segunda-feira, 20 de junho de 2016

A providência divina

Entro na boca do metro. Sinto-lhe o sopro pestilento.
Vejo o chão aos quadradinhos, umas botas de senhora, duas pernas nuas, saltos altos, sapatilhas velhas.

De súbito, um livro.

Está pousado no chão, mas não propriamente tombado. Aterrou em cima das patas, como os gatos. O lombo apontado para o teto. As patas sólidas e resolutas.
Não caiu do céu. Não sucumbiu. Este livro está de pé.
Penso: Aqui há gato.
Talvez seja uma obra de arte. Uma provocação. Ou então uma bomba.
Para estourar com a rotina.
É um livro com caráter. Uma presença mística.
Está ali porque quer.
Abrando o passo, mas não chego a parar. Passo os olhos pela lombada: 

God's creative power.

Penso: Eis um livro miraculoso.
Com ambições celestiais.
Decido passar por cima do pequeno deus. O meu pé todo-poderoso, a sobrevoar o poder criativo, a desafiar a divindade. Pouso o pé do outro lado e rio-me da minha proeza.
A vida continua. Sem prodígios. Sem espanto.
Desço as escadas. 
Eu no esófago do metro, a pensar no livro misterioso. 
Talvez trouxesse um pequeno génio lá dentro. Um santo milagreiro. Um homem bom.
Jesus. Ou então Maomé. Um desses.
Penso: Quero aquele livro só para mim.
Um pequeno génio só para mim. Um pouco de Deus. Um pouco de Alá.
Volto para trás.
Corro pelas escadas acima, o poder criativo a acelerar as pernas.
No chão vejo apenas as pernas das pessoas que passam. Sapatos, botas.
O livro sumiu. Ascendeu ao céu. Desceu ao inferno. Entrou no metro. 
Ou então alguém o levou.
Seja como for, aquele livro não é meu.
Nunca foi meu.
Jamais será meu.

Assim era a Sua vontade.
A Sua escolha.

Não me benzi. Não me queixei.
Pensei: Eis a decisão do Criador.
A providência divina.