sexta-feira, 10 de outubro de 2008

No escritório do chefe (II)

Ler parte I.

- Ó homem, você está louco! Você está louco, Vasco! Está louco! Louco!
- Olhe, se calhar sim, estou louco, chefe!
- É que está mesmo, percebe? Está mesmo! Completamente louco! Está a perceber bem? Você está louco.
- Talvez, talvez. Sou louco, pronto, sou louco. Mas você é estúpido. Sou louco e você é estúpido! Cada um é como é. E você é estúpido.
- Pare já de me chamar estúpido, ouviu? Está proibido de me chamar estúpido! Pro-i-bi-do! Você, Vasco, você está louco.
- Antes louco que estúpido.
- Ó Vasco, pare com isso! Você controle-se. Você controle-se, homem, qu'isto é grave! Isto é grave, percebeu?
- Pois claro que sim. E concordo, chefe! É grave.
- Pois é, é! É grave! E você nem sabe quão grave isto é. É que é mesmo muito grave, Vasco, muito grave mesmo.
- Claro que é, chefe! Há que ver as coisas como elas são. Se é grave, é grave. E realmente, tem toda a razão, é grave!
- Gravíssimo, Vasco. Gravíssimo. É o mais grave.
- Muito grave, sim senhor.
- Não! Muito grave, não, Vasco. Muito grave, não. Não é muito grave, não! É gravíssimo! Gravíssimo, percebe?
- Percebo. Gravíssimo.
- Pois, gravíssimo. Que "muito grave" não chega, está a entender? "Muito grave" não chega.
- Ora pois, não chega.
- Não chega, não. Sabe porquê, Vasco? Sabe porquê?
- Então porquê, chefe?
- É uma questão de grau, Vasco. De grau! De grau, percebe?
- De grau?! De grau de gravidade?!
- Não, Vasco, claro que não. Claro que não. Qual grau de gravidade?! Você, Vasco, você… Eu já não tenho idade pra isto, Vasco, já não tenho idade pra isto... O grau de gravidade?! Mas o que é isto?!
- Não sei, chefe! Não sei. O chefe é que estava a falar de grau.
- Sim, de grau. Mas não de gravidade, Vasco. Não de gravidade. A gravidade é só uma, homem, é só uma. É uma lei, nada mais, não há graus de gravidade. Estava o Newton encostado à macieira e pimba!, fez-se a lei da gravidade. Essa gravidade não é práqui chamada, não é práqui chamada. Percebeu? Eu estava a falar do grau dos adjectivos. Dos adjectivos, Vasco. Percebeu agora?
- Ah, ok.
- Sabe o que são os graus dos adjectivos? Sabe o que são?
- Sim, sei. Tenho uma vaga ideia.
- Uma vaga ideia?! Tem uma vaga ideia?! Você não pode ter uma vaga ideia, Vasco! Não pode! Tem de saber os graus dos adjectivos. Tem de saber! Um homem que é homem tem de saber usar os graus dos adjectivos. E um homem que entra aqui - no escritório do chefe - e me chama a mim, me chama a mim, de estúpido, tem de saber os graus dos adjectivos. Tem de saber!
- Mas olhe, eu realmente não sei, e continuo a achá-lo estúpido!
- Pare já com isso, pare já com isso, Vasco, que ainda morremos os dois aqui! Pare já, pare já! Não temos idade pra isto, Vasco, não temos idade.
- Pois não temos, não.
- Pois claro que não temos, homem. E se você quer andar por aí a salvar o mundo, a defender ideias, a fazer discursos, a chamar as pessoas de estúpidas, a dizer seja o que for, você tem de saber os graus dos adjectivos. Tem de saber!
- Certo, tenho de saber.
- Porque "muito grave" não é o mesmo que "gravíssimo", Vasco. Não é o mesmo! Toda a gente sabe isto! Uma coisa é o superlativo absoluto analítico, outra coisa é o sintético. O sintético! Percebe? O que é sintético tem mais pujança. 'Tá a ver? É mais eficaz, mais eficiente, mais capaz!
- Ok! Sintético!
- Sim, sintético! Portanto, se eu lhe digo que isto é gravíssimo, não me responda que é grave nem muito grave. É gravíssimo. Superlativo absoluto sintético: Gravíssimo!
- Gravíssimo! É gravíssimo!
- Pois é gravíssimo, sim. Gravíssimo. E sabe porquê, Vasco? Sabe por que é que é gravíssimo? Sabe?
- Sei.
- Ai sim? Ai sim? Sabe? Sabe? Então, diga lá, Vasco. Então, diga lá!
- É gravíssimo, porque o chefe, com todo o respeito que merece e que eu lhe devo, é estúpido.
- Como?! Como?!
- O chefe é estúpido.
- Cale-se! Já não o posso ouvir com isso.
- Sim, já me calo! Mas para ser sintético, é isto: o chefe é estúpido.
- ...
- É gravíssimo termos um chefe estúpido.