quarta-feira, 26 de março de 2014

Os que não têm

Os que não têm, pedem ou então pedincham, suplicam, imploram. Passam os dias num degrau, na boca do metro, e dizem ladainhas que ninguém entende. Alguns trazem cartazes ao peito: Tenho fome, tenho SIDA. Outros andam de carruagem em carruagem com uma viola ao ombro, ou ficam num canto a soprar numa flauta ou num clarinete ou numa harmónica. Também há os que cantam ou os que falam sozinhos, os que olham em frente mas não nos vêem porque entretanto enlouqueceram e já não moram aqui. Também há os que vendem revistas ou porta-chaves ou peluches e trazem um cão pela trela ou uma criança pela mão e uma lata ou um chapéu ou um mealheiro.
Se forem bons tocadores, recebem moeda; se não forem, não recebem. Se forem criativos ou agressivos, safam-se melhor. Se roubarem, safam-se melhor ainda. Roubar compensa mais do que pedir, claro, claro.
Algumas pessoas dão moeda. Mas a maioria não. Por uma questão de princípio, naturalmente. Os europeus também têm sentimentos. E sobretudo convicções.
As convicções são mais importantes do que os sentimentos.
Não se pode encorajar a imigração ilegal.
Não se pode, pois não?
Não.
Os europeus têm convicções, mas vacilam. Eu, pelo menos, vacilo.
Mas não dou.
Os que pedem não são daqui.
Eu também não sou daqui.
Ninguém é daqui. Nem os que pedem, nem os que dão.
Os ingleses querem acabar com a livre circulação dos europeus. O melhor é ficar cada um na sua terra, é mais fácil assim.
E os que não têm terra?
Pois, não sei.
A história é feita destes ciclos que também vacilam.
De boas intenções está o incerto cheio.
Os europeus também foram imigrantes ilegais.
Foram, não foram?
Foram.
Atravessaram fronteiras descalços.
E agora baixam os olhos quando lhes pedem uma moeda. O que fazer?
Antes acertávamos as contas com Deus. Pagávamos o dízimo à Igreja. Agora apaziguamos a alma com atividades de voluntariado ou transferências automáticas para organizações que apoiam crianças ou imigrantes ilegais ou pessoas deficientes ou ex-toxicodependentes ou outros grupos a dar para o desfavorecido e marginal.
Já fizemos a nossa parte.
Já, não já?
Já.
Os mais sentimentalistas apadrinham crianças africanas que aprendem a pedinchar logo de pequeninas. A Europa é a que mais ajuda.
É, não é?
É.
Ajudar é preciso. Desde que não venham para cá pedir esmola. Estamos melhor sozinhos do que mal acompanhados.
Ai, sim?
Não, não estamos.
Os que não têm imploram com os olhos, mas já ninguém os vê.
É muito melhor olhar para o chão.
A Europa não é um bom sítio para pedir esmola. E os europeus também já não moram aqui.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Banana Chips

No outro dia, descobri as banana chips. No México não querem outra coisa. Parecem batatas fritas, mas não são batatas nem fritas. São fatias de banana. Estavam à venda no café. Diziam: Go bananas with these chips! e eu achei piada, porque joguei Bananoid até tarde e sou Ana Banana. Comprei um pacote: 120 gramas de banana frita e crocante, que amolece na boca. Comi o pacote em 24 horas. 120 g de um grande enjoo de banana com leite de côco. De castigo, fiquei a marear, numa naúsea de marinheiro que anda para cima e para baixo, para cima e para baixo.
Olha, se calhar, entrei num barco e fui a balançar nas ondas. Nem disse adeus a ninguém. Entrei e fui. Nem sequer comprei bilhete. Se me apanham, ainda me lançam ao mar. Neste momento, estou a subir e a descer, a subir e a descer.
Tudo por causa das banana chips.
120 gramas de parvoíce.
Se calhar, gosto de estar enjoada.

É possível.

Ou então estou meia abananada.
Deve ser isso.

quinta-feira, 20 de março de 2014

A boneca essencial

A primavera chegou a Bruxelas e, com ela, a Cimeira dos Chefes de Estado e de Governo. E manifestações. À volta da rotunda, polícias e barreiras e também camionetas com repórteres e jornalistas. Ninguém passa em frente ao Conselho hoje, nem sequer os autocarros; vão dar uma granda volta. Já tive ataques de fúria por causa disso. Ia atrasada para um voo.
Os meus problemas são ridículos quando comparados com os problemas do mundo.
As transportadores aéreas não querem voar para a Venezuela. Israel bombardeou a Síria. Os Estados Unidos aprovaram mais sanções contra a Rússia.
Os líderes da UE chegam em carros pretos e compridos. Hoje não os vi, mas às vezes vejo-os. Os carros, não os líderes. Os líderes vão escondidos atrás dos vidros fumados.
Michelle Obama está em visita oficial na China.
Na ordem do dia da cimeira europeia: emprego, união bancária, Ucrânia, política energética, relações da UE com África.
Nas últimas 48 horas, mais de dois mil migrantes africanos foram resgatados na costa italiana.
Houve um atentado na Líbia e outro no Afeganistão.
As grandes questões do mundo estão dentro umas das outras. As grandes questões do mundo parecem Matryoshkas.
As palavras "cimeira" e "Crimeia" escrevem-se com as mesmas letras, que estranho.
Ninguém conhece ao certo os objetivos da Rússia a longo prazo.
A única boneca russa que não é oca por dentro é a mais pequena de todas. É a boneca essencial.
Os líderes da UE já devem ter tirado uma foto de família, todos alinhadinhos. Parecem soldadinhos de chumbo. O Presidente do Conselho tem cara de rato.
A UE vai aprovar mais sanções contra a Rússia.
O rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia.
Se calhar a guerra já começou e ainda não demos por ela.
Está sol na rua. Bendita primavera. Tenho mesmo de comprar uns óculos escuros.

quarta-feira, 19 de março de 2014

O meu pai

Porque hoje é dia do pai.
E é Natal quando uma pessoa quiser.

O Pai Natal não existe. O Fernando Pessoa também não.
Eu sempre soube disso.
O Pai Natal é o meu pai. E o Fernando Pessoa também.
O meu pai tem barba e ri-se muito, porque a vida tem piada.
Um dia apareceu sem barba e ninguém gostou.
O meu pai ficou triste, mas depois riu-se. Nós também. A barba voltou a crescer.
O meu pai come uma laranja todas as manhãs.
E escreve direito em linhas tortas.
E conhece todos os caminhos.
O meu pai tem o cartão da FNAC e sabe mexer no iPad.
E também sabe nadar. E fazer o nó de gravata.
E contar histórias macabras sobre monarcas ingleses.
O meu pai é do Benfica.
E eu sou do meu pai.

terça-feira, 18 de março de 2014

Aeroporto de Bruxelas

Cheguei. Estou sempre a chegar. Aeroporto de Bruxelas, A 59, A 57, A 55. Welcome to Europe. Uma casa de banho, um bonequinho e uma bonequinha, tenho chichi. Faço chichi e lavo as mãos. O cabelo fora do sítio. Estou tão pálida. Como é que se diz isso em francês? Não há de ser palide. Um tapete rolante e depois outro. É pâle. Vi no dicionário. Vou sempre em frente com as minhas pernas e rodinhas. Dá jeito ter um dicionário no telefone inteligente. Neuhaus, Samsonite, Fine food, Gourmet. A 45. Malas, mochilas, sacos pela mão, carteiras, casacos. Andamos com tantas coisas às costas. Uitgang sortie ausgang exit. Uma seta para ali (Gates B) e outra para cima (One level up). Escadas rolantes. Eu rolo nas escadas rolantes. Feel inspired wallonia. Samsung galaxy - Design your life. Comprei o da concorrência. Terei feito bem? Claro que sim. O que faz aqui um Manneken Pis de chocolate? Um monstro-criança agarrado à pilinha. É horrível. Um cartaz da Calzedonia. Tenho as meias todas rotas. Nothing to declare. E.U. Leio EU e não E.U. Tiro o passe de metro. Sunglasses. Tenho de comprar uns. Para quê? Para nada. Currency exchange. Bus connections level 0. Vou para o nível 0. Sempre a descer até ao nível 0. Não gosto nada de descer. Autocarros Brussels City. Départ en 2 minutes. Acelero o passo. Vou atrás das minhas pernas e rodinhas. Em piloto automático. Num tapete rolante. Sempre em frente. Até à porta de embarque.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Joan As Police Woman - The magic

A Joan não apareceu vestida de polícia. Vinha com um par de calças cintilantes e um casaquinho muito composto, mas meio amarrotado. Disse que tinha medo de passar a ferro e que talvez as pessoas a respeitassem mais se aparecesse cheia de rugas. A Joan tem um tique qualquer na língua, lambe-se um bocado. Fica com um certo ar de cat woman. A Joan tem 43 anos e usa um risco ao meio com uns ganchos infantis de um lado e do outro. Quando canta, parece muito mais velha, não por causa das rugas, mas por causa da voz que entra dentro da pele como uma raiz.
No final do concerto, comprei o álbum novo. Chama-se Classic, é dourado e preto. Tem um autocolante em cima a dizer não sei quê. Depois fui ter com a Joan, que estava mesmo ali, do lado de lá do balcão. Ela disse Hello! Eu disse aquelas coisas de sempre, que o concerto isto e que o álbum aquilo. A Joan pegou no CD e disse que não gostava nada do autocolante em cima do álbum, mas que era muito difícil tirá-lo. Ai é? É. Vou tentar. Fiquei ali ao pé da Joan a tirar o autocolante enquanto ela dava outros autógrafos. As minhas unhas abrutalhadas não me deixaram mal: o autocolante morreu e a Joan ficou feliz. Até disse I love you e foi mesmo uma coisa sentida, porque eu lancei-lhe um truque de magia, zás! A Joan perguntou-me se queria que escrevesse alguma coisa especial no autógrafo. Eu disse que estava só à procura da magia. A Joan abriu muito os olhos e escreveu a dourado: Ana, For your magic! Depois fez um coraçãozinho e assinou por baixo.
Fiquei logo a magicar.
Sou mega fã.

quarta-feira, 5 de março de 2014

As prioridades segundo a Ryan Air

Diálogo entre mulher extremamente grávida e senhora da Ryan Air:

- Desculpe, esta é a fila do embarque prioritário?
- Sim... Mas é só para titulares de bilhete prioritário.
- Ah...
- Deixe-me ver o seu bilhete, por favor.
- Eu estou grávida!
- Pois, mas tem um bilhete normal, vê? Os bilhetes prioritários dizem "Priority" em cima. Não é o seu caso.
- As grávidas não têm prioridade?
- Não. Os bilhetes prioritários são mais caros.

terça-feira, 4 de março de 2014

Aperto no ombro

Beijinhos, abraços, apertos de mão.
Esta coisa de o corpo falar pelos cotovelos é mesmo assim e o meu corpo gosta. É tagarela.
Uma festinha ou um estalo na cara. Uma pessoa percebe logo.
Ora se está de trombas, ora se faz beicinho, agora pisca o olho, e logo a seguir revira. Um esgar, um aceno, um bater de palmas.
As pessoas falam sem falar. Voltam as costas, dão a mão, abanam a cabeça. E há gestos para todos os gostos. Os silenciosos e os que fazem barulho. Os previsíveis e os inovadores. Os íntimos e os afastados. Um polegar para cima e outro para baixo, um sobrolho a franzir, o dedo médio a levantar, ups! 
O corpo também dá pontapés na gramática.
De todos os gestos e contactos físicos formais, semiformais e informais, ainda estou para compreender o aperto no ombro.
É preciso imaginar este contacto inesperado: uma mãozinha semiformal a comprimir a nossa pele.
E não é uma mão conhecida. É uma mão estrangeira: cinco dedinhos misteriosos e, possivelmente, sapudos.
Nunca é um amigo que nos aperta o ombro. É sempre um conhecido disfarçado de outra coisa. (É Carnaval, ninguém leva a mal.)
Dá-me logo vontade de relinchar e distribuir coices, até porque hoje vim mascarada de égua.
O aperto de ombro vem disfarçado de sensibilidade e bom senso. Olha, estou aqui, diz a mãozinha misteriosa. Quero ser teu amigo, insiste ela. Cinco dedinhos a comprimir a minha pele, uma tarântula de estimação.
Quando me apertam o ombro, apetece-me sair a galope e fazer um cocó assustado.

Tenho um temperamento de égua indomável.
E sou dose para cavalo.