Ao meu lado vem sentada uma rapariga e classifico-a de estranha. Senta-se muito direita e sacode a cabeça repetidamente com movimentos curtos, violentos, intermitentes. Traz o pescoço sempre tenso, a cabeça presa, prensada, pesada. Ao mesmo tempo vem a ler qualquer coisa. Não olho directamente para ela mas interesso-me pelo gesto repetido.
Interpreto.
Talvez corra no seu cérebro um pensamento eléctrico e haja um curto-circuito a meio que provoque pequenos choques na cabeça. Ou um qualquer brainstorming de electrões ferozes, ou uma frase negativa a circular no sangue, ou até mesmo um mandamento. Não matarás, não cobiçarás, não falarás, não pensarás em coisas boas.
A testa enrugada da rapariga lembra-me os rochedos do Cabo da Roca, imponentes, impenetráveis, inultrapassáveis. Os olhos movem-se irrequietos: abrem, fecham, semicerram. De novo sacode a cabeça. Adivinho sofrimento e tenho pena da rapariga. Se tivesse alguma fé que não somente a fé na sorte, rezaria por ela, acenderia uma vela, sacrificaria uma virgem, uma vaca, qualquer coisa.
Ganho coragem e resolvo espreitar o livro que lê (talvez a leitura seja a culpada pelo gesto repetido, todos nós vibramos quando lemos). Vejo linhas, símbolos e a única expressão inteligível é "molto fortíssimo". Reconheço uma pauta de música e vem-me à cabeça o solfejo, a professorinha ao piano e nós muito pequenos de flauta da boca, a clave de sol que ninguém sabia desenhar.
A rapariga apanha-me em flagrante e, de repente, é como se não falássemos a mesma língua. Finjo-me interessada: "É bonita a música?" e ela ri-se surpreendida. Diz que sim com a cabeça e não tem mais palavras para mim. Toda ela é melodia, daí o curto-circuito no corpo.
Interrompo novamente: "É uma música triste?" e ela olha-me como se nunca tivesse pensado nisso. Perdoo-a: "Sente, logo não pensa". Resolve dizer que não e fecha o livro. Já não sacode a cabeça e é nessa altura que vejo a caixa negra aos seus pés: parece resistente e tem a forma de um violino.
Dá-se um curto-circuito na minha cabeça. Não falamos a mesma língua, por isso não digo nada. Ouço um violino por dentro e sofro. Ordeno a mim própria: Não pensarás. Na paragem seguinte, a rapariga pega na caixa e sai do metro. Traz o livro debaixo do braço e parece-me feliz. Concluo: sofre mas não sabe.
Interpreto.
Talvez corra no seu cérebro um pensamento eléctrico e haja um curto-circuito a meio que provoque pequenos choques na cabeça. Ou um qualquer brainstorming de electrões ferozes, ou uma frase negativa a circular no sangue, ou até mesmo um mandamento. Não matarás, não cobiçarás, não falarás, não pensarás em coisas boas.
A testa enrugada da rapariga lembra-me os rochedos do Cabo da Roca, imponentes, impenetráveis, inultrapassáveis. Os olhos movem-se irrequietos: abrem, fecham, semicerram. De novo sacode a cabeça. Adivinho sofrimento e tenho pena da rapariga. Se tivesse alguma fé que não somente a fé na sorte, rezaria por ela, acenderia uma vela, sacrificaria uma virgem, uma vaca, qualquer coisa.
Ganho coragem e resolvo espreitar o livro que lê (talvez a leitura seja a culpada pelo gesto repetido, todos nós vibramos quando lemos). Vejo linhas, símbolos e a única expressão inteligível é "molto fortíssimo". Reconheço uma pauta de música e vem-me à cabeça o solfejo, a professorinha ao piano e nós muito pequenos de flauta da boca, a clave de sol que ninguém sabia desenhar.
A rapariga apanha-me em flagrante e, de repente, é como se não falássemos a mesma língua. Finjo-me interessada: "É bonita a música?" e ela ri-se surpreendida. Diz que sim com a cabeça e não tem mais palavras para mim. Toda ela é melodia, daí o curto-circuito no corpo.
Interrompo novamente: "É uma música triste?" e ela olha-me como se nunca tivesse pensado nisso. Perdoo-a: "Sente, logo não pensa". Resolve dizer que não e fecha o livro. Já não sacode a cabeça e é nessa altura que vejo a caixa negra aos seus pés: parece resistente e tem a forma de um violino.
Dá-se um curto-circuito na minha cabeça. Não falamos a mesma língua, por isso não digo nada. Ouço um violino por dentro e sofro. Ordeno a mim própria: Não pensarás. Na paragem seguinte, a rapariga pega na caixa e sai do metro. Traz o livro debaixo do braço e parece-me feliz. Concluo: sofre mas não sabe.