segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Rinofaringite

Ouviu os ouvidos estalarem como balões e uma palavra perdida no ar. Repetiu de si para si: "Rinofaringite" e achou o título adequado à doença. Falaram-lhe do período de incubação e, nessa noite, ela sonhou com cubos. De manhã doíam-lhe os olhos e viu 54 quadrados de cores diferentes. Contou-os várias vezes como quem conta carneirinhos nas noites de insónia. Eram cor-de-rosa, cor-de-laranja, cor-de-céu, cor-de-árvore, cor-de-sol, cor-de-nada, tinham uma textura lisa e simpática, tocava-se-lhes e tinha-se frio. "São feitos de azulejo", concluiu. Nesse momento percebeu que o seu quarto era um cubo mágico e rodou-o incansavelmente à procura da solução. Depois tossiu e a boca jorrou quadrados multicolores. Na terceira noite perdeu a conta aos dias por os algarismos terem saltado dos lábios para o espaço. Olhava para os dedos e não sabia quantos tinha.
Certo dia saltaram-lhe da boca todas as letras possíveis e não sobrou uma palavra, uma sílaba, um som. As cordas vocais calaram-se em estado de choque e ela imaginou o vento para que o silêncio não fosse total. Finalmente, pela primeira vez em dias, levantou-se. Dobrou-se sobre si própria e da boca saíram cubos. De repente, vomitou a própria alma. Saiu cúbica e maleável com a flexibilidade impossível das serpentes. O corpo reconheceu a alma, era o cubo mágico da sua infância e amou-a por isso. No dia seguinte eram um só e ela cuspiu para o chão por prazer.
Anos mais tarde, numa manhã de sol, corpo e alma estalaram por dentro. Pensou: "Sou um cubo mágico" e olhou para dentro de si. Viu seis faces de si própria, cada uma com a sua cor. Era a sua solução matemática. Respirou fundo e o ar circulando por dentro como o vento circulava por fora lembrou-a da rinofaringite. Havia algo de terapêutico naquela palavra, uma espécie de viagem ao centro do eu. Uma doença em forma de cura.