quarta-feira, 31 de outubro de 2007

o silêncio habitado das coisas

Para ler de cima para baixo e de baixo para cima
(ou de outra forma qualquer).

asas de um silêncio livre
para saudar a noite cheia
aquele que um dia me deste
branco como as salinas
o tal silêncio do pássaro
que me pousas nas mãos
o silêncio
das fogueiras
que caminha
para o silêncio
de janelas abertas
tão cheias de ar e de tempo

o tal silêncio habitado das coisas

terça-feira, 30 de outubro de 2007

O fiscal - Capítulo II

Para perceber o que aqui se passa, clique aqui.

Por Ana Pessoa

A palavra autoria explodiu no ar como um fogo de artifício. A mulher gostava que a tratassem por autora e por isso respondeu prontamente "Sim, sou eu a autora!".
O fiscal não a ouvira muito bem porque entretanto a mulher resolvera desembaraçar-se da porta e havia trincos e chaves tilintando contra a madeira. As mãos da mulher eram cheias como balões mas certeiras no toque: em dois segundos estava escancarada a porta e a autora surgia inteira.
Dizia: "Aqui é tudo legal, senhor fiscal!" oferecendo o perfil ao homem para que ele entrasse. E enquanto ela se admirava com a sua frase rimada, ele estava ocupado em interpretar a autora (ainda nem tinha tirado o chapéu nem guardado o seu título de fiscal). Era difícil entender aquela mulher e o homem precipitou-se para o seu bloco de notas, onde escreveu: "má dicção". A mulher repetia "Tudo legal!" e o som do último compasso vinha de um lugar secreto – entre a ponta da língua e a dentição. Era fechado, misterioso, irreproduzível.
Já estavam na sala. A mulher não perdia tempo por o tempo ser dinheiro. Tinha chegado ao Brasil havia anos, morava na Rua Atlântica desde então e logo aprendera a lidar com os brasileiros: não podia falar-se muito com eles, eram demasiado conversadores para o que queriam dizer e a senhora aprendera a ouvir apenas as palavras essenciais dos seus discursos. Naquele caso: "fiscal".
Repetiu muito alto as duas frases do pedaço de papel ("De facto, um óptimo negócio. Compre.") e era como se o som viesse do bolso do homem, pois ele saltou assustado com as palavras da mulher. Não só na escrita mas também na fala, a senhora dizia "facto" com o fonema oclusivo "k" a meio. Estava realmente estupefacto mas, de repente, esqueceu-se deste fenómeno, pois a mulher dissera ainda: "Sente-se, senhor fiscal!". O homem derreteu devagar até ao sofá, vaidoso com o seu novo título de senhor à frente de fiscal, ensenhorando-se no seu lugar. O homem gostava da forma como a mulher dizia "senhor", a vogal vinha fechada e a última nota vibrava discreta, nem a mais nem a menos, um "r" verdadeiramente elegante, impossível, inimaginável.
(continua)

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Sempre em pé

Pois é, cheiro a chulé e nem tenho pé. Désolée, mas sou um sempre em pé! Tenho cara de chimpazé e só sei cantar o giroflé. Bebi muita água-pé e estou resvés para cair. Portanto, s'il vous plaît, saia mas é da frente que ainda leva um pontapé.
Muito gosto eu da Salomé, é mais formosa que um canapé.
Sim, c'est vrai: sou um homem de fé. Daí estar sempre em pé.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

O fiscal - Capítulo I

Para perceber o que aqui se passa, clique aqui.

Por Fábio Reynol

Reticente e incomodado foi o fiscal de palavras ter com a portuguesa que usava mal, segundo ele, o português. Muito mais incomodado do que reticente, a bem da verdade, a ponto de deixar as reticências ao largo para atravessar a Rua Atlântica a fim de tirar satisfações com a mulher. A pedra no sapato do homem era um pedaço de papel de pão no qual a mulher havia escrito: “De facto, um óptimo negócio. Compre.”
Eis a razão da hesitação do fiscal: ele não era o destinatário do bilhete. Esse fato o transformava num intrometido e o colocava na obrigação de explicar como o papel que não lhe dizia respeito havia parado em suas mãos. Seu dever de defender a boa língua portuguesa, no entanto, falava mais alto do que a vergonha de assumir a própria indiscrição.
Outro empecilho dessa empreitada era a sua bizarra profissão que, pelo simples fato de ela não ser reconhecida por ninguém com exceção dele próprio, era motivo de chacota e desdém por aqueles que eram interpelados por um dito fiscal de palavras. Mas quanto a isso, ele já estava acostumado e não seria esse o impedimento para cobrar o zelo esperado de uma mulher nascida no nobre berço da língua.
Abra-se um parêntese necessário. A nomeação de um fiscal de palavras se dá, naturalmente, a alguém que conheça a língua, mas principalmente a uma pessoa que acredite que terá autoridade sobre as demais para cobrar e ver cumprir o bom uso da palavra. Em outras palavras, um louco. Fechemos o parêntese.
Lá foi ele, chapéu na cabeça e prova do crime no bolso. Esta obtida de maneira vil e ilegal, como já frisado. Atravessou a Atlântica sem molhar os pés e bateu na porta da casa sentindo ares de uma autoridade policial. A porta entreabriu-se.
- O que deseja? Respondeu a própria suspeita colocando a cara na fresta.
- Minha senhora, eu sou fiscal de palavras da língua portuguesa. Disse ele mostrando uma folha amarela e surrada, a mesma que tinha sido carimbada em cartório e que havia sido rejeitada pela secretaria da Academia Brasileira de Letras e rechaçada pela Embaixada Portuguesa em Brasília, ambas as instituições se recusaram a dar mais combustível a tal insanidade.
- O que deseja? Repetiu a mulher sem se dar ao trabalho de ler o conteúdo da folha.
- Este bilhete é de sua autoria?
(continua)

Brasil-Portugal - Uma Relação de Língua

Caros leitores,
isto não é uma ficção. Escrevo-vos para anunciar que redescobri o caminho marítimo para o Brasil, onde conheci Fábio Reynol. No regresso a Portugal li o seu diário e, de repente, viajava a bordo de uma garrafa com textos dentro. Bebi desta garrafa muitos dias. E certa manhã atirei-a ao Tejo para que ela regressasse às mãos do Fábio. Ia com uma mensagem dentro.
Foi assim que a língua atravessou o oceano (de cá para lá e de lá para cá) e, quase sem querer, nasceu um texto escrito a quatro mãos: duas batem palmas ao som do samba, as outras duas bóiam no ar com o fado.
Este texto tem a forma de um mapa, chamámo-lo "folhetim" e demos-lhe um título: "O fiscal". Hoje abrimos a garrafa para comemorar. Segue o texto.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Generation gap

- Ai, que lindo! Que idade tem esta doçura?
- Fez agora 5 meses!
- Que fofinho! Tem uns olhos tão grandes!
- Sim, é verdade! São iguais aos do pai!
- Ai, que giro! Posso dar uma festinha?
- Pode, claro! Ele gosta!
- Ai sim? E não morde?
- Ai, que disparate!
- Que disparate, não! Já vi bichos mais pequenos a morder!
- Ó minha senhora, isto não é um cão, é uma criança!
- Ai sim?! Aaaahh, é que parece mesmo um cão!
- Um cão?! Mas desde quando é que as crianças são parecidas com cães?!
- Pois, realmente é estranho! O pai não será lobisomem?
- Olhe, não sei! Desculpe: tenho de sair nesta paragem.
- Está bem, não é preciso ladrar!
- Ladrar?! A senhora deve ser louca!
(A mulher vira as costas e sai do metro, empurrando o carrinho à sua frente. A primeira senhora vira-se para outra senhora qualquer.)
- Com um bebé nas mãos e nem sabe se o pai é lobisomem.
- Ai sim? Que horror!
- E ainda me chamou de louca!
- Credo! Grande cadela!
- Pode crer! Estamos mesmo num mundo cão!
- É verdade!
(Abanam as duas a cabeça.)

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Choque térmico

Sou um pouco mais feliz quando bebo chá em dias frios,
Principalmente se queimar a língua.
(O contraste atrás da pele desperta-me.)
Há qualquer coisa de artístico nisto.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Cotoveladas

Uma criança extraterrestre perguntou à mãe: "Se os humanos andam todos às cotoveladas, por que razão não lhes cortam os braços?" e a mãe explicou-lhe que cortar braços às espécies era contra natura. A criança extraterrestre fechou-se no quarto e passou o dia a catar seres humanos da cabeça. Guardava-os religiosamente num frasco e batia no vidro para os acordar. A criança observou os seres humanos durante semanas e verificou que andavam realmente sempre às cotoveladas. A criança extraterrestre pegou numa tesoura e cortou-lhes os braços. Durante dias os seres humanos pareciam mais normalizados, mas logo começaram a bater com a cabeça uns nos outros. A criança resolveu então cortar-lhes as cabeças.
Verificou que morriam.
A criança decidiu dedicar toda a vida àquela investigação e tornou-se num especialista em seres humanos.
Certo dia, quando a criança já era professor, escreveu um livro revelando a sua teoria. Anunciou: "Os seres humanos são cegos" e tinha provas. A comunidade científica exclamou: "Ooooohh" e começou a demonstrar verdadeiro interesse pelo estudo de seres humanos. Era realmente fascinante que uma espécie inteira fosse capaz de viver em sociedade sem ter a capacidade da visão.
Um caso único na história do Universo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

A metamorfose

No dia das mudanças meteu a casa inteira num caixote e fechou-o com fita-cola para garantir que a vida não saía. Disse: "Vou com a casa às costas" e pensou subitamente que era um caracol. Sentia-se lento e elástico como os relógios de Dalí, tudo era longínquo, enorme, inalcançável. Rastejou até à rua e apontou as antenas para cima atento aos pormenores da cidade. Era uma despedida triste, o tempo desacelerava um pouco mais, o corpo diminuía até ao chão. Desceu vagarosamente a rua com a carapaça às costas. Disse para o caixote: "Onde eu acabo, começas tu! Ou vice-versa.". A sua casa era parte do seu pulmão por isso, a certa altura, enfiou-se dentro do caixote. Aí ficou muito tempo com os seus objectos, era uma viagem bonita ao fundo do ser. Prometeu que sairia um dia da sua carapaça, quando o sol fosse quente e a rua seca. Por enquanto só queria estar a sós com a sua casa.
Depois, numa noite igual às outras, lembrou-se que era hermafrodita e ficou contente por isso. A vida tornava-se de repente mais interessante.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Costa dos ciclopes

Veio dar à costa uma pescada ignota e bem formosa. Vinha cheia de areia e deitada de costas a pobre pescada. (Estava quase morta: a boca tosca, a língua solta e os olhos abertos para a estrada). Já era tarde posta quando a bruxa maldisposta veio ver a tal pescada. E nessa altura já estava a fogueira acesa e a sereia cortada às postas. Disse a bruxa indisposta: "O belo para uns é comestível para outros" e de repente ficou contente e bem-disposta por achar que uma bruxa feia pudesse ser sereia para os ciclopes daquela encosta. E então, porque não?, endireitou as costas e comeu muito composta a posta da pescada ignota.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O texto e quem escrevia

Disse o texto a quem escrevia: "Não me escreverás!" e quem escrevia bateu no texto com força dizendo: "Cala-te!". Com o embate, o texto saltou da cabeça e foi aterrar na boca. Quem escrevia tossiu engasgado e levou as mãos aos lábios sentindo o peso do texto na língua. Disse: "Tu nem sequer existes!" e o texto mexeu-se inquieto por dentro. Quem escrevia estava muito parado, quase suspenso sobre a folha tão branca como os voos de infância e, ao soltarem-se, era quem escrevia que caía vagaroso e não a folha, de tal modo impenetrável que não se rasgaria com o gesto de uma mão nem de duas nem de mil. "Pára!", gritou quem escrevia e o texto estava agora na ponta da língua, à beira do abismo, queria falar mas tinha medo de morrer na folha. Calaram-se os dois. Saiu uma palavra dos lábios. O resto do texto tentou puxá-la para dentro da boca, mas ela seguiu corajosa para o mundo. Pousou nas maçãs do rosto e subiu muito réptil, letra a letra. Havia um buraco misterioso e a palavra estalou no ar em salto mortal desaparecendo no ouvido. Quem escrevia ouviu: "Serpente" e endireitou as costas como as serpentes se endireitam para o ataque. A imagem daquele corpo esguio hipnotizava quem escrevia: viu na folha branca o corpo maleável da cobra, a língua repetitiva como as marés, os olhos poderosos em forma de luas. Disse a serpente: "Não me escreverás!" e quem escrevia obedeceu. No sono quase acordado quis desculpar-se. Disse: "Há textos que ficam por dentro" e, ao engolir a saliva, engoliu o texto inteiro que trazia na ponta da língua. Só a serpente ficou no ouvido, as oito letras muito juntas e flexíveis dormindo contra o tímpano. Naquela noite a palavra maleável falou outras palavras e no ouvido nasceram outras letras. Quem escrevia acordou e escreveu o que a serpente lhe ditava.

Era, por assim dizer, a corrupção de quem escrevia, a perdição, a salvação.

O pecado original da escrita.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

O poço

É certo que fomos de mão dada ao fundo do poço e vimos as trevas (ou talvez tenhamos antes cegado e nesse caso não vimos nada, o que vai dar ao mesmo, porque no fundo do poço o cenário é negro e a vida também). Um dia também nós, os mensageiros dos deuses, fomos negros, levámos outros a enterrar no poço e descemos com eles até a um certo degrau em que a tocha morria num suspiro. Peço-te: não esqueças as tuas origens, volta comigo àquele poço, anda sentar-te naquele degrau. Fomos e viemos carregando corpos de outros às costas. Pergunto: o que seria da vida e da morte sem nós, os caminheiros? Orgulha-te de quem és, meu amor, ninguém é superior a isto, nem mesmo os deuses (eles não sabem o que é a vida nem a morte). Lembro-me do deus das trevas, que nos deu a provar o néctar do fim do mundo. Lembras-te? A mão de Hades à beira dos nossos lábios e nós a morrer um pouco mais do que antes. Repara que essa espécie de morte nos deu outra espécie de luz. Confesso: fico grata à morte por isso. Lembra-te que saímos sempre do poço à força destes braços, eu e tu empoleirados nas costas dos que ficavam no fundo, os embriagados de morte. Somos um pouco mais vivos do que os vivos graças a estes braços, a este poço, a esta morte. Lembra-te dos que nasceram no poço e nunca saíram de lá por não conhecerem o segredo da vida, os filhos dos mortos que corriam atrás de nós pelas escadas. Tinham tanta sede de vida que nos comeriam, se alguma vez nos tocassem. Por tudo isto te digo que somos nós os homens verdadeiramente felizes. Estou grata à vida por poder saborear o teu beijo, mas os vivos não apreciam a beleza das coisas, são como os filhos em berços de ouro, incapazes de dar valor ao próprio ouro. (É trágico ser-se vivo.) Escuta a melodia do nosso andar, pé ante pé, somos tão serenos e sabedores. O lugar da paz está aqui, entre um mundo e o outro, tenho a certeza. Por isso te digo: "Senta-te comigo neste degrau!", a meio do poço. Erguemos a cabeça e faz-se luz, baixamo-la e é noite escura, olhamos em frente e somos apenas. Admite: Somos felizes. No final, depois de tudo isto, quando não houver lugar para a vida nem para a morte, verás como nós, os mortos-vivos, subiremos este poço, pé ante pé, serenos e sabedores como dantes. Será uma outra espécie de morte. Uma outra espécie de vida.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Dores de crescimento

Chorava convulsivamente porque tinha feridas no corpo e nódoas sempre negras. (Esclareça-se: ninguém lhe fizera mal.) Na verdade todos a tratavam demasiado bem e nem mesmo em criança ela caía ao chão. O pai dizia que tal se devia ao facto de a pequena andar sempre ao colo da mãe; a mãe dizia que não, que a pequena tinha um equilíbrio de rã, as pernas muito assertivas e os pés muito estáveis.
A adolescente dançava ballet desde cedo e só tinha fatos que lhe cobrissem as costas por causa das manchas horríveis de alergias inventadas. Quando lhe apareceu o primeiro pêlo negro na púbis, chorou horrorizada em frente ao espelho e arrancou-o com uma pinça. Tal era a sua obsessão que, ao lhe perguntarem o que queria ser quando fosse grande, em vez de bailarina, a menina respondeu "perfeita".
Certa vez diagnosticaram-lhe uma arritmia no coração e ela achou que o seu corpo já não tinha música. Não queria ir ao ballet e logo a seguir deixou de dançar. Depois, por as borbulhas lhe cobrirem o rosto e as ancas terem inchado, declarou que não iria mais à escola.
A mãe desesperou e levou-a a uma psicóloga com dentes amarelos. A adolescente mal falava e não ouvia, não gostava de ler nem de pintar nem de escrever e, agora, nem mesmo de dançar. Por isso, a psicóloga ofereceu-lhe um bilhete para uma exposição dizendo: "Aqui está a tua cura!". A rapariga queria curar-se da sua falta de perfeição, por isso, nesse dia e em segredo, foi ao centro cultural.
Nas paredes havia quadros da Frida Kahlo e a adolescente, ao ver as feridas de Frida, calou as suas. Viu os auto-retratos e auto-reflectiu. Havia pregos no corpo, uma coluna vertebral de ferro, camas de hospital. A rapariga saiu da exposição muito calada, comprou um poster do quadro "A Coluna Quebrada", afixou-o no quarto e não contou a ninguém o que vira.
Nessa noite a rapariga sonhou com o corpo enrolado em gesso, tão igual ao dos egípcios depois da morte: queria gritar e a sua boca mumificada era muda, queria fugir e os seus pés de anfíbio desequilibravam-se, caíam, nunca se levantavam. Ao acordar libertou-se dos lençóis e da roupa como quem sacode insectos, abanou o corpo e assim ficou muito tempo, completamente nua e sentada no chão.
De repente, assaltou-a um pensamento. Repetiu: "As feridas definem-nos!". Ouviu por dentro o coração sem ritmo e entendeu-o.
A adolescente concluiu: "Preciso de auto-retratar-me!" e ficou nua todo o dia, à excepção dos sapatos de ballet que entretanto calçara. Dançou sem música: deu saltos impossíveis e pousava certeira no chão, estava quase sempre em pontas, cheia de pontaria. Ao desequilibrar-se a primeira vez riu-se: era preciso conhecer os limites. Por isso, no dia seguinte, quando a psicóloga perguntou como se sentia, só a adolescente percebeu o que disse:
"Mal posso esperar por cair!".

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Dança africana

A negra bate com o pé no chão e nasce poeira dos seus pés descalços, nasce vida e ar (na verdade nascemos todos juntos por baixo dos pés da negra, muito pequenos, insignificantes, desnecessários). Batem batuques e já não sabemos quem chegou primeiro, se o pé da negra ou os batuques porque estão em perfeita sintonia. É enorme esta negra mas é como se não fosse, pois a sua leveza é própria dos que habitam as nuvens. Fazemos-lhe uma vénia, daí ela parecer maior ainda. Bate com o pé no chão e o outro pé bate de seguida, muito irmãos, e o corpo vibra com as ondas invisíveis dos batuques. A negra abana avolumada as ancas aveludadas, bem-aventuradas e sai-lhe música do ventre. É a própria terra que canta através dela e o que parecia um caos é agora ordem, por o seu corpo ser a origem de todas as coisas. A negra tem um tambor por dentro e quando bate o pé no chão, temos a certeza de que esse é o primeiro batuque do mundo, o primeiro som, a palavra de ordem. Lembramo-nos: "No princípio era o Verbo" e vemos nesta negra o corpo e a alma do início. Queremos comunicar. Por isso levantamo-nos e batemos com o pé no chão. A negra leva-nos pela mão e estamos em perfeita sintonia. Pensamos: "Um pouco mais de inocência para sermos autênticos" e tentamos esquecer-nos de nós próprios. A certa altura conseguimos e abrimos os braços para o mundo. Somos apenas poeira por baixo dos pés da negra.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Espaço

Nesta noite somos enormes. Esticamos a cabeça e temos nuvens agarradas ao cabelo, damos um passo e estamos fora do mundo. Arrancas a lua do céu e ofereces-ma dizendo: "Para que não te percas nesta noite escura!". Faço um colar de meteoritos e meto a lua ao centro. És tu que prendes a fita à volta do meu pescoço (é um colar lindíssimo). Queremos ir para longe, por isso damos cinco passos e estamos em Neptuno, onde a noite é fria e azul. Falamos sobre o mar e os teus olhos são agora água, neles mergulho feita sereia. Digo: "Tenho frio" e levas-me ao colo até Vénus. Sentamo-nos de frente para o Sol e as pernas baloiçam no espaço. Chamas-me: "Princesa vermelha" e a tua boca pega fogo. Toco ao de leve na Terra e ela roda sobre si própria muito rápido. Rimo-nos do movimento e rodamo-la um pouco mais. Esticas os braços enormes e pegas em Saturno. Exclamo: "Que bonito!". Despe-lo com cuidado e pões-me o seu anel no dedo. Gritas: "O universo é nosso!", mas não temos pressa de partir. Guardamos os planetas e as pequenas luas nos bolsos e procuramos um espaço vazio. Damos cinco passos e estamos num sítio deserto. Aí ficamos muito tempo. A jogar ao berlinde à luz das estrelas.


A propósito do poema de Jorge de Sousa Braga:
"Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno.
E quase ia morrendo com o receio de que ele não te coubesse no dedo."

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Arlequim

Cheirava a jasmim o meu primeiro amor e tinha um fato de muitas cores. Declamava: "Morra o Dantas! Morra!" e quando dizia: "Pim!", eu ria até ao fim do dia. Cantávamos juntos a canção do alecrim e os dias eram assim, brancos e macios como as mãos de cetim do meu arlequim.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Espécie de peça de teatro em 5 voos – 5.º voo

Qualquer coisa se passou no dia anterior porque hoje, às oito e meia, já se tratam por tu e sabem o nome um do outro. No céu estrelado dos olhos adivinha-se o sonho de cada um: no sonho dele o elevador encrava, ficam dias e noites presos no elevador que é entretanto a gruta dos ladrões, onde Ali Babá encontrara a lâmpada mágica. No sonho dela o elevador não pára de subir, sobe pelo céu como um balão, atravessa as nuvens e de repente é uma nave espacial em viagem.
Talvez ele saiba do sonho dela pois, quando o elevador chega ("plim"), ele diz: "Lá vamos nós de viagem!".
(Diz o público: "Abre-te, Sésamo" e as cortinas abrem-se.)
Ela encolhe os ombros e entra no elevador. Responde: "É uma viagem curta!" e ele encurta-a ainda mais: sai imediatamente do elevador. As portas vão-se fechando, mas ela sai a tempo. Ri o tal riso primaveril de passarinho na copa da árvore e canta: "Então!". Ele anuncia: "Sei o mapa de cor!" e ela segue-o divertida.
(Indicações cénicas: a escada de vários lances do 3.º voo aparece devagar no fundo do palco, anda sobre rodas ou emerge do chão – fica ao critério do encenador.)
Eles abrem a porta das escadas e é como se outro mundo se abrisse. Há um silêncio com eco e caminhos por descobrir. Chamam às escadas montanha e partem. Inventam histórias próprias da Disney, fazem caras assustadoras de piratas, têm vozes de monstros e imitam gritos de animais que se repetem pelas escadas. Chegam ofegantes ao 5.º andar. Ele diz: "Isto assim não custa nada!" e ela ri com dificuldade.
Olham para o céu estrelado um do outro e despedem-se cordialmente. Ela abre a porta e ele fica a vê-la. Entre um mundo e o outro, ela diz: "Não digas a ninguém onde ficam as escadas!" e agora é ele que ri. Pensa: "Fecha-te, Sésamo!" e ela larga a porta. Por causa das leis da física há uma explosão nas escadas e a porta fecha-se em queda livre.
Eles estão agora frente a frente e abrem as asas.
Quando o voo acaba, começa o beijo. Mas nós só ouvimos o eco.
Ele e ela desaparecem de cena como que por milagre e as cortinas voam.
Fim do 5.º voo. Início de tudo o resto.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Espécie de peça de teatro em 5 voos – 4.º Voo

Por volta das seis, ele cansa-se e olha para o relógio. Decide que é hora de ir para casa, desliga o computador, veste o casaco e sai. Chama o elevador e quando a pequena luz acende, faz-se luz na sua cabeça: pensa na colega do 5.º andar e é como se o dia começasse. Esfrega as mãos como Ali Babá esfrega a lâmpada mágica e pede um desejo. O elevador diz "plim" como quem cede. Ele responde: "Abre-te, Sésamo!" e as portas abrem.
(As cortinas também.)
O elevador passa sem parar no 5.º andar e ele culpa o génio pelo seu mau génio. Tem uma ideia que considera genial e carrega apressado no 3. O elevador pára no 3.º andar. Alguns colegas entram e ele sai com dificuldade.
(Voo interrompido.)
Chama o elevador, mas desta vez carrega na seta que aponta para cima e não na que aponta para baixo. Pragueja contra Sésamo por o elevador tardar (na hora de ponta para descer, era uma má estratégia querer subir). De repente, ouve-se "plim" e ele entra. Carrega no 5 e murmura irritado: "Fecha-te, Sésamo!". As portas obedecem.
O elevador aterra no 5.º e ele ordena ao génio que a colega esteja atrás das portas. Ela não está e ele desespera. Sai do elevador e espera. Decide: 10 minutos.
Passam-se 11 e a colega não vem. Ele interpreta: já se foi embora, e abana a cabeça desiludido. Chama o elevador e insulta o génio da lâmpada mágica com os nomes mais ridículos que conhece.
O elevador diz "plim" e ele nem pia, desce com as mãos nos bolsos e nada por dentro. As portas abrem no rés-do-chão e o seu queixo cai no chão: a colega surge atrás das portas vagarosas. Ele desconfia que estivesse à sua espera, mas o seu pensamento é também ele vagaroso e ela interrompe-o sem querer. Exclama: "Afinal não viemos no mesmo!" e o génio dá-lhe uma frase rápida. Ele agradece e usa-a: "Até pensei que você tivesse vindo pelas escadas!". Ela diz teatral: "Nunca!" e eles riem-se em uníssono.
O génio desaparece no fumo do cigarro. Ele e ela vão a conversar pela rua, mas infelizmente não ouvimos nada pois entretanto as portas do elevador fecham-se e as cortinas também.
Fim do 4.º voo.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Espécie de peça de teatro em 5 voos – 3.º voo

Estamos pouco depois das três e o alarme toca. Ele diz um palavrão redondo e abana a cabeça. Sempre achou aqueles exercícios uma estupidez mas obedece ao sistema: pega no casaco e dirige-se para as escadas.
(Abrem-se as cortinas. No centro do palco há uma escada de vários lances numa estrutura impossível de metal, qual Torre Eiffel, por onde descem dezenas de figurantes cabisbaixos, de casacos postos ao ombro e olhos postos no chão, numa marcha disciplinada, pé ante pé, degrau a degrau.)
No lance de escadas abaixo, ele reconhece o cocuruto da colega do 5.º andar que, por milagre, olha para cima. Sorriem. Ela diz quase num grito: "Afinal também nos encontramos aqui!".
Já lá em baixo, ele puxa de um cigarro e tudo se torna mais misterioso atrás do fumo. Diz: "Pelo menos já sabemos onde ficam as escadas!" e ela ri um riso primaveril de passarinho na copa da árvore. Falam de elevadores, de arranha-céus, de Nova Iorque, sem nunca perguntarem nada sobre o outro.
Regressam no elevador com mais oito pessoas.
(Início do 3.º voo.)
Ele diz: "Podíamos ter ido pelas escadas!" e ela responde: "Mas nós não sabemos onde ficam!". Riem-se sincronizados. O elevador pára no 1.º e sai uma pessoa de cena. Ele sugere: "Podíamos perguntar a alguém!" e ela confessa: "Não me oriento neste edifício!". O elevador pára no 2.º e saem duas pessoas. "Já sei!", exclama ele, "Roubamos a planta do edifício aos seguranças!" e ela encolhe os ombros: "Sou péssima a ler mapas!". Ele oferece-se: "Eu levo-a!" e ela aceita. Pára no 3.º e saem três pessoas. No 4.º andar, por todos os desejos se tornarem realidade, já vão sozinhos. No 5.º ela diz: "Até amanhã!" e ele responde confiante: "Não, não! Ainda nos encontramos mais logo!". Ela diz que sim e, mais uma vez, sorri.
O elevador pousa no 6.º e ele vem a assobiar enquanto recolhe as asas.
(As cortinas vão-se fechando ao mesmo tempo.)

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Espécie de peça de teatro em 5 voos – 2.º voo

A meio do dia, já meio cansado, decide que tem fome. Levanta-se, veste o casaco e sai do escritório. Chama o elevador. Não espera quase nada. O voo começa mas é subitamente interrompido no 5.º andar. Ele pede um desejo e as portas do elevador abrem-se.
(As cortinas também.)
Entra a tal colega do 5.º andar com a sua gabardina simpática e ele agradece ao céu e à terra por isso. Ela diz descomprometida: "Cá nos encontramos!" e ele, por estar com fome, parte imediatamente para a ofensiva: "Coisa que não aconteceria, se tivesse ido pelas escadas!". Ela ri-se com vontade e ele faz-lhe a vontade: ri-se por ela se rir. O elevador pára no 2.º.
Ele e ela entreolham-se surpreendidos: acaba de entrar o tal senhor mal-disposto e eles mastigam silenciosos uma gargalhada. O elevador chega ao rés-do-chão e o colega carrancudo sai de cena. Ela deseja um "Bom apetite!" e ele dá-lhe passagem. Nessa altura, por a fome ser tudo, arrisca tudo. Diz: "Olhe, quando voltar não vá pelas escadas!". Ela lança a cabeça para trás soltando uma risada sonora e ele grita por dentro: "Quem não arrisca, não petisca!". As portas do elevador fecham-se.
(As cortinas também.)
Fim do 2.º voo.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Espécie de peça de teatro em 5 voos – 1.º voo

Nota aos espectadores: se a peça não for grande coisa,
voltem para a semana que isto só acaba por essa altura.

Chega ao trabalho um pouco mais cedo do que os outros. Sai da garagem, sobe a pé até ao rés-do-chão e entra no edifício. Chama o elevador. Enquanto espera, reconhece ao longe os passos da colega do 5.º andar e fica nervoso. Dizem em coro: "Bom dia!", ele mais alto que ela. As portas do elevador abrem-se.
(As cortinas também.)
Ele dá-lhe passagem para entrar no elevador, mas precipita-se de seguida: carrega no 5 e no 6 ao mesmo tempo e a colega olha-o surpreendida por ele saber o seu andar. Sobem muito bem sozinhos, mas o elevador pára logo no 1.º. Entra um colega que murmura: "Bom dia!" como quem deseja que seja mau. Carrega no 2 e o elevador pára outra vez. Quando as portas se voltam a fechar, a colega comenta: "Há pessoas que não sabem usar as escadas!" e ele ri-se mais do que necessário.
Voam sem parar no 3.º. Nem no 4.º.
No último segundo, ele lembra-se de uma resposta. Arrisca: "Se calhar não sabem onde ficam!". Ela sorri cordialmente e despede-se. O elevador aterra finalmente no 6.º e ele regressa ao mundo. As portas fecham-se.
(As cortinas também.)

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Engate

A gata estica o nariz. Diz: "Aqui há gato", olha para o lado e lá vem o gato todo eriçado. "Tens olhos de gata", diz o gato enquanto penteia o bigodaço e a gata desilude-se com aquele dizer tão parvo. O gato pavoneia-se desinteressado e a gata espanta-se, pois acha o andar daquele gato diferente do de toda a gente. De repente repara que ele está calçado e conclui que o gato não é dali. Pergunta: "De onde vem?" e o outro diz com desdém: "Sou maltês". A gata ironiza: "Logo, toca piano e fala francês". O gato escaldado toca-lhe de raspão no tornozelo e, pelo pêlo, adivinha: "A menina é persa", mas a gata desconversa e vai cheia de pressa para outro lado. Diz o gato das botas todo lambe-botas, de costas direitas: "Que princesa tão perfeita!" e a gata mia e fica à espreita. É afinal a gata borralheira e nunca ninguém a trata assim. Insiste o gato: "Cheiras a alecrim" e a gata cheia de cio agora só diz que sim. E naquele telhado, onde havia dois, há agora um só gato com duas línguas de gato. Quebra-se então o feitiço e a gata ri satisfeita. A princesa perfeita é agora Cat Woman e agarra o gato pelo bigodaço. Diz-lhe: "Faço de ti gato-sapato!" e Dona Chica bem que se assustou com o berro que o gato deu: "Miau!".

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

A nadadora

Tinha um sonho feito de água que era ouvir o hino nacional no pódio dos jogos olímpicos. Nadava cinco horas por dia (cinquenta metros para lá, cinquenta metros para cá) e no final o treinador batia-lhe nas costas largas. Tinha ganho medalhas em campeonatos regionais e exibia-se nas horas livres em estilo mariposa, qual monstro marinho.
O sonho era só um sonho, por isso a nadadora não chorou quando percebeu que não ia aos jogos olímpicos. Casou nem nova nem velha e teve duas filhas. Dava aulas de natação a crianças, pegava-as ao colo, perguntava-lhes pelas notas. Os miúdos faziam desenhos da nadadora debaixo de água e entregavam-nos timidamente. Isso bastava para a nadadora boiar de felicidade.
No final do dia, quando chegava a casa, os gritos das crianças na piscina ainda ecoavam na cabeça e a nadadora fechava a porta da cozinha para não ouvir as vozes das filhas. Era uma cozinheira certeira no tempero, cheirava os vapores com a ponta do nariz e mexia a colher de pau assertiva. O marido chegava a casa quando o último prato pousava na mesa por a mulher trabalhar ao segundo e viver a vida a crawl, disciplinada e rotineira, de corpo contra a água.
Certo dia, as filhas foram juntas à festa de anos de um vizinho e o marido estava num jantar da empresa, para o qual a mulher não tinha sido convidada. A nadadora sentou-se em frente à televisão mas não a ligou por os gritos dos miúdos ainda ecoarem na cabeça. Nesse momento, a nadadora teve uma ideia e correu para a casa de banho. Levou um relógio consigo para não perder o rumo e trancou a porta.
Encheu a banheira. Verificava de segundo em segundo a temperatura da água com a ponta dos dedos e finalmente, a nadadora saltou nua para a piscina. Aí ficou várias horas, a cabeça debaixo da água e os olhos abertos para o tecto. Vinha várias vezes buscar ar à superfície e voltava de seguida para o fundo do poço. Debaixo de água o silêncio era tão profundo que ela se ouvia por dentro.
Desenhou mentalmente cinquenta metros e percorreu-os a bruços. Para que o sonho não tivesse fim, pensou numa piscina sem fim. Lembrou-se da aula de filosofia em que se falou de Zenão, o filósofo do infinito.
Pensou como ele.
Para nadar metade da piscina, teria de nadar metade da metade da piscina. Fez contas e adivinhou "Doze vírgula cinco metros". Depois calculou a metade da metade da metade e assim por diante até concluir que a piscina era infinitamente divisível: de facto não havia um fim para aquela banheira e o corpo batalhava contra o cansaço.
Crescia um mundo paralelo debaixo de água e a nadadora agradeceu à matemática por isso. Estava tão cansada que adormeceu antes de a família chegar a casa. E nessa noite teve um sonho feito de água.