sábado, 28 de maio de 2016

Tu t'imagines

Vejo duas raparigas ao longe. Vêm a cochichar divertidas. Com a boca e com as mãos.
Estão vestidas de preto da cabeça aos pés. Vestidos largos e uns lenços muito bem apertados à volta da cabeça. Os rostos bonitos, perfeitamente emoldurados. Nem um cabelo à vista.
Tenho um certo fascínio por estes lenços. Pela arte de os atar à volta da cabeça. As dobras muito bem dobradas. Dois alfinetes nas têmporas.
Estou cada vez mais perto das raparigas. Elas caminham de lá para cá e eu de cá para lá. Os olhos grandes e vivos. Um pedaço de frase: Tu t'imagines. Risinhos.
Param no meio da rua e tiram uma selfie.
As duas raparigas paradas no tempo e no espaço. Abraçadas uma à outra, as cabeças muito próximas. O telemóvel em cima e elas em baixo. Apertam os lábios carnudos, a simular um beijo uma na outra.
Passo por elas. Olhos grandes e vivos.
Só então reparo que trazem os lábios pintados. Um vermelho inflamado. Radiante. 
Tu t'imagines? 
Eu cá imagino. 
Há qualquer coisa arrebatadora no contraste.
Por um lado, a sobriedade. Por outro, a irreverência.
Por um lado, a pureza. Por outro, a luxúria.
Por um lado, o recato. Por outro, a sensualidade.
O cumprimento e a transgressão.
O preto e o vermelho.
A submissão e a independência.
Não haja dúvida: uma rapariga de lenço aprumado na cabeça está muito mais sujeita à fantasia. 
Ao devaneio.
À depravação.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Deolinda

No outro dia fomos ver os Deolinda. Em plena Bruxelas.
Foi um grande fon fon fon.
Desta vez até havia bateria e as canções bateram mais forte.
Gosto da Ana Bacalhau. Do seu corpo pequeno. Da sua voz enorme.
Daquela sua maneira de estar em palco como se estivesse numa sala de estar.
Falou em inglês e português, because my French is pathetic.
O meu francês também é patético. Desolée.
A Ana Bacalhau não é pateta nenhuma, mas faz patetices em palco. Não tem medo do ridículo.
Gosto à farta de mulheres assim. E de homens também.
Sem medo. Sem entraves.
A Ana Bacalhau faz e acontece. Abana a cabeça e o corpo, arregaça as mangas, escarra para o lado. Ninguém a trava. Nem sequer a saia travada e muito curta. Ou os saltos muito altos. Ela diz: Agora sim, cantamos com vontade! E eu tenho ganas de me levantar e ir atrás dela. Fazer uma revolução qualquer num lugar qualquer.
A Ana Bacalhau canta: Eu não sei se tu sabes, mas fizeste o meu dia tão bem.
E o dia pôs-se logo bom.
As letras do Pedro Silva Martins são pequenos truques de magia. De repente ficamos carentes e abismados. A ouvir a história de um amor clandestino. A ver uma mariposa, bela e airosa.
As canções que tu farias é uma bela homenagem a António Variações. A Ana Bacalhau pergunta: Que espaço ocupam as canções que não cantaste? E somos nós que dizemos: Ó ai.
Um ó ai nostálgico.
Ligeiramente angustiado.

Perfeitamente português.

Foi tão bom.
Foi tão bem.

Belo movimento perpétuo associativo.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Esse cabelo

No outro dia vi um cato.
Eu disse: Alô. Ele disse: Aloe.
Era um cato Aloe Vera.
Gosto de plantas babosas com propriedades mágicas de regeneração, por isso trouxe-o para casa. O cato Aloe Vera, bonito e eriçado, num vaso verde.
Nesse mesmo dia acabei de ler Esse cabelo da Djaimilia Pereira de Almeida, um livro, também ele, bonito e eriçado. Baboso e regenerador. Para ler devagar.
E passar a pente fino.
A seguir lavei o cabelo. Disse-lhe: Senta-te. E ele sentou-se. Escovei-o, sequei-o, alisei-o. O meu cabelo muito bem comportado, quase liso. 
Fiquei a pensar na Djaimilia e na protagonista da Djaimilia. No seu cabelo crespo, indomável. 
Esse cabelo fala-nos de cabeleireiros, claro. De cabelo curto e comprido, com tranças ou então ganchos ou então lenços. Também nos fala de fotografias, de disfarces de Carnaval, de uma avó negra e de uma avó branca, de uma Angola ao longe, de um Portugal ao perto. E também nos sussurra uma infância, uma adolescência, a Tieta do Agreste, o vento nas ruas de Oeiras.
Na raiz do cabelo está a cabeça, a existência. E eu gostei de passear por aquele cabelo escuro e selvagem, dono do seu próprio destino.
Logo a abrir o livro:

A verdade é que a história do meu cabelo crespo cruza a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indirecta da relação entre vários continentes: uma geopolítica.

No final do dia tirei uma fotografia ao livro e ao cato Aloe Vera. 
Acho que foi uma homenagem às coisas babosas. À geopolítica. À literatura eriçada.
Ao seu poder regenerador.
Não sei.





quarta-feira, 4 de maio de 2016

Uma leitora passa por nós

Estamos dentro da terra. Dentro do metro. Dentro da vida.
Há militares muito bem fardados por aqui. Trazem um boné na cachimónia e uma arma ao colo. Cumprimentam um menino. Apertam-lhe a mão. Dizem: Ça va?
Dá gosto vê-los. São calmeirões e prestáveis. Afastam as metralhadoras para nos deixarem passar nas escadas rolantes. Dizemos: Merci.
Lá vão as pessoas apressadas. Com as suas malas e os seus tiques nervosos. A imaginação dentro do cérebro. Dentro do crânio. Dentro do metro.
Uma bomba na mochila. Uma bomba enfiada no bolso de um casaco ou encolhida a um canto. Em contagem decrescente.
O metro chega, entramos.
Um homem toca violino e nós rodamos os olhos. No sentido dos ponteiros do relógio. Andamos fartos de pedintes. Fartos de violinos. Fartos do medo.
Saímos na estação dos eurocratas. Marchamos todos em sentido, militares e pessoas.
Todos menos um.
Quem?
Aquela ali.
Uma leitora passa por nós. Caminha leve e graciosa com o seu livro de capa preta e sacode o marcador de livros no ar.
Ficamos a observar o marcador de livros. É um retângulo de papel a abanar a cauda.
A leitora nunca olha para o chão nem para as pessoas. Avança com os olhos pousados no livro. Sai da carruagem, mete-se nas escadas rolantes. Atravessa as portas, vira à direita, sobe as escadas.
Ficamos com vontade de seguir aquela leitora. De ler aquele livro.
Qual livro?
Não sabemos. Não deu para ver.
Tinha uma capa preta.
Tinha, não tinha?
Olhamos para trás. A leitora ao fundo, nas escadas rolantes. Virou agora mesmo a página e continua a ler. Um mundo qualquer muito melhor do que este.
O marcador de livros no cimo das escadas. A acenar ao longe.