quarta-feira, 22 de junho de 2016

Os papagaios miúdos

Hoje passei pelos papagaios.
Estavam aninhados numa árvore a papaguear.
Eu vivo no terceiro andar de um prédio de esquina e eles vivem no segundo andar de uma árvore, que fica mesmo no meio da rotunda.
São papagaios miúdos, de cauda comprida.
Na verdade, não são bem papagaios. São periquitos-de-colar.
Hoje tirei-lhes uma fotografia.


Estavam a arrumar o ninho numa grande algazarra.
Um ia buscar pauzinhos e os outros gritavam com ele.
Esse pau, não, dizia um. Aquele ali é mais flexível.
Era um grande chinfrim no meio da rotunda, no meio da estrada, no meio da cidade.
Mas as pessoas não se zangam com os periquitos que parecem papagaios.
Riem-se para eles.
São tão exóticos. Tão pequeninos. Tão coloridos.
Uma pessoa pergunta: Não terão frio?
Alguém responde: Se vieram cá parar, é porque gostam de estar aqui.
Se calhar devíamos olhar para os imigrantes como olhamos para os periquitos.
Com alguma curiosidade. Com um pouco de ternura. E um certo espanto.
Talvez então parássemos de papaguear discursos provincianos com tiques nacionalistas.
Arre!

segunda-feira, 20 de junho de 2016

A providência divina

Entro na boca do metro. Sinto-lhe o sopro pestilento.
Vejo o chão aos quadradinhos, umas botas de senhora, duas pernas nuas, saltos altos, sapatilhas velhas.

De súbito, um livro.

Está pousado no chão, mas não propriamente tombado. Aterrou em cima das patas, como os gatos. O lombo apontado para o teto. As patas sólidas e resolutas.
Não caiu do céu. Não sucumbiu. Este livro está de pé.
Penso: Aqui há gato.
Talvez seja uma obra de arte. Uma provocação. Ou então uma bomba.
Para estourar com a rotina.
É um livro com caráter. Uma presença mística.
Está ali porque quer.
Abrando o passo, mas não chego a parar. Passo os olhos pela lombada: 

God's creative power.

Penso: Eis um livro miraculoso.
Com ambições celestiais.
Decido passar por cima do pequeno deus. O meu pé todo-poderoso, a sobrevoar o poder criativo, a desafiar a divindade. Pouso o pé do outro lado e rio-me da minha proeza.
A vida continua. Sem prodígios. Sem espanto.
Desço as escadas. 
Eu no esófago do metro, a pensar no livro misterioso. 
Talvez trouxesse um pequeno génio lá dentro. Um santo milagreiro. Um homem bom.
Jesus. Ou então Maomé. Um desses.
Penso: Quero aquele livro só para mim.
Um pequeno génio só para mim. Um pouco de Deus. Um pouco de Alá.
Volto para trás.
Corro pelas escadas acima, o poder criativo a acelerar as pernas.
No chão vejo apenas as pernas das pessoas que passam. Sapatos, botas.
O livro sumiu. Ascendeu ao céu. Desceu ao inferno. Entrou no metro. 
Ou então alguém o levou.
Seja como for, aquele livro não é meu.
Nunca foi meu.
Jamais será meu.

Assim era a Sua vontade.
A Sua escolha.

Não me benzi. Não me queixei.
Pensei: Eis a decisão do Criador.
A providência divina.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Karateca e Supergigante na Escola Europeia de Bruxelas

Hoje estive na Escola Europeia de Bruxelas com algumas turmas de Português.
Alunos participativos, alegres e curiosos. Grandes devoradores de livros.
Houve leituras em voz alta. E até leituras em coro!
No final recebi desenhos memoráveis da Joana, do Diogo e do Filipe.
Um muito obrigada às professoras de Português, em especial à professora Fátima Azóia, pelo convite, pelo entusiasmo e pela organização deste encontro.
Yáááá!

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Apanhei uma molha daquelas

Apanhei uma molha daquelas. Eu sozinha na rua. A água a escorrer pelo queixo abaixo. A cair por terra.
Ao meu lado, aqui e ali, pequenas e grandes poças, um rio comprido e barulhento a banhar o asfalto.
Toda eu encharcada. Da ponta dos cabelos à ponta dos pés.
E passando pelo sutiã. Pelas cuecas.
Os meus óculos às pintinhas.
Foi uma precipitação algo precipitada. Espalhafatosa. Feminina.
Primeiro fingi que gostei e depois gostei mesmo.
Uma choradeira geral só para mim. Por que não?
Foi um lavar de alma suja. Um pequeno melodrama.
Entrei no prédio.
A chuva atrás de mim e a vizinha do segundo andar à minha frente.
Perguntou-me assustada e, logo a seguir, comovida: Madame, não tem um parapluie?
Eu disse: Não.
E não tenho mesmo.
Os guarda-chuvas não me gramam. Vão para outras casas, para outras terras.
Quis secar a testa e os olhos, mas não tinha como.
A minha alma completamente inundada. A minha mala embebida, os meus dedos a pingar para o chão.
A vizinha do segundo andar abriu-me a porta do elevador, carregou no botão do meu andar. Eu agradeci e depois olhei-me ao espelho.
O meu cabelo, o meu rosto, a minha roupa. O meu corpo a verter chuva, suor e ranho. Eu pensei: Eu própria sou o ciclo da água.
Uma mulher a pingar é uma grande pieguice.
Depois entrei em casa e enfiei-me no banho.
Para me molhar mais e melhor. Para me molhar aos molhos.
No final sequei o cabelo e decidi arranjar um guarda-chuva. Um muito grande ou então muito pequeno. Daqueles muito tímidos e concentrados. De trazer na mala ou então na mão.
Um guarda-chuva com abertura automática. PUM!
Carrega-se num botão e já está.
Sim!
Devia arranjar um desses. Um guarda-chuva igual a uma arma.

Eu não digo: chapéu de chuva. Eu digo: guarda-chuva. Foi uma decisão consciente.
Guarda-chuva sempre guarda o hífen. É uma palavra mais compacta. Mais reservada.
E enfim...
Sei lá.

Chapéus há muitos.