quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Banda sonora para a manhã de quarta-feira

Acordou mais ou menos cedo. Isto é, tinha tempo. Mas não muito. Apenas o suficiente.
Vestiu-se só. Não tomou banho (já tinha tomado um duche na noite anterior).
Foi à cozinha. Para pôr o café a fazer.
Pôs.
Enquanto a água borbulhava na máquina, foi até à sala. No armário do fundo havia paralelepípedos com botões. Carregou num desses botões, depois noutro. Nesse instante, uma música preencheu o espaço.
Regulou o volume como quem controla a temperatura da água: primeiro para a direita, depois para a esquerda.
Era uma música sem voz. Ou seja, instrumental. Isto é, uma música com voz de instrumento. A mulher tentava explicar por dentro o que ouvia. Era uma nódoa em música, já se sabe. Mas identifica.
O instrumento. Uma guitarra.
A melodia era uma boa banda sonora para a manhã de quarta-feira, tinha um certo ar de viagem pelo Sul da Europa, com praia ao fundo e gente na esplanada. Era uma música boa, sim. Ajudava a disfarçar o cinzento do céu e o cansaço muito inchado das pálpebras.
(Sempre tivera olheiras. Desde que nascera, explicava a mãe. Um desgosto.)
Quem será o guitarrista?, pergunta-se, mas não quer realmente saber: há outras prioridades na vida, como beber café.
A propósito deste pensamento, regressou à cozinha. Passado pouco tempo reapareceu na sala. Trazia um tabuleiro nas mãos. E nele vinham deitados os talheres e um prato, a cafeteira e uma chávena que dizia: Dreams come true. Num dos cantos vinha escondido um pacote de manteiga. Pousou o tabuleiro na mesa de jantar e voltou à cozinha. Regressou com um saco de pão de forma que se chamava British breakfast.
A música acabou entretanto e ela teve pena. Teve realmente pena, imensa pena. Talvez se viesse a esquecer da melodia muito em breve, ou mesmo daqui a nada, parecia-lhe até que já se esquecia, que já se tinha esquecido. Uma música de viagem pelo Sul da Europa não devia acabar. Nunca. Ou pelo menos, não agora. Nesta manhã de quarta-feira. Como se chamaria a música? Como dar um nome a uma música sem voz?
Interrompeu o pensamento para ouvir o homem da rádio. Contava qualquer coisa. Um tom monocórdico, igual às manhãs. Ela pediu um desejo: Diz o nome do guitarrista, mas o homem da rádio não disse nada disso, tinha naturalmente outras prioridades.
O preto ganhou as eleições. Foi o que disse o homem da rádio. Não assim, claro. Ela é que já tinha processado a informação. Não se apercebera de que o pensamento fizera isto, muito menos de que substituíra a pessoa pela cor.
Parecia contente. Ele, o homem da rádio. (Estalavam-lhe pequenas esperanças na boca.) Ela não. Estava igual. Concentrava-se na tarefa árdua de barrar o pão e arqueava um pouco a testa por causa disso.
Bebeu café. Bebeu mais café. Comeu pão com manteiga. Pensou: E a música? Já não me lembro da música. Encolhe os ombros e escuta.
If there is anyone out there who still doubts that America is a place where all things are possible, who still wonders if the dream of our founders is alive in our time; who still questions the power of our democracy, tonight is your answer.
Do saco tirou mais uma fatia, barrou-a atenciosamente. Enquanto o fazia, pensava coisas boas sobre o preto. Por exemplo, que era bom orador. Que tinha coragem. Que era bonito. Que a sua voz também era uma banda sonora para aquela manhã de quarta-feira.
Bebeu café. A chávena dizia: Dreams come true e ela riu-se.
Disso. Dos sonhos. Dos seus. Dos sonhos dos outros. Daquele outro sonho. Da história da escravidão, daquele país feito de escravos, do descendente dos escravos que se fez rei. Perdão, presidente.
(Era a própria mulher que se corrigia.)
Se fosse rei, teria mais piada. Seria digno de conto tradicional, ao bom estilo dos irmãos Grimm ou do Andersen. Presidente já não servia. Era demasiado moderno.
Comeu pão com manteiga.
Pergunta-se: Como será a vida de alguém que muda o mundo? Que pode mudar o mundo? Que vai mudar o mundo? Que quer mudar o mundo? Que pessoa é essa? Para onde vai?
Admite: Antes ser música. Sim, antes música. Sem nome nem voz. Uma melodia que ninguém conheça, mas que toda a gente tenha ouvido. Uma vez na vida. De manhãzinha. Na rádio. Uma banda sonora para a manhã de quarta-feira.
Antes música, que presidente, pensava a mulher enquanto saía de casa.
Tinha outros sonhos.
Outras prioridades.
(Como, por exemplo, tomar o pequeno-almoço de manhã).