A pessoa que queria ser personagem entrou no gabinete sem bater à porta e sentou-se antes mesmo de o escritor lhe indicar a cadeira. Apercebendo-se da existência do aquário das personagens mínimas, a pessoa bateu no vidro, assustando-as. O escritor tossiu incomodado e esticou o peito ao mesmo tempo para ganhar em altura, abanou as pernas nervosas, quase gritou:
- Diga!
O outro tirou calmamente o cachecol como quem se instala no consultório do doutor.
- Vim aqui para dizer que gostava de ser uma das suas personagens.
O escritor tirou desenvolto um bloco de notas da primeira gaveta à sua esquerda. Era um bloco de capa negra e por dentro tinha apontamentos vários que apontavam várias direcções, escritos a várias cores e presumivelmente em dias diferentes. O autor apressou-se a encontrar uma folha em branco e, de repente, lá estava ela, muito direita, muito virgem.
- Uma biografia, certo? E para quando queria o trabalho?
O escritor escreveu ao centro "Biografia" e à direita: "Para sair em". Ficou de caneta em punho à espera da resposta.
- Não, uma biografia não. Já me chega a minha vida. Queria passar para um livro.
O escritor encolheu os ombros, era uma espécie de tique nervoso perante o capricho dos clientes.
- Uma ficção sobre a sua biografia, é isso?
O outro demorou a decifrar o género de trabalho que o outro lhe propunha e depois pôs-se a abanar a cabeça, as mãos, o corpo, a alma.
- Não, nada disso! Esqueça a minha existência. Eu queria ser uma personagem sua, ponto final. Uma daquelas que tem no aquário, pronto, só isso. Deixar de ser isto e passar a ser aquilo.
- Uma personagem minha?
- Sim, uma personagem sua. Gostava de passar para os seus livros. Mas não aos bocadinhos, percebe? Gostava de passar para o papel completamente, na íntegra, de um lado para o outro, em harmonia. Gostava de ser o que você quiser.
- Desculpe, mas isso não faz sentido nenhum!
- Não faz mal! Há uma altura na vida em que nos estamos a marimbar para o sentido, percebe?
- Não, não percebo! E você também não! Vejamos: eu não posso fazer de si uma personagem!
- Ora essa! Então fez dos outros todos personagens e de mim não pode?
- As minhas personagens são inventadas, não existem.
- E como as inventou você?
- Olhe, inventando! Mas não vou buscar pessoas para fazer delas personagens. Não sou nenhum ilusionista.
- Pois digo-lhe eu, que conheço todo o seu trabalho - todo o seu trabalho, percebe? - que há muita gente por aí que podia ser bem as personagens dos seus livros.
- Só que não são!
- Pois não! Falta-lhes aquele toque artístico que você dá à vida!
- Justamente!
- Daí que eu queira ser uma personagem sua!
O escritor riu-se e no seu riso havia um misto de ironia e deleite. Recostou-se na cadeira almofadada e ficou a contemplar a pessoa que queria ser personagem. Disse:
- Para ser personagem e não pessoa, teria de o matar.
- Evidentemente! Força!
O escritor riu-se novamente. Sentia-se subitamente todo-poderoso, era incrível que alguém quisesse morrer por ele. Disse de si para si: "Sou eu que mando na vida!". O outro interrompeu-lhe inesperadamente o pensamento.
- Não, você não manda em nada! É uma pessoa como outra qualquer!
- Como outra qualquer? Você acabou de dizer que morria por mim!
- Por si, não! Pelas suas personagens!
- É o mesmo! Eu sou as minhas personagens! Aliás, sou mais do que elas, porque sou o criador!
- Que disparate! Você é uma pessoa como outra qualquer.
- Sou o criador!
- Mas falta-lhe na sua vida aquele toque artístico que você dá às personagens.
- E esse toque é meu! E é tão bom que você morria por ele!
- Exacto! Eu posso dar-me ao luxo de ser uma personagem sua. Você é que não!
O escritor ficou confuso, expulsou a pessoa do seu gabinete e decidiu não a matar. Nessa noite bebeu toda a vida num só trago, teve uma crise de fígado e outra existencial, pegou na pistola e matou-se.
Era um dia histórico: ficção e realidade uniam-se em plenitude.
E as personagens saíram à rua para festejar a vitória.