terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Conto infantil para adultos: A alegoria da caixa de fósforos

Era uma vez uma caixa de fósforos, onde viviam encarceradas centenas de fósforos que muito raramente viam a luz do dia. Certa manhã de sol e nuvens pequeninas, por obra de um milagre ou de uma mão desajeitada, caíram dois fósforos da caixa que, eufóricos, rebolaram pelo chão da cozinha a festejar a sua liberdade. De seguida, como tinham frio e calor, correram um para o outro e acenderam-se. Ambos ficaram encandeados com a chama admirável que, juntos, emitiam.
Passados dez segundos - mais coisa, menos coisa - morreram.
Moral da história: O excesso de luz embrutece.

domingo, 15 de janeiro de 2012

vil vendaval vertebrado

varrendo

vilas vales ventres

vozeando

viçoso

vocais vocábulos vocativos

verbos versos versículos

vira vigia venera

vigorosas valquírias

virgens venéreas

véus vestidos vaidades

vento valente vetusto

veloz voraz veraz

vem vai volta

vê vive vence

vigorosos veteranos

viúvas vindouras

vós vosselências vencidas

vulgares vassalos

vivendo vergados

vagares vigilantes

virtudes viciosas

valores virtuais

ventania vidente vacilante

veio vigorosa vasculhando

virilhas vaginas vísceras

veleiros vimeiros vitrais

varrida ventaneira vingativa

voejando verdes várzeas

vindicando veemente

vida

vanguarda

vitória

vaivém viandante

viagem vertical vulcânea

vidas vãs

ventres vazios

viravolta

vácuo

vice-versa

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Texto com monossílabos - Um mar sem fim

não tem
ar
nem pés
nem céu
é
só um mar
sem sal
nem
pôr
do
sol
que cai
em mim

um mar
de dor
e fé
que vai
de cá           pra lá
sem pé
sem ar
sem céu
e não tem
fim

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O Rodrigo e o carro


- Olá, Rodrigo! Tens uma Sininho?!
- Sim.
- Queres brincar com a Sininho?
- Sim.
- Sabes que a Sininho tem poderes mágicos?
- Sim.
- A Sininho voa.
- Carro.
- Como?
- O carro.
- Mas a Sininho não anda de carro.
- ...
- A Sininho voa, não anda de carro. E tem uns pozinhos mágicos para nós podermos voar também.
- ...
- Olha a Sininho a pôr uns pozinhos mágicos em mim. Plim, plim, plim! Agora estou a voar, vês? Olha eu a voar: Vrrrrrruuuuummm…
- Vrrrrrruuuuummm… (risos)
- Vrrrrrruuuuummm…
- Vrrrrrruuuuummm… (ainda mais risos)
- Vrrrrrruuuuummm…
- Carro.
- Isto não é um carro, Rodrigo, há outras coisas no mundo além de carros. Isto somos nós a voar. Queres voar com a Sininho?
- Não.
- Não queres?!
- Não. Vrrrrrruuuuummm… (risos)
- Vrrrrrruuuuummm…
- Carro.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Rua do Alecrim com Gonçalo M Tavares

No ano passado, no final do mês de dezembro (há uns dias, vá), vínhamos (eu e o homem ilimitado) a descer entusiasmados a Rua do Alecrim, quando reconheci à minha frente os caracóis do Gonçalo M Tavares. Palavra de honra, reconheci-lhe os caracóis antes de lhe reconhecer as lunetas, até porque o senhor Tavares estava de costas, não dava para lhe ver o frontispício.

Gosto de caracóis no geral e dos caracóis do senhor Tavares em particular.

Antes de dar de caras com os caracóis do Gonçalo M Tavares, já vinha toda contente a descer a Rua do Alecrim. A bem dizer, não precisava do senhor Tavares para ganhar o dia, até porque estava sol e eu vinha a descer a rua com o homem ilimitado, falávamos animadamente sobre coisas da vida, o rio brincava ao longe com a luz e nós íamos apanhar o comboio para Cascais. Isso tudo (sol, rua, coisas da vida, rio, luz, comboio) já era suficiente para descer a Rua do Alecrim aos pulinhos.

Além disso, quando desço a Rua do Alecrim lembro-me sempre da canção do alecrim-aos-molhos e essa canção dá-me logo vontade de andar aos pulinhos.

Ao avistar os caracóis do Gonçalo M Tavares, fiquei ainda mais contente (Alecrim, alecrim aos molhos...). Por momentos, até achei que lhe ia dar assim uma palmada bem dada nas costas. Mas depois pensei outra vez e não dei uma palmada bem dada nas costas do senhor Tavares, fiquei só a vê-lo descer a Rua do Alecrim.

O senhor Tavares trazia pela mão, não um cãozinho, não um gatinho, mas uma misteriosa mala preta e vinha assim curvado para a frente, a falar e a rir, muito debruçado sobre outro ser humano que também falava e também ria, mas a quem não prestei atenção absolutamente nenhuma.

Durante esta observação atenta (Alecrim, alecrim, aos molhos, por causa de ti...), reparei que o Gonçalo M Tavares tem um ar bonacheirão. Tem mesmo um ar bonacheirão, deve gostar de comer bom queijo e beber bom vinho, imaginei logo um respeitável caderno Moleskine cheio de nódoas de tinto, extremamente difíceis de tirar. Depois reparei que, ao contrário do que eu imaginava, os ombros do Gonçalo M Tavares são muito magrinhos. Isto, primeiro, surpreendeu-me, depois assustou-me.

Uma pessoa com ar bonacheirão não tem ombros magrinhos. Fiquei logo apoquentada. Seria isto um indicador de que Gonçalo M Tavares afinal não é bonacheirão? Ou que o Gonçalo M Tavares não come bom queijo? Teria o senhor Tavares perdido a vontade de comer? Estaria a criatividade do senhor Tavares a alimentar-se dos ombros do senhor Tavares? Estaria o senhor Tavares a alimentar-se exclusivamente de papel não reciclado?

Em qualquer dos casos, os ombros do senhor Tavares não mereciam uma palmada bem dada e eu perdi logo a vontade de lhe dar uma palmada bem dada nas costas. Na verdade, substituí essa vontade por uma outra vontade: a de fazer uma sopa de cenoura para o senhor Tavares. No entanto, não fiz uma sopa de cenoura para o senhor Tavares, porque afinal a vontade não era assim tão grande e também não havia por ali cenouras nem batatas nem cebolas à mão de semear.

Por causa de todas estas coisas (sol, rua, coisas da vida, rio, luz, comboio, Gonçalo M Tavares, cenouras, batatas, cebolas), eu e o homem ilimitado íamos muito lançados rua fora (Alecrim, alecrim, aos molhos...) e não conseguíamos abrandar o passo, de maneira que acabámos por ultrapassar o senhor Tavares.

Ao passar pelos seus ombros magrinhos assim pela esquerda, olhei para o senhor Tavares e o senhor Tavares, sentindo-se observado por comuns mortais, aguçou o olfato, parou de rir e de falar e olhou para mim. Sorri envergonhada como uma menina de 8 anos e meio (até me saiu um risinho agudo de menina de 8 anos de meio e corei). De seguida, desatei a correr pela Rua do Alecrim a cantar a canção do alecrim aos berros.

Ora, este episódio serve para demonstrar, mais uma vez, que a criatividade é um bicho muito cruel, instala-se no corpo de repente e é muito difícil uma pessoa livrar-se do bicho.

Estou muito preocupada com os ombros magrinhos do Gonçalo M Tavares.