O vizinho de cima toca guitarra. Não, não toca guitarra, está a aprender. Dedilha as cordas, nota ante nota. Anda há meses nisto. Chamemos-lhe aprendiz de guitarrista.
Felizmente, toca guitarra clássica e o seu quarto fica por cima da sala de estar e não do quarto de dormir. A vizinha senta-se no sofá a ler uma revista e gosta de ouvir aquela guitarra, aprendeu a ouvir aquela guitarra, já sabe distinguir, por exemplo, os acordes novos dos antigos.
É verdade que aqueles sons ainda não são música, mas a vontade do aprendiz cativa-a. A vizinha de baixo gosta do aprendiz de guitarrista como quem gosta de um pássaro ou de um eléctrico repetido ao fundo da rua: o som conhecido sossega-a. Também a sossega a vontade do aprendiz de guitarrista, a sua perseverança, o seu entusiasmo.
O aprendiz de guitarrista fá-la pensar que talvez o mundo avance.
Por mais estranho que pareça, não conhece o aprendiz de guitarrista. Conhece, no entanto, a mãe e sabe que o aprendiz é adolescente, tendo em conta a idade previsível da senhora que disfarça a idade e o instrumento musical escolhido. Se fosse criança, o aprendiz tocaria flauta ou xilofone. Se fosse adulto, um instrumento qualquer que não guitarra clássica. (Os únicos adultos que tocam guitarra clássica aprenderam a tocá-la na adolescência. Nenhum adulto é aprendiz de guitarrista. Talvez seja aprendiz de clarinete. De piano. Ou de canto. Mas não de guitarra clássica.)
Esta não é, portanto, uma história de amor. A vizinha de baixo não tem idade para se apaixonar por aprendizes de guitarrista e tem o coração mais ou menos limitado ao homem ilimitado. Esta é uma história sobre música, muito embora aqueles acordes ainda não fossem nada ou quase nada ou, pelo menos, não propriamente música.
É que ontem, às 10 da noite, o aprendiz de guitarrista tocou um conjunto de notas seguidas que, juntas e compassadas, formavam, de facto, uma tímida melodia. O aprendiz de guitarrista repetiu aquele conjunto de notas e a vizinha de baixo parou de ler para ouvir. A vizinha de baixo e o vizinho de cima assitiam juntos e separados, com os olhos, os ouvidos e os dedos, à primeira de todas as melodias. Chegava, nas pontas dos pés, quase imperceptível, e atravessava os tímpanos, o coração, a boca e pousava quase nada no mundo.
O aprendiz de guitarrista repetiu a mesma combinação de notas vezes sem conta até que a melodia se tornou inegável e existiu naquelas paredes para sempre. A vizinha de baixo parou definitivamente de ler. Pousou os óculos e levantou-se. Foi, antes, regar as plantas.
Por mais estranho que pareça, não conhece o aprendiz de guitarrista. Conhece, no entanto, a mãe e sabe que o aprendiz é adolescente, tendo em conta a idade previsível da senhora que disfarça a idade e o instrumento musical escolhido. Se fosse criança, o aprendiz tocaria flauta ou xilofone. Se fosse adulto, um instrumento qualquer que não guitarra clássica. (Os únicos adultos que tocam guitarra clássica aprenderam a tocá-la na adolescência. Nenhum adulto é aprendiz de guitarrista. Talvez seja aprendiz de clarinete. De piano. Ou de canto. Mas não de guitarra clássica.)
Esta não é, portanto, uma história de amor. A vizinha de baixo não tem idade para se apaixonar por aprendizes de guitarrista e tem o coração mais ou menos limitado ao homem ilimitado. Esta é uma história sobre música, muito embora aqueles acordes ainda não fossem nada ou quase nada ou, pelo menos, não propriamente música.
É que ontem, às 10 da noite, o aprendiz de guitarrista tocou um conjunto de notas seguidas que, juntas e compassadas, formavam, de facto, uma tímida melodia. O aprendiz de guitarrista repetiu aquele conjunto de notas e a vizinha de baixo parou de ler para ouvir. A vizinha de baixo e o vizinho de cima assitiam juntos e separados, com os olhos, os ouvidos e os dedos, à primeira de todas as melodias. Chegava, nas pontas dos pés, quase imperceptível, e atravessava os tímpanos, o coração, a boca e pousava quase nada no mundo.
O aprendiz de guitarrista repetiu a mesma combinação de notas vezes sem conta até que a melodia se tornou inegável e existiu naquelas paredes para sempre. A vizinha de baixo parou definitivamente de ler. Pousou os óculos e levantou-se. Foi, antes, regar as plantas.
Voltava a preenchê-la aquela esperança de que talvez o mundo avançasse.
Na arte, tudo era possível.
Depois voltou a sentar-se no sofá e ligou a televisão.
Depois voltou a sentar-se no sofá e ligou a televisão.
O aprendiz de guitarrista continuou a tocar a mesma melodia. Devagarinho. Igual ao mundo.