Para o meu avô.
O meu avô morreu. Chamava-se Fernando Pessoa, mas não era poeta, era engenheiro.
Quando decidi estudar alemão na universidade, bateu-me nas costas três vezes. Disse-me que eu era a primeira da família a estudar Letras. (No peso da sua mão estava o peso da família inteira.)
O meu avô batia-me nas costas três vezes, quando eu fazia qualquer coisa acertada ou quando ele pensava que eu tinha feito alguma coisa acertada.
Também me disse que o alemão era uma língua fácil para quem tinha estudado latim. (O alemão é uma língua difícil, mesmo para quem tenha estudado latim, mas eu nunca disse isto ao avô.)
O meu avô não discutia as suas ideias: a própria ideia de discutir ideias irritava-o.
Ninguém discute com o avô Fernando.
O meu avô conta uma história e abre muito a mão direita para mostrar a dimensão da sua história, da sua inteligência, do seu feito. O meu avô conta uma história, várias histórias, mil e uma histórias, sempre as mesmas histórias. Fala dos pretos, de África, do Antigo Regime, diz mal de quase todos os povos, e todos o ouvimos respeitosamente. Ninguém discute com o avô Fernando.
Certo dia, quase sem querer, saí de Portugal. Estava na Alemanha há cerca de um ano e o meu avô sentou-se ao meu lado.
(Foi a primeira e única vez que o meu avô se sentou ao meu lado.)
Disse-me: Sobre essa tua decisão de viver no estrangeiro, interessa-me saber uma coisa. E nisto abriu a tal mão direita, para me mostrar o peso dessa coisa.
(Até então, eu não tinha consciência de ter tomado decisões na vida. A ideia de ter decidido viver no estrangeiro assustava-me.)
Prosseguiu: Eu queria saber, justamente, qual é o teu objectivo. E repetiu, apontando para mim: O teu objectivo.
Nessa altura e mesmo hoje em dia, fixar objectivos parece-me uma tarefa tão ou mais difícil do que aprender alemão, por isso, em vez de falar sobre temas difíceis, falei de outras coisas: da Alemanha, dos alemães, da importância daquela experiência. Falei também da Europa, de como era fácil viajar na Europa, de como o mundo estava tão perto. Disse-lhe ainda que queria estar sozinha, fazer qualquer coisa sozinha, descobrir qualquer coisa sozinha. O meu avô ouviu tudo isto com muita atenção, mas no final perguntou-me: E o teu objectivo? Qual é o teu objectivo?. Insistiu: Tens de ter um objectivo!. Encolhi os ombros. Respondi-lhe que o meu objectivo era conseguir. O meu avô bateu-me três vezes nas costas e levantou-se. Eu levantei-me também. Depois repetiu com o ar mais sério do mundo, como se o meu futuro começasse ali: O teu objectivo é conseguir.
O meu avô só não foi poeta, porque não quis.
Quando eu crescer, quero ser poeta. E conseguir como ele conseguiu. Para que ele me bata nas costas três vezes.