segunda-feira, 6 de julho de 2009

Das raízes

A propósito de um post da Pitucha sobre esta notícia.

Uma mulher de nome Maria decidiu cortar as raízes que trazia nos pés. Ora, não era costume as pessoas andarem por aí a cortar as raízes dos pés, na verdade nunca se tinha ouvido falar de tal prática. Diga-se que a mulher de nome Maria também não gostava propriamente de cortar: parecia-lhe um verbo demasiado definitivo e tinha medo do arrependimento. Contudo, a mulher de nome Maria estava muito habituada a usar a tesoura no seu dia-a-dia e não via nenhum problema em cortar também as raízes.
Tinha, por exemplo, o hábito de cortar as unhas das mãos. Outras mulheres e outros homens também cortavam as unhas das mãos, mas algumas pessoas roíam-nas simplesmente e outras deixavam-nas crescer até que elas se partissem.
A mulher de nome Maria preferia cortar as unhas das mãos e fazia-o com alguma regularidade. Também não se importava de cortar as unhas dos pés, embora tal implicasse um esforço físico maior que exigia desenterrar as pernas, lavar os dedos, cortar as unhas onduladas e voltar a enterrar as pernas até aos joelhos. Ora, isto era extremamente custoso, além de que ninguém via as unhas dos pés da mulher de nome Maria por estarem precisamente enterradas com os ditos pés.
Em dias especiais cortava também os cabelos. Nessas alturas não cortava o cabelo a si própria: ia ao cabeleireiro e uma outra pessoa cortava o seu cabelo. Outros seres humanos também iam ao cabeleireiro cortar o cabelo, mas também havia quem cortasse o cabelo em casa, em frente ao espelho.
Naquele dia, porém, a mulher de nome Maria decidiu cortar as raízes. E sem dramatismos, agarrou na tesoura e cortou.
O corte em si não foi doloroso, porque não implicava nenhuma cirurgia, apenas uma manobra parecida com a poda, porque as raízes, como todos sabemos, são como os cabelos e as unhas: voltam a crescer indefinidamente e, em excesso, não fazem falta.
A mulher de nome Maria disse ainda: "Já não pertenço a esta terra" e deitou a terra fora. Como não podia sobreviver sem terra, escolheu uma terra nova para passar o tempo. Escolheu também um vaso novo, de terracota. Deitou o antigo fora, que era da Vista Alegre. Empurrou o vaso novo até à janela, para apanhar mais sol.
Depois atirou-se para dentro do vaso e enterrou-se até aos joelhos.
As outras mulheres e os outros homens ficaram muito indignados. Disseram que ninguém podia cortar as raízes, por isso, esquecendo-se das suas outras raízes católicas, atiraram pedras à mulher de nome Maria, que se estava profundamente nas tintas, porque o seu lugar ao sol estava longe dos seres humanos indignados e as pedras não a alcançavam.
Ora, o narrador e o autor deste texto jamais cortariam as suas raízes, apesar de terem mudado de terra há cerca de cinco anos. Gostam de ter as mesmas raízes do início. A mulher de nome Maria não. Nós - autor e narrador - não vemos problema nisso.
Até porque a pátria, como disse um certo mestre desta pátria, é a nossa língua e a mulher de nome Maria, falando português, gostava mais de ser brasileira. Por causa do samba, imaginamos. Nós compreendemos e aceitamos.
Pena a mulher de nome Maria estar enterrada até aos joelhos. Senão, até podia sambar como os brasileiros.
Mas assim, enterrada como está, não pode. Deve ser estranho uma pessoa ser estrangeira na sua própria terra.
O que vale à mulher de nome Maria é o piano.
E a ortografia, que é milagrosamente a mesma.