Hoje é o último dia de novembro e começou a nevar em Bruxelas. O meu filho nasceu há três dias. Neste momento está com soluços. Era um dia quase perfeito, mas uma amiga deu entrada no hospital e o Zé Pedro morreu. Vejo a neve a cair e canto O Homem do Leme dentro da cabeça.
Uma vez servi hambúrgueres aos Xutos e Pontapés. É mesmo verdade. Foi numa roulotte do Rock in Rio. O Tim fez o pedido e eu cumpri todos os desejos: coca-colas, cervejas, batatas. O Tim olhou para a conta: "Eh pá, acho que te enganaste." Eu desculpei-me: "É que eu não sei fazer contas". O Tim ralhou-me. "Mau, mau, Maria". Fez uma piada qualquer sobre tabuada, a que se seguiu um esforço conjunto: eu e o Tim a fazer a conta juntos. Ora, um hamburguer assim, outro assado, colas, cervejas, este era com menu, o outro não era. Às tantas, admiti: "Não consigo concentrar-me". O Tim riu-se, chutou um número. Eu perguntei: "Mas eu enganei-me na conta para cima ou para baixo?" Ele disse: "Para baixo". Eu disse: "Então, não faz mal!" O Tim riu-se. Insistiu. Aquelas coisas de sempre: nem pensar, quero pagar. Eu disse que estava bem assim. Sou fã e tal.
"De certeza?" Eu disse: "De certeza". Ele disse: "Coitado do patrão!" Eu encolhi os ombros. O patrão era um tipo sujo e desonesto, mas eu não disse isso. Na verdade, não devo ter dito nada. E nem fiz uma piada sobre a minha alegre casinha. Fiquei para ali com cara de parva a dar uns quantos chutos à minha desconcentração. Depois eles foram-se embora, os Xutos e Pontapés, com aquele jeito inventado de serem rockeiros à portuguesa, os seus hambúrgueres e cervejas e coca-colas, e eu fiquei a vê-los ir com a sensação de que um dia escreveria sobre isso. O meu momento desconcentrado com os Xutos e Pontapés.
Neva lá fora e eu canto: "E uma vontade de rir nasce do fundo do ser. E uma vontade de ir, correr o mundo e partir, a vida é sempre a perder".
Não há dias perfeitos. Não há salvação eterna. Não há deus que nos valha.
Mas há canções extraordinárias. E pessoas.
Incluindo alguns artistas.