segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O gnu e o texugo na Prateleira de Baixo

“O gnu e o texugo” passaram na Prateleira-de-baixo e foram muito bem recebidos. Texto mui generoso e pessoal de Sara Amado.





“É uma história sobre identidade, amizade e liberdade. Uma história que chega ao fim, a meio do livro, para recomeçar baralhada: no texto, nas ilustrações, na paginação e no lettering. E a fazer sentido, na mesma.

E é uma brincadeira. Só isso. Porque é mesmo preciso brincar, experimentar, baralhar para dar de novo, para dar novo!

É urgente brincar. Nestes tempos sombrios, uma boa rabanada de vento pode bem servir para nos fazer olhar tudo (tudo o que temos agora, porque desta não nos safamos...) de maneira diferente.”


Texto completo aqui:

 https://www.prateleiradebaixo.com/2020/11/theres-more-to-you-than-meets-eye.html?fbclid=IwAR01niOfP6AKpIns9oFv4zlUM4zX1So7ABzID2-SH3k3H8grK1T8-HmYL1M&m=1#.X7-LGar7SJQ

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O Daniel é um carrossel

Tem quase um metro de altura. Tem olhos grandes. Pés grandes. Um cabeção. Um vozeirão.

Gosta de leite com cereais. Pão com manteiga. Arroz com ervilhas.

Tem um trator verde. Uma escavadora amarela. Uns ténis azuis. 


Já não usa fralda. Já não lambe o espelho. Calça os sapatos sozinho. Veste o casaco, põe a mochila às costas.


Dorme com chucha e com um macaquinho. Dorme a noite inteira.


Gosta de livros. Gosta de carros. Gosta de bigodes.


Vai à escola. Vai ao parque. Vai ao mercado.


Gosta de andar no carrossel. Gosta do senhor do acordeão. Gosta de batata frita.


Adora buracos. Aponta para os aviões. Aponta para as bandeiras.


Diz: “O piano não é flauta.”

“O morango não tem caroço.”

“O sol não tem pneus.”


Tem uma certa tendência para bronquites. Tem uma certa obsessão por comboios. Carris, pantógrafo, locomotiva, TGV.




Partiu um dente. Não sabemos como.


Quando ouve música, identifica os instrumentos. Guitarra, bateria, harmónica, trompete. Gosta de Dire Straits. De Rádio Macau. De Glenn Miller. 


Salta do sofá para o chão. Corre pela casa. Entorta os olhos.


Faz cambalhotas. Faz grandes birras. Faz festinhas no meu cabelo.


Tem uma preferência óbvia pelo pai. Tem ciúmes dos irmãos. Bate-lhes. Abraça-os. Empurra-os. Grita com eles. Ri-se com eles. Imita-os. Chama-os.

Atira-se para o chão. Diz: “Mamã, o Daniel é pequenino.” Pego nele. Embalo-o como se fosse um bebé.


Pede para ligar aos avós. Pede para ligar aos tios.


Gosta de ver passar o camião do lixo, o camião dos bombeiros, o carro da polícia, a ambulância.


Gosta de tudo o que gira e roda. O carrossel. A roda gigante. Os volantes. As tampas com rosca. A máquina de lavar roupa, a hélice do helicóptero, o moinho de vento, o gira-discos, o pião, o escorredor de salada, os frangos no espeto, as rodas dos carros, as ventoinhas, os bonequinhos da caixa de música. 


Gosta de girar como as coisas que giram. 

No outro dia disse: “O Daniel é um carrossel”. E girou, girou, girou. Depois parou. Disse: “O carrossel está tonto.”


Anda por aqui há três anos. A girar, a girar, a girar.

Às vezes parece muito crescido. Às vezes parece muito pequenino. 


Andamos neste amor há muito tempo. Há pouco tempo. A girar, a girar, a girar. Para todo o sempre. E eu sinto-me muito tonta e muito crescida. E também muito pequenina.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Gosto, logo existo


Agora que o ano chega ao fim eis que veio à tona um livro fenomenal que tem a despretensiosa intenção de nos salvar a todos.

É um livro sobre este mundo cheio de mundos dentro, sobre as histórias dentro destes mundos e sobre as pessoas que contam as histórias destes mundos. É um livro sobre o jornalismo, sobre a Internet, sobre os algoritmos, as notícias. Sobre a nossa pegada digital, sobre telemóveis inteligentes, boatos, teorias, opiniões, bolhas, emojis, likes. E também sobre desinformação, pensamento crítico, liberdade, privacidade e este misterioso vício de estarmos sempre ligados sem nunca sabermos o que está em causa.

No fundo é um livro sobre a nossa demanda constante de verdade.


É um livro que nos apresenta números também: anualmente vendem-se mil e 200 milhões de smartphones; todos os dias são lançadas 3 mil milhões de pesquisas no Google; no Instagram publicam-se mil fotografias por segundo; as crianças e os jovens portugueses passam cerca de 3 horas por dia na Internet.

Como se fala sobre tudo isto, que é tão maior do que nós? Em particular, como é que se fala disto aos mais novos, que já nasceram no berço das redes sociais?

Eu cá não sei.

Quando este livro era apenas uma ideia, achei que se tratava de uma missão impossível.

Felizmente a editora e visionária Isabel Minhós Martins consegue vislumbrar, acreditar, fomentar e inspirar. 

Com o seu apoio e entusiasmo, a incrível jornalista Isabel Meira, pessoa que eu admiro até aos confins da verdade e da amizade, escreveu este livro inacreditável.


Para já, é um livro lindo de morrer e viver, com design gráfico e ilustrações do Bernardo P. Carvalho. E é uma leitura que vai encantar toda a gente: os mais novos, os mais velhos, os que fazem likes, os que fazem perguntas, os que não fazem nada, os que já viram tudo e os outros todos também.

É um livro que vai dar que pensar e falar. Que vai pôr isto tudo a mexer. Que nos pode ajudar a dar um passo em frente ou então um passo atrás. Que pode fazer de nós todos pensadores e ativistas. E que pode, portanto, transformar o mundo.

Lá para o fim do livro, na nota biográfica, a Isabel Meira é apresentada como alguém que gosta mais de perguntas do que de respostas. 

O livro está de facto cheio de perguntas. Gosto em especial de uma pergunta que aparece lá para o meio: Pensas que sabes pensar? E gosto ainda mais de uma outra pergunta que aparece no finalzinho:

Em que mundo queres viver?

Se querem pensar sobre isto, leiam este livro. 

Estou só a avisar.


(Roubei estas fotos ao Planeta Tangerina.)

Tudo sobre o livro: https://www.planetatangerina.com/pt-pt/loja/gosto-logo-existo/?fbclid=IwAR1S73TH0m9DJR5Bd8jGHVnrRl-cgVOvyEYujvc0pXXTsNXYtiMADPAksOM

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Notas sobre livros, livrarias e outras coisas essenciais

Na Bélgica estamos confinadinhos desde o início de novembro. O teletrabalho passou a ser obrigatório. O uso de máscara também. À noite ficamos fechados em casa e não podemos receber visitas. Os restaurantes e os cafés estão fechados, os cabeleireiros estão fechados. As lojas “não essenciais” estão fechadas. Sapatarias, perfumarias, lojas de decoração, lojas de fotografia: tudo fechado. Neste cenário, seria previsível que as livrarias fechassem também. 

Pois, o que há de essencial na literatura? Nada. 

Felizmente o governo belga decidiu considerar as livrarias “essenciais” para apoiar o setor e levantar a moral das pessoas. As chocolatarias e as cervejarias estão fechadas. Mas as livrarias cá estarão de portas abertas para salvar os nossos dias.

Ler durante o confinamento é essencial. Fugir deste silêncio, imaginar outras vidas, mergulhar num poema: essencial. De repente, quando precisamos de inspiração, apercebemo-nos da importância dos livros e das casas onde moram os livros.

Vou com regularidade às livrarias do bairro arejar a psique. Às vezes vejo só a vitrine. Mas quase sempre entro. Quase sempre compro qualquer coisa. Um livro para os bebés, uma BD para o mais velho, uma novela gráfica para mim.

Muitos portugueses aqui em Bruxelas me perguntam como e onde compro livros portugueses. A verdade é que não posso ir às livrarias em Portugal. Por mais essenciais que elas sejam: eu estou aqui e elas acolá.

Há sempre La petite portugaise, a livraria portuguesa em Bruxelas, com quem falho continuamente porque nunca lá vou. Há também a livraria europeia Librebook - Bruxelles, onde também nunca ponho os pés. Vou arder no inferno.

A verdade é que, ao longe ou ao perto, é muito mais fácil comprar tudo através de um clique. Sobretudo nas grandes cadeias de livrarias ou nas livrarias online, que até já conhecem os nossos hábitos de leitura e o número do nosso cartão de crédito. Além disso, passam a vida a oferecer-nos coisas: descontos imbatíveis, entregas gratuitas, cartões de fidelidade, cupões, pontos, livros, etc.

Reconheço a utilidade de comprar tudo através de um clique, mas também nos cabe a nós - leitores, clientes, consumidores, cidadãos do mundo - fazermos um outro clique. 

Que tipo de serviço queremos? Será que queremos realmente ser um nome de utilizador e uma palavra-passe? Será que queremos viver de facto sentados em frente a um ecrã? Será que os descontos, os pontos e os cupões servem realmente o nosso interesse? Será que queremos contribuir para que os maiores fiquem cada vez maiores? O que acontecerá aos mais pequenos? O que acontecerá ao serviço de cliente? O que acontecerá às livrarias de bairro? E aos livreiros? O que acontecerá àqueles livros que não são os mais aguardados ou procurados ou destacados? O que acontecerá aos autores que não são tão célebres ou comerciais? O que acontecerá aos editores que arriscam em projetos alternativos? O que acontecerá à oferta de livros?

Porque acredito na diversificação e porque gosto de projetos de autor, de livros com tiragens pequenas, de nichos literários, de editoras com tomates, de autores-artistas, porque quero ter acesso a tudo o que vende e rende mas também a tudo o que surpreende e transcende, não quero ceder às grandes cadeias e livrarias online. Falho continuamente com livrarias e editoras em que acredito, mas esforço-me por melhorar e cumprir.

Em Portugal ou no estrangeiro é possível ir ao encontro das livrarias independentes. Podemos sempre escolher a nossa livraria de eleição. Há também uma rede que representa as livrarias independentes: RELI - Rede de Livrarias Independentes.

Há livrarias para todos os gostos e feitios. Adotem uma ou duas ou três.

Muitas vezes encomendo diretamente às editoras. Algumas editoras têm lojas online bastante fáceis de usar. Outras nem por isso. Umas só aceitam pay pal, outras só enviam os livros depois de receberem comprovativo de pagamento.

É chato, claro. Cabe-nos a nós - leitores, clientes, consumidores, cidadãos do mundo - exigir às livrarias e editoras que se atualizem. Mas entrementes o esforço de usarmos os seus serviços não é apenas louvável. É essencial. Para salvar este setor e também a nossa alma.

Se não queremos que as livrarias e as editoras fechem as portas, então não podemos ficar à porta.

Agora que vem aí o Natal e vós quererdes oferecer livros para cacete, temos de fazer esse esforço (e esse clique).

Interrompo este desabafo para puxar a brasa à minha tangerina: Planeta Tangerina. Portes grátis para compras acima dos 30 euros e livros que são uma maravilha. Vão lá ver. E nem estou a falar dos meus. O que tinha a receber em direitos de autor recebi no adiantamento, independentemente de os livros resultarem. E para que não haja equívocos: o que recebo em direitos de autor não dá sequer para pagar as contas de um mês. É mesmo verdade. Nunca hei de viver dos livros. Escrevo por paixão. Leio por paixão. Compro livros por paixão. Na época em que trabalhei numa livraria ficava a dever dinheiro aos patrões porque gastava tudo em livros.

Obrigada à Bélgica por manter as livrarias abertas.

Obrigada aos livreiros que estão nas livrarias.

Obrigada ao Planeta Tangerina por ser uma editora que arrisca.

Obrigada a vocês por lerem estes meus desabafos.

E já agora, obrigada às pessoas que elegeram o Joe Biden.

E obrigada também àquele pessoal que descobriu uma vacina contra a maleita. 

Viva a ciência, viva a democracia, viva a literatura! Ho ho ho!

Isto está tudo ligado. Não parece, mas está. Ler, procurar, investigar, estudar, apoiar, votar. 

Vem aí o inverno. Agasalhem-se. Comprem livros. Leiam. Desabafem. 

Desculpem lá. Estou um bocado chata hoje.

(Para ilustrar este post fui buscar esta foto da Filigranes Corner)



segunda-feira, 9 de novembro de 2020

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O primeiro gnu

Mais de um milhão de gnus migram anualmente nos ecossistemas da Tanzânia e do Quénia em busca de água e alimento. É uma migração circular, que nunca acaba. Todos os anos, percorrem mais de 3 mil quilómetros e atravessam vários rios, ao ritmo das chuvas e das pastagens. Li algures que todos os anos morrem nestas travessias mais de 6 mil gnus. O rio Mara, por exemplo, é bastante largo, fundo e rochoso. Muitos gnus são atacados por crocodilos ou morrem afogados. 

Um dia assisti a uma destas travessias do rio Mara. Foi das coisas mais incríveis que vi em toda a minha vida. É preciso imaginá-los: milhares de gnus com os seus chifres colossais e as suas pernas longas. Estão do lado de lá do rio, por isso vemo-los de frente.

São horas de espera e hesitação. 

Por vezes um deles aproxima-se da margem, mas logo se retrai. Olha para a água e avista talvez o perigo ou então o seu reflexo assustado, por isso perde a coragem. Em determinados momentos os gnus parecem não saber já qual a direção que devem seguir e ficam por ali à deriva. Depois lá se concentram novamente e avançam devagar até à margem. Olham em frente com determinação e parecem animados com a ideia de seguir o seu caminho. Mas logo um se assusta e volta para trás, e o grande coletivo de gnus perde mais uma vez o rumo.

Passadas horas, a tensão é grande. Estão parados e silenciosos, mas não estão sossegados. Sentimos a sua aflição precisamente nessa falta de movimento e de som.

E de repente, num ato de coragem e loucura, o primeiro gnu salta para a água e logo a seguir o segundo, o terceiro e todos os que ali estão. Milhares. Correm o mais rápido que conseguem e depois nadam. A certa altura só vemos as cabeças dos gnus na zona mais funda do rio. Vemo-los depois já deste lado, molhados, assustados, exaustos. Seguem atrás uns dos outros e ao lado uns dos outros, mas também uns em cima dos outros e uns contra os outros. 

Quando passam por nós, que os observamos dentro de um jeep, sentimos o seu medo e também a sua fúria. Lembro-me do som daquelas patas contra o rio, contra as rochas, contra a terra, o som dos corpos musculados a roçarem uns nos outros, o som da respiração acelerada. Alguns voltam para trás à procura dos seus. Outros abrandam o passo para que os mais novos os acompanhem. Mas avançam sempre.

Ao longe são uma manada possante e organizada, mas ao perto são uma amálgama de corpos desordenados, sozinhos e desesperados. Sabem que nem todos chegarão ao lado de cá, que ninguém ficará para trás a cuidar deles e por isso sentem pavor, mas também ânsia e urgência. Não podem ficar à mercê dos predadores, não podem voltar para onde estavam. A única solução é seguir em frente e procurar novas pastagens.

Quando escrevi esta história sobre os que são levados e trazidos pelo vento, não resisti a nela incluir um gnu. 

É o meu tributo a todos os animais migratórios ou migrantes, incluindo os seres humanos que, na maior parte das vezes, mesmo quando chegam a territórios ditos civilizados, não são recebidos com a delicadeza que merecem. 

Com mais ou menos educação, com mais ou menos vegetação, o mundo continua a ser para demasiadas pessoas uma autêntica selva.

O livro não fala sobre isto. Nem sequer fala de pessoas. Mas foi em tudo isto que pensei quando escrevi “O gnu e o texugo”.

Venham daí novos ventos. Novos tempos. Novas vontades.


(Ilustração da magnífica Madalena Matoso para “O gnu e o texugo”)

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O gnu e o texugo

Faço votos por que venha aí um vento de mudança. Para já, levem lá com este livro, que é todo ele uma rajada.

https://www.planetatangerina.com/pt-pt/loja/o-gnu-e-o-texugo/

Eis uma história que andou às voltas e às voltas e ficou toda baralhada. Primeiro é um gnu que vai com o vento, depois é um texugo e lá pelo meio é o próprio livro que vai pelos ares.

Numa altura em que estamos todos a precisar de mudar de ares e de dar um abraço a quem vai e vem, espero sinceramente que este livro traga com ele um sopro de esperança e humor.



domingo, 1 de novembro de 2020

Sean Connery

 Uma vez perguntei a uma amiga búlgara se, na sua infância, também via o 007. 

Ela olhou para mim em choque: “Claro que não. O James Bond era o inimigo!” 

Nesse momento apercebi-me de uma forma bastante óbvia de que estamos sempre de um lado da história e que esse lado implica forçosamente a existência de pelo menos um outro lado. 

No meu mundo, o 007 será sempre o herói.

Vi e revi com o meu irmão e com os meus pais muitos filmes do James Bond, sobretudo os que tinham o escocês ao serviço de Sua Majestade. 

Sean Connery será sempre o pai do Indiana Jones, o frade detetive em “O Nome da Rosa”, mas acima de tudo o 007.

De todos os filmes gosto em particular do Doctor No por causa daquela ilha misteriosa. O meu pai também gosta do Doctor No, mas é por causa da Ursula Andress. Inesquecível aquele encontro na praia, ela a cantar “Underneath the mango tree”.




Morreu um dos meus heróis. Espero que ele esteja algures nesse além desconhecido ao som de uma bela banda sonora, deitado com a sua elegância eterna à sombra de uma árvore qualquer.