Disse o texto a quem escrevia: "Não me escreverás!" e quem escrevia bateu no texto com força dizendo: "Cala-te!". Com o embate, o texto saltou da cabeça e foi aterrar na boca. Quem escrevia tossiu engasgado e levou as mãos aos lábios sentindo o peso do texto na língua. Disse: "Tu nem sequer existes!" e o texto mexeu-se inquieto por dentro. Quem escrevia estava muito parado, quase suspenso sobre a folha tão branca como os voos de infância e, ao soltarem-se, era quem escrevia que caía vagaroso e não a folha, de tal modo impenetrável que não se rasgaria com o gesto de uma mão nem de duas nem de mil. "Pára!", gritou quem escrevia e o texto estava agora na ponta da língua, à beira do abismo, queria falar mas tinha medo de morrer na folha. Calaram-se os dois. Saiu uma palavra dos lábios. O resto do texto tentou puxá-la para dentro da boca, mas ela seguiu corajosa para o mundo. Pousou nas maçãs do rosto e subiu muito réptil, letra a letra. Havia um buraco misterioso e a palavra estalou no ar em salto mortal desaparecendo no ouvido. Quem escrevia ouviu: "Serpente" e endireitou as costas como as serpentes se endireitam para o ataque. A imagem daquele corpo esguio hipnotizava quem escrevia: viu na folha branca o corpo maleável da cobra, a língua repetitiva como as marés, os olhos poderosos em forma de luas. Disse a serpente: "Não me escreverás!" e quem escrevia obedeceu. No sono quase acordado quis desculpar-se. Disse: "Há textos que ficam por dentro" e, ao engolir a saliva, engoliu o texto inteiro que trazia na ponta da língua. Só a serpente ficou no ouvido, as oito letras muito juntas e flexíveis dormindo contra o tímpano. Naquela noite a palavra maleável falou outras palavras e no ouvido nasceram outras letras. Quem escrevia acordou e escreveu o que a serpente lhe ditava.
Era, por assim dizer, a corrupção de quem escrevia, a perdição, a salvação.
O pecado original da escrita.