aliviada.

Tinha sujado imensa loiça.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A casa (V)

Para a casa, que faz hoje 1 ano e 3 dias.

As paredes eram tortas e tinham umbigos até ao final do corpo.

Entrava-se por um arco-íris e no parapeito da janela cresciam raízes de outras casas. Davam flores e frutos. Oxigénio. Vida.

Na cozinha andava pendurado um sonho de azulejos a espelhar um sol diferente. Aí se refogavam os dias, cheios de cores e formas, sem receitas.

Certo dia, quando decidiram construir o telhado, o homem ilimitado desenhou um algeroz serpenteado para os proteger das chuvas, das inundações. Do dilúvio.

Tudo isto a inspirava: o arco-íris, a janela, o algeroz. O homem ilimitado.

De resto, durante a noite, a casa enterrava-se devagar no chão como as raízes. E rangia os dentes.

Era orgânica. Gaudiana. Imperfeita.
Igual à vida.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

And now for something completely different

Aquele artista em específico era diferente dos outros.
Era. Não haja dúvida.
Não só dos artistas, mas dos seres humanos em geral. Isto era aliás visível aos olhos de todos: a sua pose era diferente, o seu andar, as suas sobrancelhas. Aquele artista (sexo masculino, nacionalidade russa) era diferente no tacto, no verbo, no cabelo, nas covinhas da bochecha, na barba, reza a história que era diferente nas unhas dos pés e das mãos. (Isto não vimos nós, mas acreditamos. Pi-a-men-te.)
Diz-se que eram unhas de fibra de vidro e não de fibra orgânica como as nossas. Eram, digamos, uma espécie de cascos que não se cortavam à tesoura, mas que se partiam ao meio!
Bom, mas nem sequer é preciso irmos por aí, porque não eram só as características físicas que distinguiam aquele artista. Definitivamente, não eram. Muito pelo contrário. As características físicas eram irrelevantes ao pé das outras.
Porque o que era realmente diferente naquele artista não era tanto a sua diferença, mas sim e sobretudo o facto de a sua pessoa, a sua arte, o seu modo fazerem a diferença. Toda a diferença. Do MUNDO.
Para comprovar isto, basta recordarmo-nos do dia da sua morte: realmente é indiscutível que, no dia em que aquele artista morreu, todos sentiram a diferença. Não haja dúvida. Todos. Sem excepção.
Depois, voltou tudo ao normal, mas no momento da morte, naquele preciso segundo, todos sentiram.

Nota: Por outro lado, no dia do seu nascimento ninguém sentiu a diferença, mas isto deve-se ao facto de, naquela época, as pessoas não estarem habituadas a pessoas verdadeiramente diferentes.
A propósito, Liev Tolstói nasceu exactamente no dia 9 de Setembro há 180 anos, mas ninguém deu por ela. Pelos mesmos motivos.