terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Um homem que era uma árvore

Um parque que não é bem um parque, que talvez tenha sido um parque porque há restos de árvores e bancos de jardim. Do céu cai agora mesmo o resto de uma chuva que não chega a molhar o chão. Um homem antigo caminha pela lama que já foi relva mas não vê nada disto: o parque, os bancos, o resto da chuva. É um homem magro, macilento, comprido, parece o tronco velho de uma árvore moribunda. Traz no alto da cabeça um emaranhado de cabelos que já não são bem cabelos, que talvez tenham sido cabelos, mas que agora são ervas daninhas ou o ninho abandonado de pássaros cruéis, um cabelo feito de caruma e lama e folhas pisadas de Inverno sujo. Aproxima-se cada vez mais do nosso banco de jardim e os seus olhos não olham para nós, têm outras coisas dentro. Olhos cheios de nuvens e água, uma luz que não passa. Olhos que olham para dentro.
Ficamos a observá-lo.
É impossível que este homem veja para fora. Talvez não veja de todo para fora e, nesse caso, não saiba que os seus braços são dois ramos vazios sem folhas nem flores nem frutos, só duas mãos que descobrem os dias, extremas e alvacentas como dois sóis de Inverno.
Passa pelo nosso banco de jardim, mas não nos vê ali, vive para dentro, a olhar para outro céu, numa outra Terra, sozinho, perdido, talvez feliz.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Tia Lilita

Cada um faz o seu luto.

Alguns choram, outros nem tanto: ficam assim endurecidos, incolores, o semblante desabrido.

A tia Lilita morreu.

Não foi hoje. Também não foi ontem. Foi há muito tempo.
Não, não foi há muito tempo.

Via a tia Lilita nos casamentos, nos baptizados, nos Verões em São Pedro de Moel. Ultimamente, nos funerais. Pegava-me na mão com as suas duas mãos, repetia o meu nome várias vezes.

Uma vez, fui ao Porto almoçar a casa da tia Lilita. Uma vez só, não percebo. Foi no Verão de 2008, os primos de Hamburgo também estavam lá e o tio Pedro ainda era vivo. Chamou-me ao quarto, disse-me: «Diz ao teu pai que eu penso muito nele, nos nossos tempos lá em Angola.». Vim para Lisboa com esse recado ao colo e entreguei-o ao pai.

Era difícil chegar a casa da tia Lilita, tínhamos de subir muitos degraus e faltava-nos o fôlego várias vezes, mas nós disfarçávamos o esforço como podíamos, porque éramos jovens e saudáveis. A tia Lilita também tinha dificuldade em descer e subir tantos degraus.

A avó e a tia Lilita eram muito amigas. O avô e o tio Pedro também.

A tia Lilita foi a última a morrer.

Não, não foi a última a morrer, porque nós ainda cá estamos (somos jovens e saudáveis) e, depois de nós, virão outros e, depois deles, outros, para que nunca tenhamos tempo de lembrar os que vieram de Angola.
Cada um faz o seu luto.

A mim deu-me para ler O Retorno da Dulce Maria Cardoso. O retorno de África contado na perspectiva de um adolescente. Acabei de ler o livro esta semana. Tantas coisas que ficaram por saber desse retorno.

Consta que a Dulce Maria Cardoso era adolescente quando veio de Angola. O meu pai também era adolescente, mas não é retornado, porque veio antes do retorno. O pai não quer ler O Retorno, porque não é retornado. Diz-me: «Eu não sou retornado» e, de facto, não é.

A tia Lilita foi a última a morrer. A última dos nossos. Dos que foram para Angola construir estradas e outras coisas (não sei bem o quê).

A tia Lilita casou por procuração. Só depois partiu para África. Que viagem foi essa, que nunca me foi contada? Que cartas escreviam entrementes? O tio Pedro deve ter ido buscar a tia Lilita. Que encontro foi esse? A tia Lilita talvez viesse vestida de noiva, não sei. Que história foi essa, que nunca ma contaram? Eu também nunca pedi para ma contarem, acho.

Não, isto não é verdade. Agora, lembro-me. Um dia a tia Lilita contou-me essa história, mas eu estava tão distraída a pensar na ideia de casar por procuração que não devo ter ouvido. A ideia de casar por procuração era fascinante. Dava para escrever uma longa carta em papel de pergaminho, talvez: «Meu mais prezado amigo», «para o meu mais que tudo», «o meu coração é uma andorinha», gosto de imaginar frases para estas cartas. Onde estão essas cartas? Como trocar alianças por procuração? Quem assinaria o papel primeiro?

A tia Lilita morreu.

E agora sim. Já não há ninguém para contar as histórias que ficaram por contar.

Tanta falta de tempo para as histórias dos outros. Sei tão pouco desse retorno, dessa vida.
Cada um faz o seu luto.

A mim dá-me para escrever.
O tio Pedro também era assim, parece-me.

Onde anda o livro do tio Pedro? Gostava de o ler.