quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Notas sobre livros, livrarias e outras coisas essenciais

Na Bélgica estamos confinadinhos desde o início de novembro. O teletrabalho passou a ser obrigatório. O uso de máscara também. À noite ficamos fechados em casa e não podemos receber visitas. Os restaurantes e os cafés estão fechados, os cabeleireiros estão fechados. As lojas “não essenciais” estão fechadas. Sapatarias, perfumarias, lojas de decoração, lojas de fotografia: tudo fechado. Neste cenário, seria previsível que as livrarias fechassem também. 

Pois, o que há de essencial na literatura? Nada. 

Felizmente o governo belga decidiu considerar as livrarias “essenciais” para apoiar o setor e levantar a moral das pessoas. As chocolatarias e as cervejarias estão fechadas. Mas as livrarias cá estarão de portas abertas para salvar os nossos dias.

Ler durante o confinamento é essencial. Fugir deste silêncio, imaginar outras vidas, mergulhar num poema: essencial. De repente, quando precisamos de inspiração, apercebemo-nos da importância dos livros e das casas onde moram os livros.

Vou com regularidade às livrarias do bairro arejar a psique. Às vezes vejo só a vitrine. Mas quase sempre entro. Quase sempre compro qualquer coisa. Um livro para os bebés, uma BD para o mais velho, uma novela gráfica para mim.

Muitos portugueses aqui em Bruxelas me perguntam como e onde compro livros portugueses. A verdade é que não posso ir às livrarias em Portugal. Por mais essenciais que elas sejam: eu estou aqui e elas acolá.

Há sempre La petite portugaise, a livraria portuguesa em Bruxelas, com quem falho continuamente porque nunca lá vou. Há também a livraria europeia Librebook - Bruxelles, onde também nunca ponho os pés. Vou arder no inferno.

A verdade é que, ao longe ou ao perto, é muito mais fácil comprar tudo através de um clique. Sobretudo nas grandes cadeias de livrarias ou nas livrarias online, que até já conhecem os nossos hábitos de leitura e o número do nosso cartão de crédito. Além disso, passam a vida a oferecer-nos coisas: descontos imbatíveis, entregas gratuitas, cartões de fidelidade, cupões, pontos, livros, etc.

Reconheço a utilidade de comprar tudo através de um clique, mas também nos cabe a nós - leitores, clientes, consumidores, cidadãos do mundo - fazermos um outro clique. 

Que tipo de serviço queremos? Será que queremos realmente ser um nome de utilizador e uma palavra-passe? Será que queremos viver de facto sentados em frente a um ecrã? Será que os descontos, os pontos e os cupões servem realmente o nosso interesse? Será que queremos contribuir para que os maiores fiquem cada vez maiores? O que acontecerá aos mais pequenos? O que acontecerá ao serviço de cliente? O que acontecerá às livrarias de bairro? E aos livreiros? O que acontecerá àqueles livros que não são os mais aguardados ou procurados ou destacados? O que acontecerá aos autores que não são tão célebres ou comerciais? O que acontecerá aos editores que arriscam em projetos alternativos? O que acontecerá à oferta de livros?

Porque acredito na diversificação e porque gosto de projetos de autor, de livros com tiragens pequenas, de nichos literários, de editoras com tomates, de autores-artistas, porque quero ter acesso a tudo o que vende e rende mas também a tudo o que surpreende e transcende, não quero ceder às grandes cadeias e livrarias online. Falho continuamente com livrarias e editoras em que acredito, mas esforço-me por melhorar e cumprir.

Em Portugal ou no estrangeiro é possível ir ao encontro das livrarias independentes. Podemos sempre escolher a nossa livraria de eleição. Há também uma rede que representa as livrarias independentes: RELI - Rede de Livrarias Independentes.

Há livrarias para todos os gostos e feitios. Adotem uma ou duas ou três.

Muitas vezes encomendo diretamente às editoras. Algumas editoras têm lojas online bastante fáceis de usar. Outras nem por isso. Umas só aceitam pay pal, outras só enviam os livros depois de receberem comprovativo de pagamento.

É chato, claro. Cabe-nos a nós - leitores, clientes, consumidores, cidadãos do mundo - exigir às livrarias e editoras que se atualizem. Mas entrementes o esforço de usarmos os seus serviços não é apenas louvável. É essencial. Para salvar este setor e também a nossa alma.

Se não queremos que as livrarias e as editoras fechem as portas, então não podemos ficar à porta.

Agora que vem aí o Natal e vós quererdes oferecer livros para cacete, temos de fazer esse esforço (e esse clique).

Interrompo este desabafo para puxar a brasa à minha tangerina: Planeta Tangerina. Portes grátis para compras acima dos 30 euros e livros que são uma maravilha. Vão lá ver. E nem estou a falar dos meus. O que tinha a receber em direitos de autor recebi no adiantamento, independentemente de os livros resultarem. E para que não haja equívocos: o que recebo em direitos de autor não dá sequer para pagar as contas de um mês. É mesmo verdade. Nunca hei de viver dos livros. Escrevo por paixão. Leio por paixão. Compro livros por paixão. Na época em que trabalhei numa livraria ficava a dever dinheiro aos patrões porque gastava tudo em livros.

Obrigada à Bélgica por manter as livrarias abertas.

Obrigada aos livreiros que estão nas livrarias.

Obrigada ao Planeta Tangerina por ser uma editora que arrisca.

Obrigada a vocês por lerem estes meus desabafos.

E já agora, obrigada às pessoas que elegeram o Joe Biden.

E obrigada também àquele pessoal que descobriu uma vacina contra a maleita. 

Viva a ciência, viva a democracia, viva a literatura! Ho ho ho!

Isto está tudo ligado. Não parece, mas está. Ler, procurar, investigar, estudar, apoiar, votar. 

Vem aí o inverno. Agasalhem-se. Comprem livros. Leiam. Desabafem. 

Desculpem lá. Estou um bocado chata hoje.

(Para ilustrar este post fui buscar esta foto da Filigranes Corner)