sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Quem os fez que os ature

Um bebé ao colo, outro à solta, outro na cadeirinha.
Uma claridade ao fundo. Finalmente a manhã. 
Mudo três fraldas. Preparo três biberões.
Ligo a máquina do café. O mais velho chora. Pouso o mais pequeno na outra cadeirinha. Pego no mais velho. Reparo que tem as unhas muito compridas. A ver se as corto hoje. 
Um corvo a crocitar algures. O meu marido no duche.
Faço café, faço torradas, faço festinhas. 
Voltamos para a sala. O mais velho bebe o biberão no sofá. Um dos minorcas chora. Deve ter fome. Dou-lhe o biberão. Não quer. Abano a cadeirinha com o pé. Pára de chorar. Fica só assim, especado a olhar. 
Bebo o café num trago. Queimo a língua. O mais velho chama-me. Está escondido na tenda. Vou ter com ele. Brincamos com os carros. Eu tenho um carro, ele tem outro. Passamos com os carros por baixo da ponte. Vrum, vruuuum. Ele grita de felicidade. Os minorcas choram. 
Saio da tenda com alguma dificuldade. Tenho a perna dormente e as costas feitas num oito. Pego num dos minorcas. Acalma-se imediatamente. O segundo continua a chorar. Abano a cadeirinha com o pé. Continua a chorar. Pouso o outro. Pego no mais pequeno. Tem cocó. Mudo-lhe a fralda ali mesmo, no sofá.
O mais velho vai buscar o livro com as canções do mar. Canto três vezes a canção dos peixinhos e mais umas três vezes a canção da baleia. 
O minorca que ficou na cadeirinha chora. Esfrega os olhos. Pouso o do cocó que já não tem cocó e embalo o outro no colo. O do cocó sem cocó choraminga mas aguenta-se.
O minorca que está ao colo adormece, mas acorda logo a seguir com os gritos do mais velho. Embalo-o outra vez. Adormece. Saio da sala a correr. Não quero que o mais velho venha atrás de mim. Sou uma mãe em fuga. Reparo que as minhas mãos tresandam a cocó. Pouso o bebé no berço. Acorda imediatamente. Espeto-lhe a chucha na boca. Adormece. Saio do quarto a correr. À saída ouço o início de um choro, mas fujo a tempo. Sou uma mãe em fuga. Lembro-me de súbito que o bebé não comeu. Vai dormir pouco. Paciência. 
Volto para a sala.
O mais velho quer brincar na cozinha dele. Diz: “Anda”. Eu vou. A meio do caminho pisa uma peça de lego e chora. Eu digo: “Pronto, pronto. Já passou.” A coisa passa.
Pomos a mesa para o Mickey e o urso azul. Dois pratos, dois copos e duas colheres. Fazemos massa com cebola e morangos. O meu filho ri-se à brava com a minha vozinha de Mickey. Reparo que fez cocó. Reparo também que debaixo da mesa de jantar está uma rodela de pepino que não é uma rodela de brincar, é uma rodela a sério. Está tão esparramada no chão que parece fazer parte do soalho.

Massa com cebola e morangos

O mais velho espirra. Atchim: um jato de ranho verde até ao queixo. O minorca que está na cadeirinha assusta-se com o espirro e chora. Verifico que a caixa dos lenços está vazia. Tiro um toalhete húmido. O minorca está inconsolável. Pego nele e ando atrás do mais velho para lhe limpar o ranho. Ele foge, diz: “não, não, não”. Roubo parte do ranho quando passa por mim mas não consigo tirar tudo. 
O mais novo chora nos meus braços. Está todo bolçado. Limpo-o com uma fralda de tecido muito suja. 
O mais velho brinca na sua cozinha. Bate na porta do microondas “Truz truz, quem é?” Eu rio-me e, por um momento, reparo que está tudo bem. Por um momento, um deles brinca, outro observa e o outro dorme. Mas sei que é só um momento. O mais velho tem cocó. Quando pousar o minorca, é possível que ele chore. O mais velho vai gritar e espernear quando lhe mudar a fralda. Em resultado de tudo isto, o bebé que está no berço vai certamente acordar.
Olho para o relógio. São oito e meia da manhã. O dia ainda é uma criança. Ou melhor: o dia ainda é um bebé de colo.
Penso naquela frase que as pessoas dizem: “Quem os fez que os ature.”
É bem verdade. Adoro a sabedoria popular. Quem tudo quer, tudo perde. Quem anda à chuva, molha-se. E sim, quem os fez que os ature. Mas estamos tão sozinhos nisto.
Penso nas mães que me dizem: “Aproveita agora.” Que me garantem: “Vais ter saudades.” Que lamentam: “Passa tudo tão depressa.”
Será que passa? Não parece. 
Neste momento são oito e meia da manhã. E as noites nunca foram tão longas. 
Estou sempre à espreita. Sempre alerta. Sempre à espera. 
À espera que adormeçam, à espera que acordem, à espera que comam, à espera que arrotem, à espera que cresçam.
Ainda assim, o tempo passa.
Os minorcas fazem hoje seis meses. Não tarda, gatinham. Não tarda, vão pelo pé deles. 
Quem não anda, desanda. Quem espera, desespera.
Acho que não vou ter saudades nenhumas disto. Destas noites de vigília, deste cheiro a cocó.
O mais velho vem ter comigo. Ainda tem a cara cheia de ranho. Quer que eu coma da colher. Eu como. Digo: “Mmmmmhh!”
Ainda não é hoje que lhe corto as unhas.
O minorca que está ao colo chora. Apercebo-me de que ainda não lhe dei o biberão. 
Quem não chora, não mama.
Penso na rodela de pepino esparramada no chão. Penso na canção dos peixinhos. Penso neste tempo de espera.
Quem faz uma vez, faz duas e três.
Sou uma mãe em fuga. Tenho as costas feitas num oito. As minhas mãos cheiram a cocó. Mas enfim. Cá estamos. À espera que o inverno acabe. À espera que o tempo passe.
Não vou ter saudades nenhumas disto. Juro.
Nenhumas, nenhumas, nenhumas.
Estou aqui a tentar escolher um daqueles provérbios para acabar o texto. 
Tenho este aqui: Quem mais jura, mais mente. E também este: Quem sai aos seus não degenera. 
Mas acho que vou acabar assim: Quem muito ama, muito sofre. Ou então assim: Quem não se sente, não é filho de boa gente.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Cartaz nham nham

Olha, que cartaz tão nham nham, ri-te ri-te! Ilustrações piripiri, tchim-tchim da mega pisca-pisca Madalena pompom.


Nos próximos 15 dias, todas as compras na nova morada do Planeta Tangerina recebem este cartaz-poema “Reco-reco, Nham-nham”.

https://www.planetatangerina.com/pt-pt/l/livros/

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Tempestade Ciara

Sigo os conselhos dos bombeiros. Fecho as janelas, tiro tudo da varanda: os vasos, a bicicleta, os sacos de lixo, a piscina insuflável que não cheguei a esvaziar.
Lá fora, o pinheiro gigante abana. As árvores lá atrás também.
O vento assobia e urra. Folhas e sacos pelo ar. Os meus filhos agitados, como se também eles estivessem para aí largados ao vento. As ruas desertas. Agora nem sequer passam carros.
Na sala, a janela treme, velha e fraca. O vidro fino e sujo. Eu gorda e frágil. Fico deste lado a ver o espetáculo.
Dentro de mim uma certa esperança.
É sempre assim. O vento atrai-me.
Na Boca do Inferno tinha medo de não resistir à ventania, de me atirar a ela num impulso de exaltação e descontrolo. E nunca tive medo do lobo mau, que manda tudo abaixo com a força de um sopro. Acho esse sopro bonito. Gostaria de levar com ele. De ir pelos ares.
A culpa deve ser do Feiticeiro de Oz. Aquele furacão espantoso que leva a menina e a casa para uma terra de fantasia.
Além disso sou do Guincho. Sou do oceano. Sou da Boca do Inferno. Sou feita de vento e rocha.
Estou aqui em frente à janela fraca. Trago calçados não os sapatos mágicos da Dorothy mas umas pantufas da Serra da Estrela. Ainda assim, tenho esperança neste vendaval. Talvez ele me leve para uma outra dimensão. Talvez seja melhor que esta.

Nunca se sabe.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

E depois passaram-se treze anos

No outro dia fiz as contas: treze anos em Bruxelas. 
Tantos dias, tantas noites. 
Tudo o que aconteceu entretanto. 
As pessoas que chegaram. As pessoas que partiram. 
Éramos muitos, ficámos poucos. 
Art Nouveau. Art Deco. Arts-Loi. 
O sol fraco no inverno. A chuva forte no verão.
Eu perdida em Schuman. Eu a caminho de casa.
Aquela fase em que estava sempre a ouvir Andrew Bird. Aquele ataque de riso no teatro. Aquele ataque de riso numa reunião de trabalho.
Magritte. Marolles. Mexilhão.
A escadaria do Mont des Arts. As esplanadas de Saint Boniface. Os lagos de Ixelles.
Aquele piquenique. Aquela garrafa de tinto.
Eu a descer a rua. A escrever na varanda. A beber Leffe blonde.
A Flagey. O Belga. O festival de filmes de animação.
Eu e ele no Bois de la Cambre. No Bozar. No parque Tenbosch.
Aquele dia em que encontrei a Leila no mercado. O concerto da Lisa Hannigan. Aquela gripe de caixão à cova. 
A estação central. O aeroporto. O 81.
As noites de inverno com os meus filhos ao colo. Aquele dia interminável no Ikea. A cimeira das 24 horas. Aquela molha a caminho de casa.
Batata frita. Banda desenhada.
As noites no Archiduc. As manhãs no sofá.
O casamento da Ritinha e do Evgeniy.
Aquele dia de sol tão bonito que foi o dia dos atentados. Aquele espetanço de bicicleta. Aquela vez em que caí na neve.
A exposição do Chagall. O festival de banda desenhada. Aquela noite em que me roubaram a mala.
O primeiro concerto da Guerreira. A Edina a fazer stand up.
As aulas de francês. As aulas de neerlandês. Os cursos de escrita criativa.
O sofá da primeira casa. A escrivaninha da segunda casa. Os janelões da terceira casa. 
O meu casaco de inverno que é sempre o mesmo.
Esta cidade que é de todos e não é de ninguém. Eu cada vez mais estrangeira. Cada vez mais portuguesa. Cada vez mais europeia. 
Volto ao tal sofá da primeira casa. Escrevo no meu caderno: “Fevereiro de 2007”. É o meu primeiro caderno em Bruxelas. Um caderno lindo, forrado a tecido. O papel ligeiramente amarelo, completamente liso. 
Estou no sofá de 2020 e regresso a esse primeiro caderno. Encontro-o numa das estantes. Leio a primeira frase da primeira página:

“E depois havia o frio e o nevoeiro, mas nada disso era triste.”


Que coisa estranha, começar um caderno assim: “E depois”. Mas nessa época as frases podiam começar a meio. Nessa época nada era triste. 
Era a minha infância em Bruxelas. Uma infância feliz, cheia de ingenuidade e esperança. 
E depois passaram-se treze anos.
E depois eu perdi a infância. E depois entrei na adolescência. 
Tenho agora treze anos de Bruxelas. Estou mais crescida. Estou mais insegura. Estou sempre amuada.
E depois?
E depois nada.
Os cadernos mudaram. O tempo passou. E eu escrevo.