A negra bate com o pé no chão e nasce poeira dos seus pés descalços, nasce vida e ar (na verdade nascemos todos juntos por baixo dos pés da negra, muito pequenos, insignificantes, desnecessários). Batem batuques e já não sabemos quem chegou primeiro, se o pé da negra ou os batuques porque estão em perfeita sintonia. É enorme esta negra mas é como se não fosse, pois a sua leveza é própria dos que habitam as nuvens. Fazemos-lhe uma vénia, daí ela parecer maior ainda. Bate com o pé no chão e o outro pé bate de seguida, muito irmãos, e o corpo vibra com as ondas invisíveis dos batuques. A negra abana avolumada as ancas aveludadas, bem-aventuradas e sai-lhe música do ventre. É a própria terra que canta através dela e o que parecia um caos é agora ordem, por o seu corpo ser a origem de todas as coisas. A negra tem um tambor por dentro e quando bate o pé no chão, temos a certeza de que esse é o primeiro batuque do mundo, o primeiro som, a palavra de ordem. Lembramo-nos: "No princípio era o Verbo" e vemos nesta negra o corpo e a alma do início. Queremos comunicar. Por isso levantamo-nos e batemos com o pé no chão. A negra leva-nos pela mão e estamos em perfeita sintonia. Pensamos: "Um pouco mais de inocência para sermos autênticos" e tentamos esquecer-nos de nós próprios. A certa altura conseguimos e abrimos os braços para o mundo. Somos apenas poeira por baixo dos pés da negra.