quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Uma vez servi hambúrgueres aos Xutos e Pontapés

Hoje é o último dia de novembro e começou a nevar em Bruxelas. O meu filho nasceu há três dias. Neste momento está com soluços. Era um dia quase perfeito, mas uma amiga deu entrada no hospital e o Zé Pedro morreu. Vejo a neve a cair e canto O Homem do Leme dentro da cabeça.
Uma vez servi hambúrgueres aos Xutos e Pontapés. É mesmo verdade. Foi numa roulotte do Rock in Rio. O Tim fez o pedido e eu cumpri todos os desejos: coca-colas, cervejas, batatas. O Tim olhou para a conta: "Eh pá, acho que te enganaste." Eu desculpei-me: "É que eu não sei fazer contas". O Tim ralhou-me. "Mau, mau, Maria". Fez uma piada qualquer sobre tabuada, a que se seguiu um esforço conjunto: eu e o Tim a fazer a conta juntos. Ora, um hamburguer assim, outro assado, colas, cervejas, este era com menu, o outro não era. Às tantas, admiti: "Não consigo concentrar-me". O Tim riu-se, chutou um número. Eu perguntei: "Mas eu enganei-me na conta para cima ou para baixo?" Ele disse: "Para baixo". Eu disse: "Então, não faz mal!" O Tim riu-se. Insistiu. Aquelas coisas de sempre: nem pensar, quero pagar. Eu disse que estava bem assim. Sou fã e tal.
"De certeza?" Eu disse: "De certeza". Ele disse: "Coitado do patrão!" Eu encolhi os ombros. O patrão era um tipo sujo e desonesto, mas eu não disse isso. Na verdade, não devo ter dito nada. E nem fiz uma piada sobre a minha alegre casinha. Fiquei para ali com cara de parva a dar uns quantos chutos à minha desconcentração. Depois eles foram-se embora, os Xutos e Pontapés, com aquele jeito inventado de serem rockeiros à portuguesa, os seus hambúrgueres e cervejas e coca-colas, e eu fiquei a vê-los ir com a sensação de que um dia escreveria sobre isso. O meu momento desconcentrado com os Xutos e Pontapés.
Neva lá fora e eu canto: "E uma vontade de rir nasce do fundo do ser. E uma vontade de ir, correr o mundo e partir, a vida é sempre a perder".
Não há dias perfeitos. Não há salvação eterna. Não há deus que nos valha.
Mas há canções extraordinárias. E pessoas.
Incluindo alguns artistas.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Estou grávida até dizer chega

Estou grávida até dizer chega. Trago aqui dentro um parasita, que não é uma lombriga nem um cuco. É um segredo humano, muito bem guardado. Escondi-o no meu baú reprodutor há uns meses e trato-o com grande sigilo por causa dos predadores e dos espíritos maus. Nunca se sabe. 
Ssshhhiu! É o meu fruto secreto. 
E nunca sonho com ele. Nunca escrevo sobre ele. 
Mas penso nele o tempo todo.
O meu esboço de gente. Ainda sem rosto, sem nome, sem trejeitos.
Ninguém o conhece. Ninguém sabe ao que vem. Mesmo eu, nunca o vi mais gordo. 
Para já, rebola e dá pontapés. É o meu hóspede clandestino. E acho que gosta de viver aqui dentro.
De manhã, olho-me ao espelho e observo a minha barriga toda emproada, o meu umbigo do avesso. Sou um pequeno astro.
As pessoas sorriem para mim na rua, fazem-me perguntas: É o primeiro filho? É menino ou menina? Está para breve?
As perguntas surpreendem-me. Como é que eles sabem? Quem lhes contou o meu segredo de Estado? Agarro-me à barriga, respondo a bichanar. Bshiu, bshiu, bshiu!
Para a semana revela-se o mistério. Acabam-se os segredinhos. E eu, por acaso, tenho pena. Voltarei a ser uma pessoa muito sozinha e este fruto humano será quem ele quiser ou puder ser. Passará a existir pelo seu próprio pé. E terá o nariz Pessoa, os olhos Bandarra, o feitio do pai, a energia das avós. Será muito parecido comigo, muito parecido com o Homem Ilimitado. Será uma versão melhorada, uma cópia barata, o completo oposto, o que for.
Aí vem ele. O forasteiro. A mergulhar de cabeça no mundo. Igualzinho a todos os outros. Diferente de todos os outros.
Uma pessoa a sério.

Não dá para esconder mais esta verdade.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

A-ma-re-lo

Curioso! Os últimos livros que entraram cá em casa são todos amarelos. Começo a achar que os comprei por causa das capas. Sei lá. O amarelo dá-me pica e vontade de rir.
A-ma-re-lo. Sempre gostei da palavra e da cor.
De resto, esteve um belo dia de outono, deixem-me que vos diga. O sol pousou torrado na varanda e eu sentei-me por ali a permanecer. Aproveitei e tirei uma foto aos livros amarelados. Assim:


Nisto topei o vaso das ervas daninhas, onde nasceu uma flor amarela muito pequena. Deve ser uma florzinha lixada para nascer assim, no meio do frio e das plantas beras. Se calhar ela própria é uma espécie invasora. Não sei.
Ao longe, o outono. As folhas das árvores por todo o lado: no chão, nos ramos, a esvoaçarem por aí. Delicadas e amarelas a dar com pau.
Uma amiga tem um casaco amarelo lindo. Eu nunca tive um casaco amarelo, mas tenho um caderno amarelo que tem uma banana na capa. Gosto da expressão francesa "avoir la banane". Nunca usei esta expressão. Algumas pessoas tratam-me por Ana Banana.
Há uns anos fui vacinada contra a febre amarela. Lembrei-me agora. Tenho saudades das páginas amarelas.
E mais nada.
Gostava barés de ter um casaco amarelo.

sábado, 11 de novembro de 2017

Eis um discurso extremamente sensato

Bom, não é bem assim. Não podemos ser simplistas. 
Até porque coiso e tal. Antes e depois. Ali e acolá. 
É uma questão extremamente complexa. 
A verdade é que. Trinta e um de boca. O diabo a quatro. 
Se, por um lado, isto, por outro, aquilo. 
Há que analisar os vários fatores. 
Uma vez que. Ainda que. A não ser que. 
Temos de separar as águas. Dar a mão à palmatória. 
E não podemos tirar conclusões precipitadas. 
Sejamos razoáveis. 
Não é por acaso que. 
Causa, efeito. Tiro e queda. São e salvo. 
A história já por várias vezes demonstrou que. 
Vai e vem. Vira e mexe. Leva e traz. 
O mundo atravessa momentos difíceis. 
Antes de mais. Acima de tudo. Além disso. 
E temos de admitir. 
O que der e vier. De mal a pior. É fazer a conta. 
No fundo. De facto. Com efeito. 
E não esqueçamos o seguinte. 
Sempre que. Salvo se. Se bem que. 
É esta a verdade nua e crua. Pura e dura. Curta e grossa. 
Por outro lado, a vontade política sim ou sopas. 
Cara ou coroa. Oito ou oitenta. 
Seja como for, o que está em causa é. 
Porque enfim. A fim de. Assim que. 
De maneira que não nos podemos limitar a. 
Volta e meia. Assim e assado. 
Repare no seguinte. 
Se é verdade isto, ainda é mais verdade aquilo. 
No sentido em que. Ao passo que. À medida que. 
E isso torna difícil, se não mesmo impossível. 
Mundos e fundos. Cobras e lagartos. 
Logo, é natural que. Alhos com bugalhos. Unhas e dentes. 
Há uma linha ténue entre tal e tal.
E de uma coisa tenho a certeza. 
O problema da sociedade atual é precisamente.
Bládiblá.  
Re-béu-béu, pardais ao ninho. 
Já se sabe que. Gregos e troianos. 
Quanto mais disto, menos daquilo. 
Ao contrário do que se previa, verificou-se que. 
Entretanto. No entanto. Porquanto. 
Não podemos ignorar que. 
Preto no branco. Ouro sobre azul. 
Em última análise, interessa saber se. 
Porém. Todavia. Contudo. 
Sem eira nem beira. Sem pai nem mãe. 
Sobretudo, não há respostas simples. 
Poucas e boas. Resmas e paletes. 
Vivemos numa época em que é extremamente difícil coiso. 
Por isso, é como te digo. 
Aguenta. Come e cala. Chuta para canto. 
E, entre uma coisa e outra, venha o diabo. 
Firme e hirto. A par e passo. 
Navegar na maionese. 
E isto não é dizer pouco.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Tem e não tem

Tem corpo. Tem fogo. Tem fome. Tem cheiro. 
Tem bicho carpinteiro. Tem mau feitio. Tem sangue-frio. 
Tem vistas curtas. Tem costas largas.
Tem mau perder. Tem mau olhado. Tem mau génio.
Não tem troco. Não tem remédio. Não tem razão. 
Tem ambição. Tem frustração. Tem alergia.
Não tem culpa. Não tem cura. Não tem vergonha.
Não tem medo. Não tem emprego. Tem fezada.
Não tem sal. Não tem sol. Não tem tempo. 
Tem bom senso. Tem maus hábitos. 
Não tem jeito. Não tem juízo. Não tem futuro. 
Tem boa boca. Boa onda. Bom humor.
Tem curso superior. Tem amor próprio.
Tem histórias. Tem insónias.
Tem dúvidas. Tem dívidas.
Tem saúde. Tem saudade.
Tem potencial. Tem número de identificação fiscal.
Tem cara de cu. Tem cara de pau.  
Não tem ilusões. Não tem soluções.
Não tem cabeça. Não tem paciência.
Não tem Norte. Não tem sorte.
Não tem certeza. 
Tem personalidade. Tem força de vontade.
Tem enxaquecas. Tem estaleca.
Tem telhados de vidro. Tem sexto sentido.
Tem macacos no sótão. Não tem noção. 
Tem lata. Tem graça. Tem garra. Tem asma.
Não tem papas na língua. 
Tem pelo na venta. Tem problemas.
Não tem pena. Não tem pila. Não tem pinta. 
Não tem ponta por onde se lhe pegue.
Tem corte de cabelo. Tem animal doméstico.
Tem idade para ser tua mãe.