No dia das mudanças meteu a casa inteira num caixote e fechou-o com fita-cola para garantir que a vida não saía. Disse: "Vou com a casa às costas" e pensou subitamente que era um caracol. Sentia-se lento e elástico como os relógios de Dalí, tudo era longínquo, enorme, inalcançável. Rastejou até à rua e apontou as antenas para cima atento aos pormenores da cidade. Era uma despedida triste, o tempo desacelerava um pouco mais, o corpo diminuía até ao chão. Desceu vagarosamente a rua com a carapaça às costas. Disse para o caixote: "Onde eu acabo, começas tu! Ou vice-versa.". A sua casa era parte do seu pulmão por isso, a certa altura, enfiou-se dentro do caixote. Aí ficou muito tempo com os seus objectos, era uma viagem bonita ao fundo do ser. Prometeu que sairia um dia da sua carapaça, quando o sol fosse quente e a rua seca. Por enquanto só queria estar a sós com a sua casa.
Depois, numa noite igual às outras, lembrou-se que era hermafrodita e ficou contente por isso. A vida tornava-se de repente mais interessante.