sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O primeiro gnu

Mais de um milhão de gnus migram anualmente nos ecossistemas da Tanzânia e do Quénia em busca de água e alimento. É uma migração circular, que nunca acaba. Todos os anos, percorrem mais de 3 mil quilómetros e atravessam vários rios, ao ritmo das chuvas e das pastagens. Li algures que todos os anos morrem nestas travessias mais de 6 mil gnus. O rio Mara, por exemplo, é bastante largo, fundo e rochoso. Muitos gnus são atacados por crocodilos ou morrem afogados. 

Um dia assisti a uma destas travessias do rio Mara. Foi das coisas mais incríveis que vi em toda a minha vida. É preciso imaginá-los: milhares de gnus com os seus chifres colossais e as suas pernas longas. Estão do lado de lá do rio, por isso vemo-los de frente.

São horas de espera e hesitação. 

Por vezes um deles aproxima-se da margem, mas logo se retrai. Olha para a água e avista talvez o perigo ou então o seu reflexo assustado, por isso perde a coragem. Em determinados momentos os gnus parecem não saber já qual a direção que devem seguir e ficam por ali à deriva. Depois lá se concentram novamente e avançam devagar até à margem. Olham em frente com determinação e parecem animados com a ideia de seguir o seu caminho. Mas logo um se assusta e volta para trás, e o grande coletivo de gnus perde mais uma vez o rumo.

Passadas horas, a tensão é grande. Estão parados e silenciosos, mas não estão sossegados. Sentimos a sua aflição precisamente nessa falta de movimento e de som.

E de repente, num ato de coragem e loucura, o primeiro gnu salta para a água e logo a seguir o segundo, o terceiro e todos os que ali estão. Milhares. Correm o mais rápido que conseguem e depois nadam. A certa altura só vemos as cabeças dos gnus na zona mais funda do rio. Vemo-los depois já deste lado, molhados, assustados, exaustos. Seguem atrás uns dos outros e ao lado uns dos outros, mas também uns em cima dos outros e uns contra os outros. 

Quando passam por nós, que os observamos dentro de um jeep, sentimos o seu medo e também a sua fúria. Lembro-me do som daquelas patas contra o rio, contra as rochas, contra a terra, o som dos corpos musculados a roçarem uns nos outros, o som da respiração acelerada. Alguns voltam para trás à procura dos seus. Outros abrandam o passo para que os mais novos os acompanhem. Mas avançam sempre.

Ao longe são uma manada possante e organizada, mas ao perto são uma amálgama de corpos desordenados, sozinhos e desesperados. Sabem que nem todos chegarão ao lado de cá, que ninguém ficará para trás a cuidar deles e por isso sentem pavor, mas também ânsia e urgência. Não podem ficar à mercê dos predadores, não podem voltar para onde estavam. A única solução é seguir em frente e procurar novas pastagens.

Quando escrevi esta história sobre os que são levados e trazidos pelo vento, não resisti a nela incluir um gnu. 

É o meu tributo a todos os animais migratórios ou migrantes, incluindo os seres humanos que, na maior parte das vezes, mesmo quando chegam a territórios ditos civilizados, não são recebidos com a delicadeza que merecem. 

Com mais ou menos educação, com mais ou menos vegetação, o mundo continua a ser para demasiadas pessoas uma autêntica selva.

O livro não fala sobre isto. Nem sequer fala de pessoas. Mas foi em tudo isto que pensei quando escrevi “O gnu e o texugo”.

Venham daí novos ventos. Novos tempos. Novas vontades.


(Ilustração da magnífica Madalena Matoso para “O gnu e o texugo”)