- Ó Vasco! Você começa a irritar-me com essa.
- Que essa?
- Com essa coisa. Das pessoas estúpidas.
- Ai sim, chefe? Desculpe, não era minha intenção irritá-lo.
- Pois, mas de facto começa a irritar-me essa insinuação constante, essa coisa aí entre dentes.
- Mas que coisa, chefe?
- Essa coisa, essa coisa. Das pessoas estúpidas, já lhe disse. Essa acusação velada sempre pronta a sair. Isso não é nada bom para esta nossa conversa de heróis, sabe?
- De meios-heróis, chefe!
- Sim, de meios-heróis.
- Não queira ser mais do que é, chefe! Por agora, é meio-herói. Depois se verá.
- Certo, certo! Mas vamos então deixar essa insinuaçãozinha que já me começa a melgar os ouvidos, está bem?
- Insinuaçãozinha?!
- Sim, insinuaçãozinha. Você sabe bem do que estou a falar, Vasco. Essa insinuação das pessoas estúpidas.
- Mas eu não insinuei nada, chefe, já lhe disse o que tinha a dizer: Você é uma pessoa estúpida. Efectivamente uma pessoa estúpida, sem sombra para dúvidas, evidentemente, indubitavelmente. Estúpida, pronto.
- Ó Vasco, não me diga que vamos voltar ao princípio?! Já lhe disse para não me chamar estúpido!
- Mas é que entretanto já o chamei quinhentas vezes, portanto não vale a pena fugir com o rabo à seringa.
- Como se atreve? Como se atreve?!
- Olhe, é de tal forma que até vou escrever aqui na folhinha que o chefe me deu. Porque também já aprendi uma coisa hoje.
- Pare já com isso, pare já com isso, Vasco.
- Chefe, tracinho, estúpido. Pronto, já está. Chefe, tracinho, estúpido. Também é o título de um romance.
- Ó Vasco, o que é que o Vasco pretende com esse comportamento? O que pretende? O que pretende?
- Ora bem, inicialmente era mesmo só chamá-lo de estúpido. Pronto, só isso, estava cheio de ganas de vir aqui, entrar no seu gabinete e dizer-lhe: Você é estúpido. E hoje, justamente por o dia se ter posto tão bonito, vinha com essa na cabeça, que o mundo merecia que eu fizesse algo por ele, que eu merecia que o mundo fizesse algo por mim...
- Que o mundo fizesse algo por si?! Que o mundo fizesse algo por si?! Mas que idade é que você tem, homem?
- Ora bem, agora sou eu que lhe digo: Pare já com isso! Pare já. Imediatamente. Estou farto. Farto. FARTO. Percebe? Farto de si e dessa sua maneira.
- Dessa minha maneira?
- Sim, dessa sua maneira. De virar a ponta ao prego.
- De virar a ponta ao prego?!
- Sim, de virar a ponta ao prego. Pensa o quê? Que nasci ontem? Que cheguei agora à selva? Não preciso dos seus conselhos de meio-herói nem das suas teorias estúpidas de português viúvo, entende? Não quero os seus bloquinhos nem as suas canetinhas, estou-me nas tintas para os seus tomates, 'tá a ouvir? Estou-me nas tintas. Os seus tomates, para mim, são ketchup. Ketchup! Uma papa de tomates com açúcar, percebe? Detesto ketchup. Detesto!
- Homem, você acalme-se! Acalme-se, que você precisa de ajuda. Isto aqui é muito grave.
- Gravíssimo, chefe! Gravíssimo! Grau superlativo absoluto sintético e sei-lá-que-mais. Que eu hoje até tive de lhe aturar uma lição de gramática, chefe! De gramática! Que coisa mais patética, mais inconcebível! Parecia que estava a ver aquele programa da Edite Estrela.
- E que mal tem, homem? Que mal tem a Edite Estrela? Estamos aqui para aprender, Vasco! E se eu tenho coisas para lhe ensinar, ensino!
- Você não tem nada para me ensinar! Nada. Entende? Nada de nada. Pare com essa generosidadezinha manhosa. Pare com isso, que já não tenho paciência. Deixe lá essa lábia de campanha eleitoral. Não voto em si, percebe? Não voto em si! Eu nunca votei em si! Jamais votaria em si!
- Ai sim? Então vota em quê, homem? Vota em quê? No jardim zoológico? Nas jaulazinhas? É isso que quer? Uma revolta por dentro, escondidinha, ad eternum? Não seja maricas, Vasco, faça-se um homem. Mas onde é que estamos? Na escola primária?
- Você, se não pára de me dar conselhos, vou-lhe às trombas. É que vou mesmo. Está dito: vou-lhe às trombas.
- Como?! Ó Vasco, você passou-se, passou-se! Não me resta alternativa, Vasco. Não me resta alternativa! Vou chamar a polícia, Vasco!
- Que polícia, homem? Acha que eu lhe dava tempo para chamar a polícia? Saltava-lhe logo em cima e pontapeava-o, ouviu? Como você faz aos pombos e aos cães e aos gatos. Acha que eu teria compaixão? Matava-o logo. Em três tempos.
- Vasco, não se exalte dessa maneira, sente-se aí.
- Já lhe disse para não me dar conselhos.
- Bom, isto não eram conselhos.
- Ai não? Ai não?!
- Não. Eram ordens! Na verdade, eram ordens! Sente-se.
- Ok, sento-me. Nesta sua cadeira estúpida. Confortabilíssima. Detestável.
- Vasco, relaxe, que o dia ainda não acabou. O dia de hoje é francamente bonito e está para ficar. Vou aqui abrir mais a janela para não perdermos este sol. Hein? Que acha? Cá está ele, cá está ele: temos de agradecer ao universo este sol, há que saudá-lo todos os dias. Todos os dias. Não nos podemos esquecer. E entretanto deixe-me que lhe diga o seguinte: não faz grande sentido você vir aqui de ouvidos moucos só para me chamar de estúpido, percebe? Não faz sentido. Não faz. Porque você só perde a razão, percebe? Perde a luta na selva, 'tá a perceber? Porque, se assim for, eu chego aqui, prego-lhe com uma falta indisciplinar, você sai deste escritório com o rabo entre as pernas e não arranja emprego em mais lado nenhum... E eu fico aqui a coçar os tomates e a ver o sol brilhar para mim, 'tá a ver a ideia? Agora, se você abrir um pouco os ouvidos e ouvir o que há realmente para dizer, talvez as coisas sejam mais negociáveis, não acha?
- Negociável? Mas você acha que eu quero negociar alguma coisa? Que tenho medo dessas ameaças de rei da selva? Não, não tenho, não tenho medo de si, estou-me nas tintas para a sua selva, já lhe disse.
- Pronto, está visto: você veio aqui de ouvidos moucos. De ouvidos moucos. E o estúpido sou eu?! Não creio.
- De ouvidos moucos? Eu?! De ouvidos moucos?! Cale-se já. Não fiz mais nada hoje senão ouvi-lo, chefe! Já não posso ouvi-lo. Não posso, percebe? Cale-se de uma vez por todas.
- Ai sim, chefe? Desculpe, não era minha intenção irritá-lo.
- Pois, mas de facto começa a irritar-me essa insinuação constante, essa coisa aí entre dentes.
- Mas que coisa, chefe?
- Essa coisa, essa coisa. Das pessoas estúpidas, já lhe disse. Essa acusação velada sempre pronta a sair. Isso não é nada bom para esta nossa conversa de heróis, sabe?
- De meios-heróis, chefe!
- Sim, de meios-heróis.
- Não queira ser mais do que é, chefe! Por agora, é meio-herói. Depois se verá.
- Certo, certo! Mas vamos então deixar essa insinuaçãozinha que já me começa a melgar os ouvidos, está bem?
- Insinuaçãozinha?!
- Sim, insinuaçãozinha. Você sabe bem do que estou a falar, Vasco. Essa insinuação das pessoas estúpidas.
- Mas eu não insinuei nada, chefe, já lhe disse o que tinha a dizer: Você é uma pessoa estúpida. Efectivamente uma pessoa estúpida, sem sombra para dúvidas, evidentemente, indubitavelmente. Estúpida, pronto.
- Ó Vasco, não me diga que vamos voltar ao princípio?! Já lhe disse para não me chamar estúpido!
- Mas é que entretanto já o chamei quinhentas vezes, portanto não vale a pena fugir com o rabo à seringa.
- Como se atreve? Como se atreve?!
- Olhe, é de tal forma que até vou escrever aqui na folhinha que o chefe me deu. Porque também já aprendi uma coisa hoje.
- Pare já com isso, pare já com isso, Vasco.
- Chefe, tracinho, estúpido. Pronto, já está. Chefe, tracinho, estúpido. Também é o título de um romance.
- Ó Vasco, o que é que o Vasco pretende com esse comportamento? O que pretende? O que pretende?
- Ora bem, inicialmente era mesmo só chamá-lo de estúpido. Pronto, só isso, estava cheio de ganas de vir aqui, entrar no seu gabinete e dizer-lhe: Você é estúpido. E hoje, justamente por o dia se ter posto tão bonito, vinha com essa na cabeça, que o mundo merecia que eu fizesse algo por ele, que eu merecia que o mundo fizesse algo por mim...
- Que o mundo fizesse algo por si?! Que o mundo fizesse algo por si?! Mas que idade é que você tem, homem?
- Ora bem, agora sou eu que lhe digo: Pare já com isso! Pare já. Imediatamente. Estou farto. Farto. FARTO. Percebe? Farto de si e dessa sua maneira.
- Dessa minha maneira?
- Sim, dessa sua maneira. De virar a ponta ao prego.
- De virar a ponta ao prego?!
- Sim, de virar a ponta ao prego. Pensa o quê? Que nasci ontem? Que cheguei agora à selva? Não preciso dos seus conselhos de meio-herói nem das suas teorias estúpidas de português viúvo, entende? Não quero os seus bloquinhos nem as suas canetinhas, estou-me nas tintas para os seus tomates, 'tá a ouvir? Estou-me nas tintas. Os seus tomates, para mim, são ketchup. Ketchup! Uma papa de tomates com açúcar, percebe? Detesto ketchup. Detesto!
- Homem, você acalme-se! Acalme-se, que você precisa de ajuda. Isto aqui é muito grave.
- Gravíssimo, chefe! Gravíssimo! Grau superlativo absoluto sintético e sei-lá-que-mais. Que eu hoje até tive de lhe aturar uma lição de gramática, chefe! De gramática! Que coisa mais patética, mais inconcebível! Parecia que estava a ver aquele programa da Edite Estrela.
- E que mal tem, homem? Que mal tem a Edite Estrela? Estamos aqui para aprender, Vasco! E se eu tenho coisas para lhe ensinar, ensino!
- Você não tem nada para me ensinar! Nada. Entende? Nada de nada. Pare com essa generosidadezinha manhosa. Pare com isso, que já não tenho paciência. Deixe lá essa lábia de campanha eleitoral. Não voto em si, percebe? Não voto em si! Eu nunca votei em si! Jamais votaria em si!
- Ai sim? Então vota em quê, homem? Vota em quê? No jardim zoológico? Nas jaulazinhas? É isso que quer? Uma revolta por dentro, escondidinha, ad eternum? Não seja maricas, Vasco, faça-se um homem. Mas onde é que estamos? Na escola primária?
- Você, se não pára de me dar conselhos, vou-lhe às trombas. É que vou mesmo. Está dito: vou-lhe às trombas.
- Como?! Ó Vasco, você passou-se, passou-se! Não me resta alternativa, Vasco. Não me resta alternativa! Vou chamar a polícia, Vasco!
- Que polícia, homem? Acha que eu lhe dava tempo para chamar a polícia? Saltava-lhe logo em cima e pontapeava-o, ouviu? Como você faz aos pombos e aos cães e aos gatos. Acha que eu teria compaixão? Matava-o logo. Em três tempos.
- Vasco, não se exalte dessa maneira, sente-se aí.
- Já lhe disse para não me dar conselhos.
- Bom, isto não eram conselhos.
- Ai não? Ai não?!
- Não. Eram ordens! Na verdade, eram ordens! Sente-se.
- Ok, sento-me. Nesta sua cadeira estúpida. Confortabilíssima. Detestável.
- Vasco, relaxe, que o dia ainda não acabou. O dia de hoje é francamente bonito e está para ficar. Vou aqui abrir mais a janela para não perdermos este sol. Hein? Que acha? Cá está ele, cá está ele: temos de agradecer ao universo este sol, há que saudá-lo todos os dias. Todos os dias. Não nos podemos esquecer. E entretanto deixe-me que lhe diga o seguinte: não faz grande sentido você vir aqui de ouvidos moucos só para me chamar de estúpido, percebe? Não faz sentido. Não faz. Porque você só perde a razão, percebe? Perde a luta na selva, 'tá a perceber? Porque, se assim for, eu chego aqui, prego-lhe com uma falta indisciplinar, você sai deste escritório com o rabo entre as pernas e não arranja emprego em mais lado nenhum... E eu fico aqui a coçar os tomates e a ver o sol brilhar para mim, 'tá a ver a ideia? Agora, se você abrir um pouco os ouvidos e ouvir o que há realmente para dizer, talvez as coisas sejam mais negociáveis, não acha?
- Negociável? Mas você acha que eu quero negociar alguma coisa? Que tenho medo dessas ameaças de rei da selva? Não, não tenho, não tenho medo de si, estou-me nas tintas para a sua selva, já lhe disse.
- Pronto, está visto: você veio aqui de ouvidos moucos. De ouvidos moucos. E o estúpido sou eu?! Não creio.
- De ouvidos moucos? Eu?! De ouvidos moucos?! Cale-se já. Não fiz mais nada hoje senão ouvi-lo, chefe! Já não posso ouvi-lo. Não posso, percebe? Cale-se de uma vez por todas.
- Muito bem, Vasco, muito bem. Vamos lá a isso. Vou aqui sentar-me com o meu bloquinho no colo para o ouvir. Só para o ouvir. Eu cá sou todo ouvidos. Todinho. Ora então diga lá.