- …
- Diga, diga, Vasco. Sou todo ouvidos.
- É todo ouvidos?! Você é todo um merdas, não é todo ouvidos. É todo um merdas.
- Ó Vasco, se você vai passar o tempo todo a insultar-me, então não vale a pena ficar a ouvi-lo, não acha?
- Cale-se, já lhe disse. Isto foi só uma maneira de introduzir o tema, de começar a conversa, nada mais.
- Não, não foi. Desculpe, mas não foi. Foi um insulto. Assim não se pode conversar, Vasco. Depois de tanto insulto, não há diálogo, homem. É que, neste caso, só mesmo eu para o ouvir, ó Vasco. Só eu. Que outro chefe é que ficava aqui a ouvi-lo?! Que outro chefe? Diga lá. Qualquer outra pessoa mandava-o embora e não queria saber mais de si, Vasco. Mas eu não sou assim, nunca fui assim. Cuido realmente do que é meu e estou aqui para cuidar de si. Acredito nisto até ao fim do mundo, entende? Até ao fim do mundo. Há que cuidar do que é nosso. Mas, por outro lado, se "o que é nosso" nos rejeita, então não podemos cuidar mais. E portanto, se o Vasco vem aqui com duas pedras na mão, então não há diálogo possível, não é verdade?
- Está a ver isto, chefe?! Está ver isto? Você está mais uma vez a discursar e eu a ouvi-lo.
- Desculpe, tem razão, Vasco. Tem toda a razão. Queria só sensibilizá-lo para isto. Só isso, nada mais. Já não está aqui quem falou.
- Ah, ainda bem. Que eu gosto é de falar para as paredes. Ora bem, tinha eu começado por dizer que você é todo um merdas, mas agora retiro o que disse para não ferir susceptibilidades. Retiro até o atributo estúpido que tão bem lhe colei à testa.
- Não, não. Nada disso. Não tira, não. Não se apaga o passado numa conversa destas. Não se apaga nada. Mas o que é isto? Um homem do presente assume o passado, não anda para aí a inventar. É preciso reconhecer o passado, percebe? Aceitá-lo. Resolvê-lo. Eu já o aceitei. Agora, se o Vasco está com peso na consciência, das duas, uma: ou vive com esse peso na consciência ou livra-se dele tomando uma medida no futuro. Resolvendo o passado, percebe? Mas aqui, neste escritório e neste momento, o passado permanece. Você chamou-me de estúpido. É por aí que começamos.
- Ora então, comecemos: Você é estúpido.
- Ó Vasco, não é preciso repetir. O que está dito, está dito. Além de que está a entrar em contradição consigo próprio. Ainda há pouco estava arrependido de ter escolhido tal atributo e agora já está novamente nessa insistência.
- Arrependido? Eu?! Acha que estou arrependido de o ter chamado estúpido?
- Sim, acho! Claro que o Vasco está arrependido! Até queria apagar isso do seu discurso.
- Bom, vamos lá ver uma coisa, eu não estou arrependido de nada.
- Mas bem que queria apagar o tal atributo do seu discurso.
- Sim, queria. Para ganhar os seus ouvidos, nada mais. Estava a cativá-lo, percebe? Com tanta lábia, nunca leu nada sobre retórica, chefe?
- Para ganhar os meus ouvidos?! Então tanta pujança para dizer o que quer e agora vai dizer o que eu quero?
[Batem à porta e antes mesmo que alguém responda, entram. É o segurança.]
- Desculpe interromper. Passa-se aqui alguma coisa? Ligaram-me lá para baixo a dizer que havia agressão.
- Não, não se passa nada.
- De certeza, chefe?
- De certeza. Foi só aqui o colega que veio ao escritório do chefe chamar-me nomes. Mas ele agora já está arrependido, de maneira que não há problema nenhum.
- Não, ó chefe, isso não lhe admito.
- Não me admite o quê?
- Eu não disse nada disso. Você está a pôr coisas no meu discurso que eu nunca disse.
- Como assim? Como assim? Você está a alegar que nunca me chamou estúpido?