quinta-feira, 23 de outubro de 2008

No escritório do chefe (VIII)


- Não, eu não estou a alegar nada, você é que não está a dizer a verdade.
- Você chamou o chefe de estúpido?!
- Não estou a dizer a verdade?! Está a chamar-me de mentiroso, agora?
- Você chamou o chefe de estúpido?!
- Sim, de certa forma, sim. É mentiroso, sim! Está a deturpar a verdade.
- Você está a chamar o chefe de mentiroso?
- Ó Vasco, você está realmente confuso.
- Eu não estou confuso.
- Ó chefe, este homem está confuso. Quer que eu chame a polícia?
- Não, Alídio. Não chame ninguém. Aliás, se fizer favor, pode até retirar-se. Não houve aqui agressão nenhuma, vamos resolver tudo isto a bem.
- Ó chefe, desculpe estar a intrometer-me, mas o que se está a passar aqui é agressão pura.
- Alídio, você tem toda a razão. Tem toda a razão mesmo, mas aqui o colega Vasco não concorda consigo. Aqui o Vasco acha que no jardim zoológico temos de chamar nomes às pessoas.
- No jardim zoológico?!
- Sim, o Vasco gostaria de viver no jardim zoológico.
- No jardim zoológico?!
- Eu nunca disse tal coisa, você está a manipular o meu discurso.
- Ó chefe, este homem não está bem. O melhor é mesmo chamar a polícia.
- Ó homem, não se meta onde não é chamado.
- Onde não sou chamado?! Eu sou o segurança deste edifício.
- Olhe, Alídio, vamos fazer o seguinte: se eu precisar de si, ligo lá para baixo, pode ser?
- Está bem, chefe, pode ser. Mas eu, por mim, resolvia já a coisa. Não vale a pena sermos heróis nestas alturas, chefe.
- Herói?! Você está a chamar o chefe de herói?!
- Pronto, Alídio, mas eu realmente preferia resolver isto à minha maneira, se não se importa.
- Este homem é um merdas, não é nenhum herói.
- Pronto, chefe, então se precisar de mim, já sabe onde estou.
- Claro, Alídio, sei muito bem. Obrigado por ter passado.
- É todo um merdas! Uma verdadeira papa de tomate com açúcar.
- De nada, chefe. Sempre às ordens. Mas já sabe o que eu acho, eu por mim...

[O segurança sai.]

- Já viu este rapaz, Vasco? Já viu bem? Tem uns 27 anos, não tem mais. Eu sei disso porque conheço a mãe dele e este miúdo já veio depois da minha filha.
- Você é um merdas!
- E agora está ali, pá, parece um homem. Parece um homem! Lembro-me dele pequeníssimo. Assim, desta altura. Gosto da juventude, quando ela é assim, sabe? Bem feita, bem parida, bem vivida. Assim é que é.
- ...
- Vasco, sente-se aí outra vez.
- Não quero, você é um merdas!
- Sente-se, vá. Vamos lá resolver isto, faça-se um homem! O Vasco precisa de se acalmar. Está muito confuso.
- Confuso?! Eu?! Já lhe disse que não estou confuso. Sei bem o que disse, por que o disse e quando o disse. E o que eu disse foi: Você é estúpido. E um merdas. Não me arrependo disso. Ouviu? Não me arrependo.
- Aaaah, agora que o segurança se foi embora já não se arrepende.
- Ó chefe, você está a dar a volta ao meu discurso, eu nunca me arrependi de nada.
- Vasco, eu entendo isso tudo, entendo isso tudo: a sua fúria, o seu mal-estar, essa confusão toda que vai na sua cabeça. Entendo isso tudo. É verdade que entendo. Porque eu sou, no fundo e à superfície, um homem bom, 'tá a ver? Um homem compreensivo, pacífico, aberto ao outro. Pode perguntar a quem quiser, sou mesmo assim. E muito embora as hostilidades estejam definitivamente abertas entre mim e o Vasco, não consigo deixar de o ver como um ser humano, 'tá a ver? Não consigo. Você, para mim, é um ser humano. Nada mais que isso. Mesmo que queira viver no jardim zoológico, você, para mim, é humano. Igual aos outros. Com uma capacidade enorme para o erro e para o contraditório. Porque nós somos, por natureza, contraditórios, Vasco. Mesmo os meios-heróis. Somos todos contraditórios. Há que aceitá-lo. E em situações de perigo ainda mais contraditórios somos. É assim porque é assim. Sempre foi assim, há que aceitar o passado anterior a nós. Não o podemos alterar. E é exactamente por isso que o conflito entre o que somos e o que queremos é enorme. O fosso é profundo, temos vertigens só de olhar para ele, ficamos confusos com tudo isto. Mas ao mesmo tempo é isso que faz de nós seres humanos. Isso e nada mais. E é aqui que regressamos à tal conversa dos tomates.
- Não, não, chefe. Desculpe, mas não voltamos aos tomates, não senhor.
- Voltamos sim, é aí que tudo começa.
- Não, já chega de tomates. Não quero saber de tomates.
- Ai não? Não quer saber de tomates?! Então quer saber do quê?
- Do meu discurso. Das palavras. Do que tenho para lhe dizer. E depois vou-me embora. Vou-me mesmo embora. Para sempre.
- Ai sim? Mas o Vasco tem alguma coisa para dizer?
- Como assim, chefe? Então o que é que estamos aqui a fazer?! Então eu não estou aqui desde as nova da manhã para lhe dizer o que vim para dizer?
- Não. Estamos aqui por causa do que eu tinha para dizer. O que o Vasco disse foi que ia dizer o que eu queria ouvir, não o que tinha para dizer.
- Não, não disse nada disso. Não disse nada disso!
- Bom, então devo ter percebido mal, só pode. Peço desculpa, também tenho direito ao erro, não acha, Vasco?
- Acho, chefe!
- Muito obrigado. Ora então diga, Vasco. Essa tal coisa que tinha para dizer, diga, diga. Não é difícil dizer o que se tem para dizer, pois não?
- Olhe, mas também não é fácil.
- Pois não.
- Não sou muito bom com as palavras.
- Ai não?
- Não, chefe, não sou.
- Então já percebeu a importância do que lhe falei há pouco? Já percebeu?
- A importância do quê, chefe?
- Isso pergunto-lhe eu: A importância do quê, Vasco?
- Dos tomates?!
- Não, Vasco. Claro que não. Deixe lá os tomates.
- Do jardim zoológico?!
- Não, homem! Dos adjectivos. Do grau dos adjectivos! Não há nada mais importante do que o grau dos adjectivos.