segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Estado de alerta


Nove da manhã em Bruxelas. Ameaça séria e iminente. Tenho os olhos pesados. A Elena Ferrante tira-me o sono.

E agora? Saio de casa ou não saio de casa?

Troca de mensagens com amigos e colegas. Uns vão trabalhar. Outros ficam em casa. Outros trabalham a partir de casa.

A formação de formadores foi cancelada. Ainda bem. Não me apetecia nada.

O meu calendário diz-me que hoje é o meu dia de tirar sangue. Like.

Lá fora estão dois graus centígrados. Sirenes da polícia ao longe e ao perto.

Comi pão duro. A culpa é minha. Ficou fora do saco a noite inteira.

Atrás das casas, um pequeno sol à espreita.

É um bom dia para tirar sangue. Escolho cores neutras para não dar nas vistas. Estou disfarçada de pessoa normal.

Saio de casa. Pouca gente na rua.

Algumas pessoas nos cafés. Duas moças fumam à porta de um escritório. Riem-se. Um homem passa com um carrinho de bebé. Afinal são dois bebés. Estão contentes. Batem palminhas.

Sinto frio nas mãos. Esqueci-me das luvas.

E agora? Sigo caminho ou volto para trás?

Um homem entra num carro e topa-me. Eu topo-o. Um rapaz de capuz passa por mim, eu passo por ele. Aqueço as mãos uma na outra, sigo caminho.

No café de esquina, algumas pessoas estão coladas aos vidros. A ver as vistas. Um senhor de idade lava o chão de um prédio. Pára de lavar o chão para me ver passar. Um camião de portas escancaradas. Caixotes de comida, parece.

A escola secundária está fechada. Melhor assim. No bar esquisito da rue du Viaduc os mesmos homens com ar de marinheiros tristes.

Sinal vermelho para os peões. Eu espero. Uma rapariga do lado de lá também espera. Lançamos olhares feios uma à outra. As pessoas rodam a cabeça para acompanhar certos sons e movimentos. Por exemplo, um elétrico que passa. Um carro da polícia. Um cão a ladrar. Uma bicicleta.

Os guindastes estão paradotes. Hoje não há obras.

Um homem vem na minha direção a cambalear. Parece-me indiano. Aproxima-se de mim. Está bêbedo. Pergunta-me baixinho se tenho lume. A pergunta dá-me vontade de rir.

As árvores estão bonitas. Folhas amarelas.

Venho a ouvir Sunny Road e estou precisamente numa sunny road. Completamente vazia. A rua.
Eu também estou vazia.
O sol pousa devagar nas janelas. Gelo e sol nas janelas. Tiro uma fotografia ao cenário.

Em frente ao Parlamento Europeu estão quatro militares armados ao pingarelho. Muito quietos e concentrados. Um deles ergue-me as sobrancelhas. Parece-me satisfeito com a vida.

Não há nada como ter uma metralhadora na mão.

O sol fica por cá o dia todo.
É um sol esperançado. Europeu.
Antiterrorista.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O dicionário do menino Andersen

Vejam só o que aí vem:

O lançamento deste belíssimo livro é já na sexta, 20 de novembro, às 21h.
Mais informações e cenas fixes aquiali e acolá.

Quem não for, leva com uma definição na cabeça.
Eu, por exemplo, levei com esta banheira.
E gostei.



terça-feira, 17 de novembro de 2015

A quingentésima

Olha, esta é a mensagem número 500 deste blogue. Vi agora.
Feliz maneira de regressar ao Belgavista. Com a quingentésima mensagem.
Estamos no avião a descer para Bruxelas.
Quando atravessamos as nuvens, o avião estremece e o coração também. É sempre assim.
Chegar a Bruxelas é um tremor no ar.
Felizmente o avião pousa devagarinho. Nada mau.
A noite chove na rua e também na cabeça.
Seguro-me ao corrimão para não escorregar.
As minhas pernas descem e a minha saia sobe. O vento é malandreco.
Chego a casa. Um embrulho aprimorado na caixa do correio. O que é isto?
Ah, é um livro bonito.
Que livro bonito?
O dicionário do menino Andersen.
Uma capa rugosa. Um desenho depurado. De passar os dedos por cima e também a língua.
Pimbas.
Uma lambidela salivada no Gonçalo M Tavares e na Madalena Matoso.
Uma definição do menino Andersen:
MOSQUITO: animal que está mal sintonizado.
Nada mais certeiro para acabar com a noite.
Acordo com as sirenes e tomo banho. Lavo-me por cima e por baixo. Barro manteiga nas torradas, bebo café com leite, leio uma fatia da revista LER. Tudo ao som das sirenes. Ti-nó-ni.
Saio de casa.
O sol lá em cima não chega cá abaixo: lá no alto é de dia; cá em baixo é de noite.
A meio da rua as sirenes calam-se. Talvez por causa dos meus auscultadores. Não sei.
Uma perguntinha com a ajuda do público. O que explode mais rápido: um autocarro ou uma carruagem do metro? Escolho o autocarro.
Ficamos parados no trânsito. Espero de pé como os outros.
Militares na rotunda das instituições europeias. Com uma arma ao colo e uma mochila às costas.
Digo Bonjour quando entro no edifício. Ah, que espanto. Ainda não tinha falado franciú.
Há sirenes em Bruxelas.
Chuva. Trânsito.
E terroristas.


Não tinha saudades disto.
Mas até tinha saudades disto.
Estou mal sintonizada.