quinta-feira, 9 de junho de 2011

A Avó

Sétimo dia.

A Avó morreu no dia da Ascensão de Cristo.

Eu estava na Eslovénia, um país de florestas imaginadas, e a notícia passou por mim como um unicórnio branco, um ser desconhecido, irreal, e na minha cabeça morava agora o silêncio estranho de uma casa vazia.

A Avó não morreria nunca.

Eu estava convencida de que a Avó não morreria nunca, de que o seu coração era mais forte do que os outros, porque o coração da Avó era, de facto, mais forte do que os outros.

Primeira verdade: A Avó não foi uma avó para mim.

Sim, foi uma avó para mim, é evidente que foi uma avó para mim. Mas não uma avó como as outras. Não uma avó que me levasse à praia, que me ajeitasse o vestido nos dias de festa, que me desse rebuçados por baixo da mesa, que me ensinasse a tabuada. Não essa avó.

Uma outra avó.

Eu digo Avó e não a minha Avó. Foi a Avó que me ensinou a falar assim.

Dizia-me: Não precisas de dizer o meu pai ou a minha mãe. Toda a gente sabe que o pai e a mãe são o teu pai e a tua mãe.

Uma avó que gostava de falar sobre literatura, sobre língua portuguesa, sobre história e geografia, sobre viagens. Que me oferecia enciclopédias e colecções de contos tradicionais, edições especiais da Peregrinação, d'Os Lusíadas. Apertava o cabelo num carrapito, bebia espumante ao almoço, falava como quem escreve: a sintaxe correcta, um adjectivo inesperado, um advérbio de modo. Frases que eram o essencial. Por vezes até meia frase, meia palavra, meia sílaba.

Para bom entendedor.

Neste 7.º dia, lembro-me de certos dias, de certos episódios, de certas frases.

De uma frase:

Um dia, ainda este ano, acompanhou-me até à porta de sua casa e despediu-se de mim com uma frase. A sua frase não foi: "Boa viagem.", não foi: "Volta sempre.".

A avó não dizia o que os outros dizem.

A sua frase foi: "Continua assim: uma mulher vertical."

Um adjectivo inesperado, meia frase, para bom entendedor. Corria então o mês de Fevereiro e a avó não morreria nunca, porque o seu coração era mais forte do que os outros.

Parti para outra terra com aquele adjectivo inesperado ao colo, não sou grande entendedora. Além de ser torta e não vertical, nesse dia tinha pintado as unhas de cor‑de‑rosa choque, uma cor absurda para uma mulher vertical. Tenho a certeza de que a avó não gostava de cor-de-rosa choque, especialmente nas unhas, ainda que nunca mo tenha dito.

A Avó.

Não era uma avó como as outras. Não era uma pessoa como as outras. Não era um coração como os outros. Dizia uma frase, meia frase, e eu ficava a pensar em adjectivos inesperados, em escritores portugueses, em contos tradicionais.

Morreu no dia da Ascensão de Cristo.
Uma espécie de milagre.

Segunda verdade:
Eu não acredito em Deus. Eu acho que não acredito em Deus.

A Avó sabia disto, ainda que eu nunca lho tenha dito, e celebrou o meu casamento como se eu tivesse casado pela igreja, com toda a fé, toda a comunhão.

Uma outra avó.

Que dizia o essencial. Que nem sempre foi entendida, que nem sempre soube entender. Que via um pouco mais além do que os outros, para lá do cor-de-rosa choque da vida.

Que sabia ser e estar como outros não sabem ser nem estar, como eu não sei ser nem estar, como ninguém sabe.

Escrevi-lhe um postal que nunca chegou a ler. Um postal que dizia pouco para não cansar a vista nem o coração. Um postal na casa vazia.

Eu não vou à missa do sétimo dia, mas é como se fosse.

A Avó morreu no dia da Ascensão de Cristo.
E eu tenho a certeza absoluta de que encontrou o Avô no Céu.