Hoje tinha uma personagem no bolso. Dei por ela quando estava à procura das chaves de casa. Tirei-a cuidadosamente, mas ela não acabava de sair. Pensei: "É uma personagem sem fim", mas depois percebi que era o roupão.
Muito azul. E sem fim.
A personagem era mínima: tinha braços e pernas curtíssimos. Para não a magoar, pousei-a na bancada da cozinha e continuei a tirar roupão do bolso. Enquanto isso, a personagem começou a andar pelo lavatório. A pobre coitada tropeçava a cada passo, metia dó. Sentei-a numa cadeira para ela comer a sopa mas a personagem não conseguia agarrar na colher, tive de lhe arregaçar as mangas durante horas. Como não havia um fim para aquele roupão, despi a personagem e devolvi o roupão azul ao bolso.
Anunciei: "Pronto, acabou-se o roupão".
A personagem assustou-se. Depois enervou-se. Depois gritou: "Quero o meu roupão". Expliquei-lhe que aquele roupão era impossível, que tinha de a vestir com uma roupa normal. A personagem estrebuchou, atirou-me pedras, chamou-me nomes. Pacientemente, calcei-a com umas pequenas pantufas farfalhudas e vesti-a com um pijama de algodão. A personagem, enraivecida, cuspiu-me. Na cara. Gritou novamente: "Quero o meu roupão". E depois começou a chorar. Desesperadamente.
Passados dez minutos, perdi a paciência: agarrei na personagem pelos colarinhos, enfiei-a na boca e engoli-a. Pronto, já não havia personagem para ninguém.
Ri-me, aliviada: o roupão sem fim, agora, era só meu.