sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Do dia em que foi para casa

Levanta-se às 8h, mas devia levantar-se mais cedo. Por causa disso, acelera o passo. Puxa o autoclismo e o dia começa. Bebe um copo de água e queixa-se (a água é muito fria no Inverno). Toma um duche rápido e eficaz. Enquanto o faz, não pensa em nada. Seca-se e veste o pijama. Depois repara que não devia ter vestido o pijama e pragueja baixinho. Despe o pijama, veste outra coisa. Vai até à sala. Nessa altura já vem de casaco e cachecol vestidos. Abre as cortinas, espreita. O céu cinzento, a rua cinzenta, tudo cinzento. Encolhe os ombros. É melhor que preto. Canta um fado. Não, não canta, esboça palavras na boca. Não, não é um fado, é outra coisa. Uma melodia doce. Sobre Lisboa, parece. Bela canção. Vai à cozinha, regressa com um regador em punho. Rega as plantas do parapeito (são muito bonitas, apesar do céu cinzento). Vai até ao quarto, beija a testa de quem ficou na cama, sai de casa, desce as escadas, entra no mundo. O vizinho polaco passeia o cão, cumprimentam-se com um aceno. (Na entrada do metro, mesmo antes das escadas rolantes, há, pelo menos, vinte beatas no chão. Toda a gente apaga o cigarro no mesmo sítio, é um fenómeno curioso.) O metro está a chegar e a mulher corre para ele. Vem cheio, entulhado, impossível. Por isso, não entra, espera pelo próximo. Enquanto espera, vê as pessoas passar. As mulheres não gostam que olhem para elas. Os homens gostam. Os cães também. Algumas crianças adoram, outras escondem-se atrás da mãe. Entra na última carruagem e sai duas paragens depois. Encontra um colega. Dois colegas. Três colegas. Ou nenhum. Hoje, por exemplo, não tinha encontrado ninguém, subia sozinha a rua. Pára nos semáforos. Algumas pessoas não esperam pelo sinal verde, atravessam a rua a correr. Ela não. Espera. Entra no edifício e abre a mala para procurar o cartão. Em vez disso, tira as chaves de casa. Devolve-as à mala e tira o cartão. As portas abrem-se. O segurança pisca o olho às mulheres, é atrevido. Apanha o elevador para o quinto andar, diz uma frase de circunstância para os colegas que sobem com ela. Algumas pessoas detestam frases de circunstância, não respondem. Entra no gabinete, abre a janela, liga o computador. Tem uma chamada não atendida. Do chefe. Liga de volta. Se podia fazer uma nota da mesa até às onze, para sair ao meio-dia. Com certeza. Desliga o telefone, sai do gabinete, desce as escadas, cumprimenta os colegas, cumprimenta o chefe, recebe o documento, sobe as escadas, entra no gabinete, lê a nota. É pequena. Pega na caneca e vai até ao café do primeiro andar. Às vezes esquece-se da caneca. Por norma, esquece-se da caneca. Um café, uma garrafa de água, um pão-de-leite. Paga. Senta-se com os colegas, bebe, fala, come. Não devia falar de boca cheia, mas fala. Paciência. Volta para o gabinete, trabalha. Alguém telefona. É uma colega. Se quer ir almoçar à cantina. Claro, almoçar na cantina é sempre bom. Ao meio-dia e meia. Imprime o documento, lê o documento, corrige. Não gosta de certas frases, de certas palavras, não sabe como resolvê-las. Consulta páginas na Internet, abre dicionários, fecha dicionários. Escreve, risca, reescreve. Imprime novamente. Sai do gabinete, desce as escadas, entrega o documento, explica qualquer coisa, diz: "Até logo!". Sobe as escadas, entra no gabinete, continua qualquer coisa do dia anterior. Mais interessante do que a nota da mesa. Ao meio-dia e vinte e cinco sai do gabinete, desce as escadas, atravessa a ponte, entra no outro edifício, segue pelo corredor, apanha o elevador, sai no primeiro e espera em frente à cantina. A colega atrasa-se dois minutos, nada de grave, riem-se de qualquer coisa. Hoje havia espetadas, bolonhesa e uma espécie de empadão com conteúdo imperceptível. Escolhe as espetadas. Espera na fila. Pega no tabuleiro, espera noutra fila, paga, senta-se numa mesa sem fim e espera pela colega, que chega, pousa o tabuleiro e se senta. Comem. Contam coisas, imensas coisas, são muito expressivas nos gestos e nas palavras. Acabam de comer, vão ao café, bebem café, separam-se. Cada uma para o seu edifício. Continuamos com a mulher inicial. Apanha o elevador, sai do elevador, vira à direita, segue o corredor, atravessa a ponte, entra no seu edifício, sobe as escadas, entra no gabinete. Nas restantes horas fica a maior parte do tempo a olhar para o computador. Por vezes, imprime folhas e lê no papel. Também vai à casa de banho. Encontra colegas por lá, conversam animadamente enquanto lavam as mãos. (Algumas colegas não falam, dizem só bom dia ou boa tarde.). Às cinco e meia sai a correr para apanhar a perfumaria aberta. Cheira um perfume, resolve comprar 50 mililitros, escolhe um verniz para as unhas, uma água-de-colónia. Pede à menina para embrulhar tudo em separado. Tira da carteira uma lista, risca alguns nomes. Pensa nas prendas que faltam, distrai-se com as ideias. Quer pagar e, em vez da carteira, tira as chaves de casa. Devolve-as à mala, paga com o multibanco. Sai da loja, entra no metro. Desce duas paragens depois, vai ao supermercado. Tinha-se esquecido dos sacos, esquecia-se sempre dos sacos. Azar. Compra peitos de frango, leite, pão, queijo, salmão fumado, um champô da Dove, cotonetes, papel higiénico, amaciador para a roupa, uma alface, um quarto de abóbora, maçãs, uvas, pêra abacate e pinhões. Na fila, as pessoas são muito sérias. Enquanto se passeiam pelo supermercado não são tão sérias. Paga novamente com o multibanco. Despede-se da senhora da caixa, vai para casa. Caminha devagar por causa do peso, doem-lhe os braços a meio do caminho. O vizinho polaco está a passear o cão, diz-lhe qualquer coisa em italiano, não sabemos porquê. Entra em casa, liga o computador, põe música. Talvez Seasick. Enquanto ouve, arruma as compras. O marido chega. Vem a ouvir outra música no iPod. Cozinham juntos. Ou não. Depende. Comem juntos. Sempre. Nem sempre lavam a loiça a seguir. Têm pressa. Saem de casa, vão a qualquer lado. Atrasados, sempre atrasados. Não gostam de chegar atrasados, mas chegam. Sempre. Uma peça de teatro, provavelmente. Ou uma festa em casa de alguém. Ou um concerto na AB. É menos comum irem ao cinema. É estranho que assim seja: toda a gente vai ao cinema. Comentam isso, interessam-se por isso, conversam sobre todas as coisas. Chegam ao sítio que os espera. Ela quer encontrar os bilhetes ou a carteira ou os óculos e, em vez disso, tira as chaves de casa. Mais uma vez, as chaves de casa. Conclui que quer estar em casa e não está. Quer ir para casa e não vai. Apercebe-se de que tem saudades de casa. Imensas saudades. Anuncia: "Vou para casa". E vai.