segunda-feira, 1 de outubro de 2007

A nadadora

Tinha um sonho feito de água que era ouvir o hino nacional no pódio dos jogos olímpicos. Nadava cinco horas por dia (cinquenta metros para lá, cinquenta metros para cá) e no final o treinador batia-lhe nas costas largas. Tinha ganho medalhas em campeonatos regionais e exibia-se nas horas livres em estilo mariposa, qual monstro marinho.
O sonho era só um sonho, por isso a nadadora não chorou quando percebeu que não ia aos jogos olímpicos. Casou nem nova nem velha e teve duas filhas. Dava aulas de natação a crianças, pegava-as ao colo, perguntava-lhes pelas notas. Os miúdos faziam desenhos da nadadora debaixo de água e entregavam-nos timidamente. Isso bastava para a nadadora boiar de felicidade.
No final do dia, quando chegava a casa, os gritos das crianças na piscina ainda ecoavam na cabeça e a nadadora fechava a porta da cozinha para não ouvir as vozes das filhas. Era uma cozinheira certeira no tempero, cheirava os vapores com a ponta do nariz e mexia a colher de pau assertiva. O marido chegava a casa quando o último prato pousava na mesa por a mulher trabalhar ao segundo e viver a vida a crawl, disciplinada e rotineira, de corpo contra a água.
Certo dia, as filhas foram juntas à festa de anos de um vizinho e o marido estava num jantar da empresa, para o qual a mulher não tinha sido convidada. A nadadora sentou-se em frente à televisão mas não a ligou por os gritos dos miúdos ainda ecoarem na cabeça. Nesse momento, a nadadora teve uma ideia e correu para a casa de banho. Levou um relógio consigo para não perder o rumo e trancou a porta.
Encheu a banheira. Verificava de segundo em segundo a temperatura da água com a ponta dos dedos e finalmente, a nadadora saltou nua para a piscina. Aí ficou várias horas, a cabeça debaixo da água e os olhos abertos para o tecto. Vinha várias vezes buscar ar à superfície e voltava de seguida para o fundo do poço. Debaixo de água o silêncio era tão profundo que ela se ouvia por dentro.
Desenhou mentalmente cinquenta metros e percorreu-os a bruços. Para que o sonho não tivesse fim, pensou numa piscina sem fim. Lembrou-se da aula de filosofia em que se falou de Zenão, o filósofo do infinito.
Pensou como ele.
Para nadar metade da piscina, teria de nadar metade da metade da piscina. Fez contas e adivinhou "Doze vírgula cinco metros". Depois calculou a metade da metade da metade e assim por diante até concluir que a piscina era infinitamente divisível: de facto não havia um fim para aquela banheira e o corpo batalhava contra o cansaço.
Crescia um mundo paralelo debaixo de água e a nadadora agradeceu à matemática por isso. Estava tão cansada que adormeceu antes de a família chegar a casa. E nessa noite teve um sonho feito de água.