segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O carrossel dos dias

Está quase. Um passo em frente e não tarda já estamos do outro lado, nada mau. Gosto desta ideia de passar o ano, de ver os foguetes a estourar ao longe e gente em cima das cadeiras. Ou alemães a mergulhar no rio. Ou então só o Herman José na televisão. 10, 9, 8, uma excitação, 4, 3, 2, pára tudo, zeroooo. Uma rolha contra o teto, champanhe por todo o lado, borbulhinhas no céu-da-boca, beijinhos, abraços, bom ano! E, pronto, já estamos no ano seguinte, a começar qualquer coisa que ainda não se sabe ao certo o que é, mas, se for uma coisa boa, que dure para sempre. Se for má, que acabe logo. Gosto de estar no carrossel dos dias, cada um no seu cavalinho, para baixo e para cima, sempre em frente. No final, estamos todos tontos por causa dos pulos e do champanhe, bem bom. Também gosto de olhar para trás só para ver as coisas ao longe. E, se puder ser, ao sabor de doze passas de uva, diz que é tradição. Blaargh, não gosto nada de comer doze passas de seguida, mas como na mesma. Felizmente sou apoucada, não tenho doze desejos. Tenho só um e é sempre o mesmo. Digo-o doze vezes seguidas, tipo mantra. E depois fico por ali noite fora numa grande tontura, a dar no champanhe. Ou então não. A festa acaba cedo, dorme-se sobre o assunto, na madrugada do dia 1, o primeiro dia de todos. Também gosto desta expectativa, deste tempo de espera que passa mas não passa, nunca mais é hora. Fazer o check-in online, fazer a mala, imprimir o bilhete, apanhar o autocarro, descobrir que me esqueci disto e daquilo, que chato, ir para a fila do drop-off, tirar os sapatos, apitar no raio-X, desejar Bonnes fêtes aos seguranças, entrar no avião, adormecer no primeiro parágrafo do primeiro dia, acordar com as palavras: Senhores passageiros, estamos a descer para Lisboa. Atrasar o relógio. Olhar pela janelinha e ver as nuvens e depois as luzinhas e depois as casas. É tudo tão mais bonito em Lisboa, parece que até vejo melhor ao longe, que engraçado. Um passo em frente e não tarda já estou do outro lado.
Mas enfim.
Para variar, já estou com o carrossel à frente dos bois.
Ainda vou na parte de apanhar o autocarro. Que seca... O tempo passa, mas não passa.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Emiliana Torrini

Se eu pudesse, também havia de cantar assim, a sacudir a cabeça, deve ser tão bom. A Emiliana tem nome de italiana, mas canta com sotaque islandês. Estive mesmo à frente dela um dia destes:


Emiliana Torrini, Botanique, Bruxelas

Dava para lhe agarrar as pernas, mas eu não lhe agarrei as pernas, não sou uma fã enlouquecida. 
Não sou, pois não? 
Claro que não. 
A Emiliana estava mesmo à minha frente e era muito mais alta do que eu, porque é maior do que os comuns mortais e também porque estava em cima de um palco. A Emiliana canta de olhos fechados e a sorrir, acho que está noutro lado qualquer. Eu gostava de ir a esse lugar secreto com a Emiliana Torrini, mas acho que ela não leva lá ninguém, precisamente porque é um lugar secreto.
Ainda não fui à Islândia, mas hei de ir.
Para já vou ler o último do Valter Hugo Mãe.
É o que há.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O que eu faço por chocolate à sexta-feira

Nada mau, a minha tradução já vai a meio. Esfrego as mãos porque tenho frio e também uma nova ideia. 
A ideia é: Acho que mereço um chocolate.
Abro o porta-moedas para contar as moedas.
Oh, que chato, afinal não tenho moedas para ir à máquina.
Penso: "Não faz mal, posso ir ao café e pagar com o multibanco".
Nice!
Vou aos pulinhos até ao elevador. 10, 9, 8 e por aí fora até ao chão.
Afinal esqueci-me do cartão de identificação. Sem cartão de identificação, não dá para sair do café, por isso volto para trás.
1, 2, 3 e por aí fora até ao 10.°. Onde é que ele está? Talvez no bolso do casaco.
Aaah, cá está ele. Agarro-o pelos colarinhos, regresso à cafetaria.
10, 9, 8 até ao chão.
Damm!
Afinal a cafetaria está fechada.
Penso: "Não faz mal, vou à papelaria." Na papelaria vendem-se papéis e também chocolates enrolados em papel. Estará fechada?
Suspense. Dobro a esquina.
Maravilha! A papelaria está aberta.
Fico 10 minutos indecisa. Este assim com noisettes ou aquele com pistaches fraîches? Mousse de café ou praliné croustillant? 
E se levar todos?
É melhor não.
Decido escolher os dois melhores e depois o melhor dos dois, sempre facilita a escolha. Fico com o de noisettes e o de praliné na mão.
Escolho o de noisettes.
Vou pagar, sorrisinho no canto da boca.
Aviso ao balcão: "Multibanco não funcemina"

What?

Não há nada a fazer, por isso desisto.
Devolvo o chocolate à prateleira e regresso ao gabinete. 1, 2, 3 até o 10.°.
Penso: "É da maneira que ando de um lado para o outro e poupo em calorias."
Parece que até já me sinto mais ágil, estou cheia de ganas de traduzir o resto do documento.
Olhem para mim a trabalhar com afinco.

Eu não preciso de chocolate para nada.
Nem sequer gosto de chocolate.
Nunca gostei.

Blaaargh! Que enjoo!
Há gente que não passa sem chocolate.
Não compreendo.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A letra morta das canetas

Passa-se algo com as minhas canetas.
Em poucas semanas já finaram umas quatro ou cinco e a morte é sempre súbita. Zás, morreu. Falta-lhes o fôlego e sai-lhes um último suspiro de tinta, a sílaba derradeira, é triste. Resta-me sacudi-las na esperança de que voltem à consciência, mas isso nunca acontece. Ficam para ali mudas e vazias, já não há mais caneta para ninguém.
Isto incomoda-me bastante, sobretudo porque me morrem sempre nas mãos, às vezes mancham-me os dedos, é aborrecido.
À primeira vista trata-se de mortes naturais, mas esta quantidade considerável de canetas moribundas não me parece nada natural.
Fiquei mais atenta à minha escritura e começo a desconfiar da minha mão direita.
Se calhar os meus dedos andam a assassinar canetas e eu ainda não dei por isso. Sugam-lhes a tinta às escondidas. Ou asfixiam-nas assim: polegar contra indicador.
É bem possível.
Mas não há como provar isso.
Já se sabe que, na escrita, a justiça ficou no tinteiro. Não passa de letra morta.
A história é escrita pelos vencedores.

E em terra de canetas, quem sabe escrever é rei.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Yáááá Bogotáááá

Se forem a Bogotá [giroflé giroflá] deviam passar por lá [giroflé-flé-flá].
[O giroflé aqui é banda sonora para rotativos.]

[Sei lá... Apeteceu-me.]

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Jornal de Letras - Viagem no tempo e no espaço


O meu nome é Annie Person, sou a companheira do Doctor Who numa geringonça não identificada que voa em todos os tempos e espaços. Eu sou uma pessoa do passado a visitar o futuro, mas às vezes também sou o contrário. Quando calha, sou uma pessoa do futuro a visitar o passado, depende. Neste momento estou a escrever no meu caderno do passado ao lado de um homem com cara de porco. Eu escrevo: As pessoas do passado são feias.
(Continua no "diário" [contracapa] do JL desta quinzena - 11.11.2013-26.11.2013)
 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Albert Camus

Se a vida não fosse absurda, o Albert Camus fazia hoje 100 anos. Felizmente, a vida é mesmo absurda e o Albert Camus escreveu grandes romances sobre isso (ou apesar disso) (ou além disso).
O Albert Camus é eterno. Continua de carinha laroca com três linhas na testa e cigarro ao canto da boca. Assim:
 
 
Eu conheci as palavras de Camus antes de lhe conhecer a carinha laroca com três linhas na testa e cigarro ao canto da boca. Agora que penso nisto, é como se o tivesse conhecido online, eu e o Camus a teclar no messenger. Eu pergunto: R U there? Ele responde:
Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas. J’ai reçu un télégramme de l’asile: « Mère décédée. Enterrement demain. Sentiments distingués. » Cela ne veut rien dire. C’était peut-être hier.
 
Li o Estrangeiro na idade certa. Tinha 16 anos, acho, e andava com o moço de mão dada pela rua. Depois voltei a ler o Estrangeiro na idade certa. Tinha 20 e poucos. O Estrangeiro e eu éramos cúmplices, ele ia ao volante e eu ia no lugar do morto. Depois voltei a ler o Estrangeiro na idade certa. Tinha 30, ou quase 30, e desta vez até o li em francês, oh là là ! Nessa altura, juntámos os trapinhos, passámos a ser roommates. Ele dorme na casinha dos livros e eu durmo com outro homem numa cama king size. Isso é-lhe indiferente. O Estrangeiro não gosta de ninguém. Está-se nas tintas para mim.
Who cares?
Eu também me estou nas tintas para ele.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Amor ortográfico: Notas peganhentas

A propósito da proteção de dados pessoais, gostava de escrever umas notinhas sobre notinhas. Há gente que usa notinhas para isto e para aquilo, daqueles post-it de colar na testa dos armários, é um hábito algo desconcertante. Lembretes e recados, números de telefone, listas de compras ou de ideias, sticky notes de todas as cores e feitios que acabam enroladas a um canto quando perdem o norte e também a cena sticky. Eu sou dessas pessoas desconcertantes que usam notas peganhentas para tudo e mais alguma coisa e tenho este tique nervoso de arranjar bloquinhos novos a toda a hora, porque aquele é roxo e este aqui é redondo e hei de guardar as minhas notas até ao fim, mesmo as que ficarem por escrever.  É óbvio que na era da técnica, as minhas notas peganhentas não valem um, porque são uma coisa do passado. Eu sei disso perfeitamente, mas a verdade é que gosto mais das minhas notas do passado do que da era da técnica. Quando encontro uma nota enrolada no bolso é como se ganhasse uma memória na rifa, fico cheia de esperança e expectativa. O que estará dentro desta nota? Talvez o nome de uma pessoa sublinhado três vezes ou um grito: Marcar dentista!, um pedido: responder mail 30/10, uma ordem: Ligar pais. Felizmente sou uma pessoa do futuro e já me habituei às Sticky Notes do Windows 7. Tenho umas quantas no Desktop e até dá para mudar de cor e de tipo de letra. Neste momento tenho uma nota pequenina verde, outra grande e azul e outra intermédia e cor-de-rosa. Eu bem tento brincar com as cores e os tamanhos, mas as notas do futuro não têm piada nenhuma. Além de não se pegarem aqui e ali, também não se perdem e isto é muito aborrecido. As sticky notes verdadeiramente sticky agarram-se ao que não devem e andam por aí descoladas e perdidas. Eu gosto de encontrar uma nota no fundo de uma gaveta: Reservar, 5 pessoas, 20h.
Tenho pelo menos dois blocos clássicos de post-it amarelos e dois blocos a imitar rolos de fotografia, vários bloquinhos pequeninos com setinhas, seis blocos a imitar balões de diálogo, um conjunto de oito blocos da Lotta Jansdotter com folhinhas de árvore e mochos, e tenho ainda um outro redondo com o Ampelmann parado, tipo sinal vermelho para os peões. Gosto aos montes das minhas notas peganhentas. E também gosto de notas peganhentas aos montes. No outro dia vi mesmo um monte de notas peganhentas. Não era um bloco, mas sim uma torre de post- it: ia do chão até à minha cintura, não estou a brincar. Ainda não tinha visto o preço e já estava disposta a pagar montes de notinhas pelo monte de notinhas, mas depois pensei no tamanho do meu rabo e achei que a torre de notas adesivas ia passar os dias a cair ao chão. Então contornei o tique nervoso e decidi que a torre merecia outro destino. 
O que eu mais gosto nas minhas notas peganhentas é a certeza de que elas não vão ser lidas pelos serviços secretos americanos, a não ser que os senhores venham enfiar as mãos nos meus bolsos, o que até pode vir a acontecer, encontrar um americano no bolso do meu casaco. Na era da técnica tudo é possível. Quando olho para as minhas notinhas, fico logo com uma nostalgia de pessoa velha e meto as mãos no bolso. Eu também sou uma coisa do passado.
Agarro-me ao que não devo e também ando por aí descolada e perdida.
 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Karateca na Kolômbia

Se estiverem por Bogotá, não deixem de ver la chica karateca. A apresentação será feita pelo lutador tradutor Jerónimo Pizarro e por Sandra Magalhães, da embaixada de Portugal.
Clicar na imagem para ficar mais maior grande:


Mais informações sobre o 7° Festival de Libros para Niños y Jóvenes aqui.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Amanhã, o fim de Portugal em Bruxelas

Amanhã, lançamento de Despaís na Orfeu, às 18h.
Conversa sobre o fim de Portugal com o autor Pedro Sena-Lino.


http://www.wook.pt/ficha/despais/a/id/14922725

Livraria Orfeu
43, Rue du Taciturne - 1000 Bruxelas

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Desfiladeiro em pessoa

O que vale é que isto de voltar à cidade bruxa já nem aquece nem arrefece, é igual ao litro, a pessoa encolhe os ombros e a cabeça, tanto faz, é-me indiferente, o mesmo lusco-fusco, as mesmas pessoas na rua, a mesma rua, a mesma janela por onde vejo o lusco-fusco e as pessoas e a rua, as coisas sempre iguais, o que até é bom, é muito bom, é uma maravilha, no fundo chegar a casa deve ser isto, as coisas como antes, o sofá na penumbra, a manta caída, um tomate podre no frigorífico e afinal não está tudo igual, qualquer coisa apodreceu, que engraçado, e as plantas também murcharam, coitadas, uma sensação tépida de se estar vivo mas não assim muito, porque não sinto nada além de um certo cansaço de andar por aí a arrastar as malas e também esta pedra fria e bem polida que é o meu coração e isto até nem deve ser uma coisa má, eu a bem dizer até gosto de ser este fenómeno esquisito da natureza, este acidente geográfico de espantar ao longe, um desfiladeiro entre duas montanhas que nem conheço bem, porque sou precisamente um desfiladeiro em pessoa ou então uma falésia a cair a pique, a resistir ao vento, e isto até me dá jeito, porque da minha falésia vê-se o mar que também é sempre igual ao longe e andam por aqui gaivotas e também mexilhões, sempre dá para sobreviver e assim como assim eu não moro aqui. Eu moro dentro da cabeça.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Jovens Criadores 2013


Jovens inexperientes procuram público para a Mostra Nacional em Coimbra!
Eu lá estarei no sábado a partir das 16h para o Café Literário.
Apareçam e divulguem!



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Narrador omnisciente

O narrador omnisciente andava amuado com aquela coisa da literatura. Ultimamente até ler livros o aborrecia. Começava a ler um texto com a perspetiva de que ia chegar a meio do texto e depois ao fim do texto para poder começar a ler outro texto. De tão previsível, a leitura começou a dar-lhe muito sono e o narrador omnisciente acordava a meio da tarde com um fio de baba que ia do lábio inferior até ao sofá.

E depois não era só isso. Escrever, verdade seja dita, também não era propriamente um desporto radical, nem sequer uma viagem pelo desconhecido. Escrever era só uma atividade de ficar sentado muitas horas a entrelaçar uma coisa que nem era a sério. Era como fazer tricô, embora de uma forma menos verdadeira, porque no final não ficava com um cachecol para o proteger do frio.

Acresce a isto que o narrador omnisciente já sabia tudo e mais alguma sobre as suas personagens e candidatos a personagens. Se comiam pão com queijo, se dobravam as meias assim ou assado, se gostavam de falar ao telefone, se alguma vez tinham atropelado um gato, se transpiravam das mãos, se tinham um tique nervoso, etc, etc, aquelas coisas dos seres humanos. Tudo sabia o narrador omnisciente e isto, apesar de extremamente valioso para a sua posição confortável de domínio psicológico sobre as personagens, a certa altura tornava-se um bocado entediante e a paixão pela coisa literária esmorecia, ficava assim pequenina e muitas vezes nem se dava por ela, era só um pesar incomodativo como, por exemplo, uma dor no rabo.

Isto da dor no rabo vem a propósito porque o narrador deste texto andava precisamente com uma dor no rabo de tanto estar sentado. Certo dia, o narrador omnisciente, cansado de viver dentro de palavras enclausuradas em textos, desamuou, saiu da casca e foi para a rua passear, coisa que já não fazia há bastante tempo. Caminhava de mãos atrás nas costas como se estivesse de asas recolhidas e a certa altura, precisamente por não ter asas, tropeçou, estatelou-se no chão e partiu um dos últimos dentes, os lábios incharam como balõezinhos. Mas pronto, já se sabe que os narradores omniscientes, justamente por estarem convencidos de que a sabem toda, são desavisados. O narrador voltou para casa com os seus lábios-balão e tirou o Guerra e Paz da prateleira de cima. 

Era um livro bem grande.

Sempre dava para exercitar os braços.

domingo, 11 de agosto de 2013

Orange marmalade

Eu nunca gostei de doce de laranja, porque o doce de laranja não é doce, é uma coisa amarga, e eu não gosto de me sentir enganada. Há anos que não toco em doce de laranja. Mas no outro dia, não sei porquê, senti-me mais velha e decidi tentar outra vez. Foi logo de manhã, sem pensar muito, num rasgo de curiosidade e ousadia. Uma amiga tinha trazido o frasco de Londres, very typical. Era um frasco gorducho. Trazia o nome Orange marmalade na tola e dizia por baixo since 1885, que é sempre uma longevidade que impõe algum respeito, são várias gerações de marmelada. Abri o frasco, barrei o pão e trinquei. De novo um arrepio na espinha acompanhado de uma dor aguda no céu-da-boca, que coisa horrível. Continuo a odiar doce de laranja. Fechei o frasco e devolvi-o ao frigorífico. A minha vida, felizmente, continuou como dantes, doce e não amarga.  
Há coisas que realmente não mudam. 
E eu, apesar de não ser pêra doce, sou esta doçura de pessoa. Não há nada a fazer.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Um pombo morto


Hoje passei por um pombo morto.
Estava no meio do passeio, a cabeça tombada para o lado e o bico entreaberto. A meio de uma frase, de uma palavra.
Se calhar era um pombo-correio e nunca chegou ao destinatário.
Fiquei tristonha. 
Percebi que estava tristonha porque antes estava feliz e dei logo pela diferença. 
(Antes do pombo = feliz; depois do pombo = tristonha)
Uma pena abanava o vento.
Não, perdão. Ao contrário: 
O vento abanava uma pena.
Parecia um aceno, um voo de despedida. Uma pena pequenina numa das asas.
Tadinho, tive pena do pombo.
(Olha, «pena» e «pena» são palavras homónimas.)
Logo eu, que por acaso odeio pombos, odeio pessoas que alimentam pombos. Os pombos têm cara de parvos.
Se houvesse um desporto de «tiro ao pombo», eu inscrevia-me e vestia-me assim à coronel tapioca. Com uma pressão de ar nas mãos, de enfiar a bala lá dentro. Apontar, suster a respiração, disparar: PUM!
Quando passo por pombos, aponto e sustenho a respiração. Infelizmente não disparo, porque não tenho licença de porte de arma e eu não faço nada fora da lei, sigo as regras todas. 
Sou um bom soldadinho, acho.
Quando estou dentro de um carro e os pombos andam assim feitos parvos a bicar a estrada, solto uma gargalhada de bruxa má e ponho o pé na tábua. Zás! Faço grandes rasas aos pombos, mas acho que o meu objetivo não é matá-los. (Acho.)
É muito chato isto de morrer, de chegar ao fim do corpo. Fiquei mesmo com pena do pombo.
(Ah, que engraçado: «pena de morte» é outro tipo de pena.)
Depois apercebi-me de que o pombo, assim tombado para o lado, até era bonito. Na verdade, era lindíssimo e essa beleza feia de voo interrompido emocionou-me.
A beleza cruel do cadáver.
Depois segui caminho e pensei que os pombos são muito mais bonitos quando estão mortos do que quando estão vivos. Quando andam assim cheios de vida a criar imundície em cima das estátuas, não têm piada nenhuma. São horríveis.
Agora fiquei com a pressão de ar na cabeça.
(Memórias de infância: Eu era sempre a última a disparar a pressão de ar. Acho que era por ser a mais pequenina.)
Se houvesse um campeonato de tiro ao pombo, inscrevia-me nos campeonatos da região flamenga e não nos da região francófona, porque os francófonos são moles, não devem dar luta nenhuma.
Nunca tentei disparar contra animais a sério. Daqueles assim com asas. 
PUM!
Era vê-los rebentar, penas por todo o lado.
BUWUWUWAHAHAHA (bruxa má).

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Líricos, porcos e rascos


Relativamente a este presente sem futuro, penso que a proposta do Cavaco Silva de juntar os três porquinhos na mesma casa até faz sentido, apesar do lirismo da coisa. Por vezes, o lirismo faz sentido. Assimcomoassim, a alternativa era fingir que havia alternativa. Os três porquinhos, que tanto chafurdaram na lama, que se cheguem à frente e cumpram a sua parte. É a única maneira de tratar os porquinhos como porcos crescidos, que é o que eles são. Eles que enfrentem o lobo mau e que prestem contas apontando o focinho, não para as próximas eleições, mas para o futuro a longo prazo.
E era só isto que eu tinha para dizer sobre este assunto.
Ah! A propósito de futuro, gostava só de acrescentar que, às vezes, para me distrair, imagino uma pessoa do futuro a olhar para o presente e isso funciona sempre, porque efetivamente distraio-me e, nos dias melhores, farto-me de rir.
Por exemplo, eu acho que uma pessoa do futuro ia ter um ataque de riso de ir às lágrimas se (ou)visse um discurso do Cavaco Silva, porque a voz e a postura do Cavaco Silva, para uma pessoa - digamos - do século XXII, devem fazer lembrar a voz e a postura de uma marca de robôs muita rasca, que um dia (no futuro do futuro) se tornará vintage, mas na atualidade do futuro é só uma marca muita rasca de mandar para a sucata e isso deve ser cómico, especialmente se o emissor for um Chefe de Estado. 
E então pus-me a pensar que se calhar o Cavaco Silva é mesmo um robô muita rasca que veio do futuro mais ou menos próximo com uma missão qualquer que nós ainda não percebemos qual é e isso dá-me logo vontade de rir outra vez, o que é muito infantil da minha parte, eu sei, tendo em consideração que a crise política em Portugal é um assunto extremamente sério.
E portanto, olhem, acabou-se a brincadeira.
Nunca mais brinco.


NUNCA MAIS.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Um homem zangado

Abrem-se as cortinas. Entro no elevador.

Um homem muito zangado entra logo a seguir. Fecham-se as cortinas.

Conheço este homem há anos, mas só de vista.

Não sei como se chama nem o que faz. Sei que é italiano e agora também sei que trabalha no nono andar, porque o senhor carrega no botão com o bonequinho 9.

Eu olho para o colega zangado, mas ele não olha para mim, porque a minha existência é toda ela insignificante e o homem está zangado com a vida em geral e com a minha existência em particular. Olho para o senhor outra vez e ele dá um toque de sobrancelhas género: Nunca viste, ó?!

Eu nunca vi pessoa tão zangada como este colega. É uma pena este senhor andar tão insatisfeito, parece-me um desperdício de paisagem protegida. É que este italiano é uma paisagem natural bem bonita de se ver, tem uns olhos grandes e azuis para dar uns mergulhos no verão e uns ombros largos que devem fazer boa sombra. Assim, a olho nu, não tem propriamente razão para estar tão insatisfeito, até porque as pessoas zangadas costumam ser muito feias. Eu, por exemplo, se fosse muito feia, também andava para aí zangada. Deve ser chato ser muito feio.

Eu e o colega italiano voamos juntos, lado a lado. O colega não diz Bom dia!, mas eu não levo isto a peito. Parece-me na verdade bastante coerente, tendo em conta o perfil deste ser humano zangado: nenhum dia é um bom dia. São todos péssimos, uns atrás dos outros, não há dia que se aproveite. Eu também não digo Bom dia!, só mesmo porque sou mal-educada. Eu e o homem zangado voamos em silêncio, não olhamos um para o outro. É como se um de nós não existisse. Ou eu ou ele, não sei bem.

O homem olha-se ao espelho e ajeita a gola da camisa. Eu olho para os meus pés, porque os meus pés são realmente impressionantes e estas sandálias são qualquer coisa.

0, 1, 2, 3, 4, 5, 6 andares. As cortinas abrem-se e eu saio. O homem carrega imediatamente naquele botão assim  -><- de fechar as cortinas rapidamente, porque a vida são dois dias horríveis e não há tempo a perder. As cortinas fecham-se abruptamente. Eu fico triste e zangada com o homem zangado.

O colega italiano deve ganhar sempre o jogo do sério: nunca se ri. Vejo-o muitas vezes aqui e ali: na cantina, na cafetaria, nos corredores, no elevador. Nunca está contente. Quando fala com alguém atira os olhos azuis para dentro dos olhos do interlocutor e já não sai mais dali: refila, refila, refila, todo curvado para a frente e agarra o interlocutor pelo braço, dá-lhe palmadas nos ombros.

Uma vez, aqui há uns anos, estivemos na mesma turminha de neerlandês e o colega zangado não andava só zangado com a língua neerlandesa. Andava furioso. A professora dizia: A regra, neste caso, é assim. E ele respondia: Isso não faz sentido. A mim dava-me para rir, mas o colega zangado não se ria. Dava-me um toque de sobrancelhas do género: Não tarda, levas! E eu ria-me na mesma, porque gosto de correr riscos.

É mesmo uma pena este colega andar mal com a vida, porque o senhor tem grande potencial para um intervalo coca-cola light bem passado. Mas assim não vai dar. Aliás, por esta altura, o homem zangado deve ter imensos problemas de costas, porque anda sempre muito tenso e isto agora já não vai lá com uma massagem nem com um banho de imersão.

Ficamos todos a perder com a zanga deste homem.

Eu pessoalmente já perdi vários intervalos bem passados.

Uma chatice.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Um desenho espectacular

- Olha, Rodrigo, estava aqui a pensar fazer um desenho espectacular.
- Faz.
- Mas mesmo espectacular.
- Sim.
- Assim muita difícil.
- Faz.
- O que queres que eu desenhe? Pode ser o que tu quiseres! Pensa bem...
- Hmmmm... [O Rodrigo pensa.]
- Mesmo o que tu quiseres!
- Um esgoto!
- Um esgoto?!
- Sim, um esgoto. É difícil!
- Não é, não!
- É é!
- Vou fazer. Olha um esgoto.
- Isso não é esgoto!
- Não?!
- Não. Isso é uma ventania!
- Pois é. Vou então fazer um esgoto.
- Não! Faz uma ventania.
- Mas eu já fiz uma ventania!
- Faz outra!
- Outra ventania?
- Sim. Ou então um cocó.
- Um cocó?!
- Sim, faz um cocó. É fácil!
- Achas?
- Sim.
- Sabes fazer?
- Sei.
- Como é que é?
- É assim. [O Rodrigo desenha uma linha na horizontal.]
- Isso é um cocó?
- Sim. É fácil!

Blogueira belga

Era uma vez uma blogueira belga. Para o caso de não saberem, a blogueira é uma espécie de árvore de folhas caducas, em geral, de pequeno porte, oriunda do hemisfério norte. A flor de blogueira é bem boa para fazer chá ou então para temperar vitela. O fruto da blogueira chama-se blogue. Trata-se de um fruto espalmado que pode ter várias cores. Os mais saborosos são amarelos. Os mais nanhosos têm muco e são verdes. Há também blogues castanhos e outros pretos, mas estes têm caroço e vontade própria. Às vezes mordem, o que pode ser perigoso. Há quem coma blogues crus, mas eu por acaso prefiro blogues maduros. É uma questão de gosto. Mas então, voltando ao que eu estava a dizer: Era uma vez uma blogueira belga que morava numa praceta há coisa de quinhentos anos e ultimamente os dias eram sempre iguais, porque a blogueira, além de não ter pernas para andar, vivia na Bélgica, que é um país extremamente aborrecido com uma família real tão nhonhó que só muito raramente é notícia. Ora, um dia, há precisamente seis anos, a blogueira belga acordou bastante zangada, porque estava cheia de pássaros na cabeça e isso dava-lhe imensa comichão. Além disso, andava farta de apanhar com chuva em cima. Sentia que a sua vocação não era aquela, de estar assim no meio da praceta de braços abertos como um espantalho. E então, de súbito, para exercitar os braços e libertar a energia negativa, pegou num blogue amarelo e vicoço e atirou-o contra uma rapariga que ia a passar. A blogueira escangalhou-se a rir, porque a transeunte levou mesmo com o blogue nas trombas. Era uma jovem rapariga que, nesse instante, estava precisamente de trombas, mas ganhou logo outro ânimo quando olhou para o blogue que lhe tinha ido parar aos braços. Inspirada por aquele amor de água fresca, a rapariga pegou, trincou e meteu-o na cesta. O blogue, de início, quis apodrecer e morrer de vez, mas depois lá se habituou à tal água fresca e ganhou vida. 
Isto para dizer que esse blogue chamado Belgavista faz 6 anos hoje. 
A blogueira, não sei, porque nunca mais passei nessa praceta, mas creio que deve ter morrido de tédio pouco tempo depois.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

O dia mais longo do ano

Hoje, além de sexta-feira, é o dia mais longo do ano, o que à primeira vista pode parecer um gesto querido do nosso planeta terra-a-terra, mas hoje não me dava jeito nenhum. Gostava que este dia terminasse rapidinho, de preferência já de seguida, assim de repente, num ápice, agora já.
É que estou mesmo cheia de sono.
Para passar o tempo de estar acordada enquanto não posso dormir, pus-me aqui a pensar em personagens engraçadas e lembrei-me do Hugh Laurie.
O Hugh Laurie é uma boa companhia para passar um dia que nunca mais acaba.
Eu gosto do Hugh Laurie a toda a hora, sobretudo quando me aparece manco e maldisposto no sofá, agarrado à sua bengala de Dr. House.
Pronto, gosto.
Passei uma longa temporada da minha vida a ver as temporadas todas do House. Uma perda de dias curtos e longos, é certo. À superfície, os episódios são vira-o-disco-e-toca-o-mesmo: os médicos passeiam-se pelos corredores, debitam palavrasextremamentecompridas e os doentes, coitados, estão sempre para morrer. Mas isso não interessa nada ou interessa pouco.
Por mim, a série podia ser só o Hugh Laurie num cenário todo negro a dizer disparates que afinal não são assim tão disparatados e afinal não são disparates nenhuns e afinal são verdades verdadinhas. Eis o ser humano ao espelho, esta amálgama de disparates. Nunca vi personagem tão humana e desumana ao mesmo tempo. Os figurantes, assim como assim, só lá estão para fazerem figuras tristes. E também para serem maltratados pelo House, claro.
Farto-me de rir com as maldades do House. E logo a seguir fico muito séria. A vida é um assunto cómico e sério ao mesmo tempo. As pessoas não mudam, as pessoas mentem. Todos fomos screwed up pelos nossos pais. O House sabe o melhor e o pior de nós, o que é desconfortável para os nossos cérebros grandes e pesados.
No outro dia, fomos ver o Hugh Laurie ao vivo, porque o senhor também toca piano e devo dizer que o Hugh Laurie, sem o House (a sua casa), não tem metade da piada. É um ser humano como os outros, vira-o-disco-e-toca-o-mesmo.
Nos meus sonhos bons, sou maltratada pelo House e adoro sou maltratada pelo House, o que vem mais uma vez demonstrar a preferência das mulheres por homens maus.
As mulheres não mudam.
É que são todas iguais!
São, não são?
São.
Mas eu também nunca quis ser diferente. E hoje tenho ainda mais tempo para ser igualzinha às outras.
Bem bom!

terça-feira, 11 de junho de 2013

Espécie animal

Ouvi dizer mas não sei se é verdade.
Num planeta pequenino com sede num sistema solar de várias estrelas multicolores situado a um milhar de bilião de anos-luz do planeta Terra, que é basicamente um número um com dezoito zeros à frente, há vida.
Sim, vida.
Vida mesmo.
Daquela de viver e estar na vida a fazer coisas com as mãos e os pés e numerosos orifícios aqui e ali.
Mas uma vida diferente da nossa. Uma vida muito simples constituída por uma única espécie animal e numerosos vírus e bactérias minorcas e ainda muitas espécies vegetais que se encontram, coitadas, em vias de extinção, porque a espécie animal se alimenta precisamente das espécies vegetais que demoram séculos a crescer (séculos mesmo), mas não sabe cultivar a terra. Portanto, esta espécie animal também se encontra em vias de extinção, embora não saiba disso, porque é uma espécie estúpida sem sapiens na sua designação latina.
A espécie animal é composta por quarenta e um indivíduos que parecem crocodilos, mas têm pernas longas que acabam numas garras grossas, uma cabeça de periquito, uma tromba de elefante, uma juba de leão, uma cauda peluda de animal peludo, duas antenas no cocuruto e umas asas nas costas. Têm também a particularidade de andarem de lado como os caranguejos e de olharem também assim de lado, o que pode ser perturbador para nós, que olhamos sempre de frente (sempre), mas é extremamente aceitável para a espécie animal deste planeta pequenino a um milhar de bilião de anos-luz.
Um dia destes conto-vos uma história sobre esta espécie extremamente interessante e estúpida, porque muito claramente já ando fartinha de seres humanos sapiens sapiens com jubas de seres humanos e tiques de seres humanos.
Além disso, confesso que também gostava de laurear a pevide noutro planeta de outro sistema solar de outra galáxia.
Só assim para variar.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Domingo, na Feira do Livro de Lisboa

Yáááá! Eurekaaaaa!
A karateca chegou finalmente a Livro do Dia!
 
Por outras palavras:
A karateca está tipo em saldos. É que sinceramente já cansa...
Parece aquelas mochilas Monte Campo.
Tipo, TODA A GENTE TEM UMA!

Obrigada à Sara, que fez esta fitinha azul.
E peço perdão à dama aflita a quem arrebatei a imagem.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Em PAX no IKEA

Não conheço ninguém que saia INTËIRU do IKEA.
NINGUUËM!
Eu, pelo menos, já lá perdi uns quantos PARÅFUSÜUS e uma boa parte da minha PACIËNCJA e do meu tempo de VIDDA.
Deve até haver GENTTË que já perdeu a mulher ou o marido no IKEA enquanto comprava, por exemplo, um roupeiro.
O maior DESÄFIIÖ para um CAZAMENTÜ é, quanto a mim, escolher um roupeiro no IKEA. É mesmo complicado para KANEKÖ. Ele há portas deslizantes ou com dobradiça, com vidro fosco ou com espelho, maçanetas, puxadores, gavetas, caixas, sapateiras, prateleiras, varões, suportes para calças, cómodas, compartimentos, saquinhos, cestinhos, BÜRAKINHOS. Não há como não perder as ESTRIBEIRÄS.
E, realmente, pensando bem, não deve haver melhor sítio para uma pessoa pedir o DIVÖRCCIU do que no IKEA, porque o próprio edifício faz lembrar uma espiral negativa.
Ironicamente, a coleção de roupeiros do IKEA chama-se PAX, palavrinha pequerruxa que não deve significar nada em sueco.
Ideias para rebentar com um casamento no IKEA: Quero estes puxadores. Ai é? Olha, eu quero o divórcio.
Pronto, já está. Não custa nada.
Felizmente, tanto eu como o Homem Ilimitado não nos importamos de viver no meio de caixotes, somos até mais felizes no meio de caixotes. Viver no meio de caixotes é uma aventura constante. Cada caixote é uma autêntica caixinha de surpresas. Um caixote tem sapatos, o outro tem camisolas, o outro tem cuecas, o outro tem meias, o outro tem toalhas e o outro lençóis. Ai, que giro, os lençóis estão aqui.
Qual é problema?
Nenhum. Não há problema nenhum.
Estamos em PAX no meio de caixotes.
Juro.
Estamos mesmo.
A sério.
Somos feitos de bom material.
Já o IKEA não vale um TRÄQUUE!


Mia Couto

A primeira vez que percebi que nunca-jamais-na-vida ia ser escritora nem coisa do género foi quando li as Estórias Abensonhadas do Mia Couto. Tinha 15 anos ou então 16, e li o livro como quem lê um mapa, a girá-lo para um lado e para o outro, a pô-lo de cabeça para baixo para perceber onde estava, cheia de cuidados e expectativas, numa viagem pelo desconhecido. A capa era azul-meiga, dava vontade de dormir lá dentro. Mas o livro, de abensonhado, tinha muito pouco. Na verdade, tirava-me o sono, parecia infernizado por algum feitiço, brilhava no escuro! Estranhíssimo.

O Mia Couto foi o meu primeiro escritor. Assim o primeiro escritor de eu decidir que quero ler porque me apetece e gostei à brava. Mas, enfim, isto de gostar do Mia Couto era mais um correr por desgosto, porque os livros do Mia Couto eram leves por fora e pesados por dentro. Os textos do Mia Couto induziam-me em erro e eu ficava horas com uma azia terrível, as palavras às voltas na barriga. Era preciso beber chá para digerir e eu não sou muito de beber chá. Ainda assim, lia Mia Couto porque me apetecia e gostava à brava.

Uma vez, o Mia Couto foi à Faculdade de Letras, lembro-me perfeitamente disso.

Não, por acaso não me lembro muito bem.

Deve ter sido há uns 10 anos, o que para mim quer dizer que foi há montes de tempo. O encontro foi numa sala que eu associava a um exame de não-sei-quê, mas a partir desse momento, na minha cabeça, aquela passou a ser a “sala do Mia Couto”, porque o Mia Couto esteve mesmo ali, naquela sala igual às outras, com mesas e cadeiras. Lembro-me que o Mia Couto estava sentado na mesa do professor, de frente para os estudantes estudiosos. Eu, estudante assim-assim, tentava reter tudo o que o Mia Couto ia dizendo, mas infelizmente distraía-me com facilidade. Pensava em coisas do género: Olha, o Mia Couto está ali à frente! ou então A voz do Mia Couto é assim, que engraçado!

No final desse encontro, houve um momento para as perguntas dos estudantes estudiosos e eu estive no meu cantinho a inventar coragem. Os estudantes estudiosos iam fazendo perguntas e eu só pensava na minha pergunta que era igual às outras: tinha um ponto de interrogação no fim. E então, num acesso de desmesurada intenção, pus a mão no ar, contei até três e fiz a pergunta. Era uma pergunta pobrezinha certamente, a pedinchar resposta. Enquanto eu fazia a pergunta, o Mia Couto olhava para mim e ouvia as minhas palavras em silêncio, o que demonstrava que o Mia Couto, além de bom escritor, era uma pessoa bem-educada. Isto surpreendeu-me.

Estava à espera que o Mia Couto fosse um bicho esdrúxulo, porque os escritores com um certo nível de sofisticação são bichos esdrúxulos e não pessoas bem-educadas. Quando cheguei ao fim da minha pergunta, o Mia Couto continuou a olhar para mim e respondeu tranquilamente ainda a olhar para mim, o que me pareceu absolutamente extraordinário. Era como se, de repente, o Mia Couto estivesse a conversar comigo. Pensei: Olha, o Mia Couto está a olhar para mim e a responder à minha pergunta. E, em vez de ouvir a resposta do Mia Couto, que deve ter sido muito interessante, fiquei a pensar em coisas deste tipo: Eu estou a comunicar com o Mia Couto!

Senti então qualquer coisa nova. Uma capacidade qualquer de intervir, de ter um impacto na vida dos outros, incluindo na de escritores bem-educados. Isto encheu-me de esperança relativamente ao mundo. A oportunidade existia. A igualdade existia. A justiça existia. Blablabla. Dar e receber. Aprender e ensinar. Ser e estar.

Palermices.

Dez anos depois, nem há um ano, conheci o Mia Couto em Natal. Conheci mesmo. De dizer: Olá, eu sou a Ana. E o Mia Couto respondeu: Olá, eu sou o Mia. Por acaso acho que foi ao contrário. O Mia Couto apresentou-se e eu depois respondi. Desta vez, ouvi o que o Mia Couto disse, porque enfim, já sou mais crescidinha e a minha atenção já não é constantemente interrompida por pensamentos. Aliás, hoje em dia, é raro ter pensamentos. É um grande silêncio na minha cabeça.

Ora, hoje (ontem) lembrei-me de tudo isto, porque o Mia Couto ganhou e eu fico sempre contente quando o Mia Couto ganha.

Sou do Mia Couto como sou do Benfica. Sou, pronto. Estou sempre a torcer por eles.

E quando as minhas equipas ganham, sinto uma coisa estranha e abstrata que brilha no escuro, algo parecido com aquela palermice de ter esperança no mundo.

Acabo de ler que o Mia Couto quer apoiar os jovens escritores moçambicanos.

É uma luzinha no escuro!

Eu penso* que o Camões deve estar contente.





*Olha, um pensamento!

sexta-feira, 24 de maio de 2013

E agora...

E agora,  além de ser sexta-feira à tarde, que já é uma coisa boa, acontecia uma outra coisa muito melhor. Por exemplo, eu estava aqui muito bem neste gabinete a fazer assim no teclado e de súbito começava um tremidinho de terra de fazer mexer os copos de água e via-se um raio de luz no céu ou então na terra - não dava para perceber bem porque era assim de repente - e depois aparecia uma coisa a romper as nuvens, tipo um meteoro ou uma estrela cadente ou um foguetão ao contrário, e ouvia-se uma explosão, CATAPUM!, só que não morria ninguém e também não havia feridos, era uma explosão inofensiva e o meteoro nem era um meteoro, era uma coisa que nem sequer estava bem a cair, estava a aterrar, mas assim em descontrolo, e não era bem uma nave espacial, era uma geringonça descontrolada de voar por aí às cambalhotas, e lá dentro estava um mágico de lacinho na garganta ou então um bicho esquisito mas fofinho ao mesmo tempo de andar assim aos pulos ou então uma palmeira muito magra e muito alta que sabia cantar e tudo, e a geringonça até era pequenina, tipo um Smart de andar no Espaço, só que era grande ao mesmo tempo, porque tinha muitas coisas lá dentro, e parecia uma coisa muito nova, mas na verdade era muito antiga, só que o material era tão bom que não envelhecia, e ninguém sabia muito bem o que era aquilo, nem mesmo o mágico de lacinho ou o bicho esquisito e fofinho ou a palmeira de cantar, era uma geringonça que aterrava assim em qualquer lado, out of the blue, e seria precisamente azul e quem quisesse podia andar nela, era só abrir a porta e entrar, e a geringonça servia para viajar no tempo e no espaço e também para viajar dentro da cabeça, por isso era uma máquina que dava perfeitamente para alterar a história do universo, incluindo o Big Bang, e também a nossa própria memória, o que daria imenso jeito para mudar de cenário e de mentalidade. Mas se nada disto acontecer hoje ao final do dia, se não houver tremidinho de terra nem geringonça de andar por aí, também dá para ver um episódio do Doctor Who, porque o Doctor Who muda de tempo e de espaço e, por acaso, também usa lacinho e é esquisito e fofinho ao mesmo tempo. A música do genérico, por exemplo, transporta-nos logo para outro lado. Se não der para ver o Doctor Who por isto ou por aquilo, a hipótese seguinte é ir para os copos. Também serve. Mas neste caso, a geringonça de voar por aí às cambalhotas somos nós.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Irmão Lobo - Convite

A coleção «Dois passos e um salto» do Planeta Tangerina é das coisas mais saltitonas que por aí andam.
A karateca anda por aí aos pontapés.
E agora é a vez do Irmão Lobo abanar a cauda.

Eu cá já tenho um exemplar.

Sou colecionista.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Uma senhora nas urgências III

As cortinas abrem-se, sai um médico.

- Madame não-sei-quê?
- Sim, sou eu.
- Sou o médico YZ.
- Sim.
- Está numa cadeira de rodas?!
- Como?
- A senhora está numa cadeira de rodas?!
- Sim.
- Mas porquê?
- Foi o enfermeiro que me deu esta cadeira, não sei.
- Mas não consegue andar?
- Consigo.
- Ah, estava a ver!
- ...
- Bom, não sei se vai compreender o que lhe vou dizer…
- Compreender?
- Bom, não sei se consegue reter alguma informação neste momento.
- Informação?!
- Sim, por causa do choque e assim… Vamos então para esta sala aqui ao lado, por favor.
- É preciso ir para outra sala?
- Sim, é melhor. Como deve perceber, não lhe trago notícias excelentes.

A senhora e o médico saem de cena. Pas d'excellentes nouvelles.

Há semanas que a narradora deste texto anda a pensar na senhora das urgências, no seu dedo indicador. Na sua voz.
Estamos cá sozinhos.
Realmente...
Sozinhos…

terça-feira, 21 de maio de 2013

Uma senhora nas urgências II

A certa altura, procurando entretenimento enquanto o seu duplo queixo comia arroz com almôndegas, a senhora da receção meteu conversa com a senhora da cadeira de rodas. Um diálogo lento, de longas pausas. A narradora deste texto ouviu e narrou:
- Está sozinha?
- Como?
- Se está sozinha...
- O meu marido está lá dentro.
- Eu sei, eu sei, mas não tem família?
- Sim, tenho, mas não é uma família grande… É pequena...
- Tem família aqui em Bruxelas?
- Aqui em Bruxelas? Não, não tenho…
- Ah, c'est dommage.
- Sim, é… Mas porquê? Por que me está a perguntar isso?
- Bom, é sempre mais agradável ter a família perto de si nestas situações.
- Sim, seria mais agradável, mas…
- Mesmo para socializar.
- Para socializar?
- Sim. Seria importante para si.
- Pois, talvez… Tenho cá um cunhado!
- Um cunhado?
- Sim, irmão do meu marido. Mas não tenho estado com ele...
- Ele está cá em Bruxelas?
- Não, mas vive cá na Bélgica.
- Ah…
- Mas de resto, não. De facto, não... Estamos cá sozinhos. Realmente... Sozinhos…

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Uma senhora nas urgências I

Há semanas que a narradora deste texto anda a pensar na senhora das urgências.
Deviam ser três da manhã, mais coisa menos coisa. A autora e a narradora deste texto foram ao hospital. Às vezes, acontece. Nada de grave.
A mulher da receção era gorda. Tinha duplo queixo e braços insuflados. Era preciso esperar, por causa de um acidente, os médicos estavam muito ocupados. Tudo bem, nós esperamos. Aguardem na sala de espera.
Meia dúzia de pessoas na sala de espera, à espera de qualquer coisa. Uma espera longa, de ouvir passar o tempo. A narradora, dada a sua natureza narrativa, não aguentou muito tempo no seu lugar e pôs-se a caminhar pela sala. Três-quatro passos para lá, três-quatro passos para cá. Reparou então na senhora da cadeira de rodas. Uma senhora de vestido e colar de pérolas, o cabelo grisalho e muito composto, metido num carrapito. Uns brincos de brilhar no escuro. Dir-se-ia que a mulher se tinha aperaltado para vir às urgências. Para impressionar os médicos. Não parecia magoada nem inquieta. De súbito, os olhos da mulher olharam para os olhos da narradora. Um olhar de reconhecimento. De ver alguém a ver. A narradora sorriu e a senhora também. Um sorriso triste e cansado. De sala de espera, a ouvir passar o tempo.
A narradora encaminhou-se para a receção, 10 ou 15 passos. Fez perguntas. Se ainda demorava muito, se ia ser atendida em breve. A mulher da receção, além de duplo queixo e braços insuflados,  tinha uma caixa ao colo com almôndegas e arroz lá dentro. Mais meia horinha, talvez menos. De certeza? Bom, não há garantias. E alternativas? A esta hora, nenhumas. Merci. A narradora afastou-se. Quando passou pela mulher do carrapito, esta chamou-a com o dedo indicador. Psiu, psiu, psiu, como se faz aos bichos, mas sem o psiu, psiu, psiu. Depois chamou-a com a boca: Mademoiselle.
A narradora deste texto hesitou, claro.
A mulher do carrapito talvez fosse louca ou até uma feiticeira daquelas que transformam as pessoas em bichos. A narradora ficou meio segundo naquela hesitação: Vou, não vou; vou, não vou; vou, não vou. Respondeu com uma pergunta: Oui? A senhora apontou para o saco que trazia consigo. Quer um livro ou uma revista? Como? Se queria ler qualquer coisa. Se queria distrair-se. Trazia uma revista e um livro no saco. Quer?, perguntou a mulher. Não, não, disse a narradora. C'est très gentil, mas não, obrigada. A senhora sorriu o mesmo sorriso triste, de cadeira de rodas. A narradora deste texto voltou a sentar-se no seu lugar, os olhos ainda sobrevoando a senhora do carrapito.
Uma mulher elegante, mesmo àquela hora, sentada numa cadeira de rodas. As pernas longas, o pescoço longo, toda ela um prolongamento de classe.
Estava certamente à espera de alguém. À espera de alguma coisa.
A narradora deste texto também.
A narradora e a senhora da cadeira de rodas tinham qualquer coisa em comum.
Sorriram novamente uma para a outra.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

O céu serve para ter nuvens

O céu serve para ter nuvens. As nuvens servem para chover. A chuva faz barulho. Um saco de plástico também. Um balão pode subir. Um ovo pode cair. Cair nem sempre dói. Se dói, é para chorar. Chorar é chover no rosto. O rosto é para ter bochechas. As bochechas apertam-se. Os dedos servem para estalar. Os pés são para dar chutos. As árvores são para trepar. Uma estrada é para correr. A boca é para gritar. Um grito vai muito longe. Um barco também. A areia é para fazer castelos. Os castelos são para destruir. O mar vai sempre em frente. Uma onda é para mergulhar. Debaixo de água não se ouve.
É que não se ouve mesmo.
Eu, pelo menos, não ouço nada.
Tirem-me desta chuva.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Seasick Steve

Gostava de andar de trator.
De trator?!
Sim, de trator.
De preferência, com o Seasick Steve.
Ou então ao som de Seasick Steve, que toca guitarra e bate com o pé no chão.
Gosto.


O Seasick Steve, quando era pequeno, levava porrada do padrasto.
Um dia fugiu de casa e nunca mais voltou.
Bem feito.
Já passou dos 70 e ainda está aí para as curvas.
Antes tocava guitarra no metro.
Agora toca guitarra no palco.
Usa boné e barba longa.

É um americano como outros, mas não é um americano como outros.

Começou com nada e ainda lhe sobra quase tudo.
Em dias azulados (blues), ouço Seasick Steve e também bato com o pé no chão.

terça-feira, 7 de maio de 2013

A casa (VIII)

No último dia, lavei o chão. Já não havia nada na casa.
Só eu, o balde e a sabrina. Se eu falasse, a minha voz faria eco, mas eu não falei.
Lavei só o chão. Depois fechei a porta.
Dentro do meu bolso, um porta-chaves sem chaves. Um porta-chaves que é uma casa fofinha.
Uma casa dentro do bolso.
Quando cheguei cá abaixo, olhei para ela. A casa olhava para mim de janela aberta.
Malandra!
Quem, eu?
Não, a casa!
De janela aberta.
Agora já não há nada a fazer.
Não tenho chaves. Não vai dar para fechar a janela.
Paciência.
Não foi por mal.
Foi, foi.
Não foi, não.
Foi esquecimento.
O esquecimento é um mal menor.
É, não é?
É.
Os nossos nomes na caixa do correio. Pas de publicité!
Depois virei as costas e fui-me dali. Com o Homem Ilimitado.
Ele sim, uma casa.
Bons alicerces.
Não há lobo mau que o derrube.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

À espera do autocarro

Estou impecavelmente parada, ao frio e ao vento, não mexo um dedo, sou uma estátua.
O melhor da vida é esperar por um autocarro.
Olho à volta para contemplar melhor a espera. A moçoila de cabelo enrolado num novelo deve estar à espera do 38, só pode.
Eu gostava de enrolar o meu cabelo num novelo, mas não sei enrolar o meu cabelo num novelo. Há muitas coisas que eu não sei fazer.
Também não sei andar direitinha dentro de uma gabardina direitinha como este senhor que deve estar à espera do 95. É com certeza trabalhador por conta de outrem e não gosta do que faz, coitado. Acontece. A vida, às vezes, é chata.
A senhora bruta e gorda com caspa nos ombros deve ser do 27. Tem pelo menos cinco filhos, dois frigoríficos, duas máquinas de lavar roupa e um marido que nem se vê bem ao perto.
Há ainda mais pessoas na paragem. Três, sete, dez, somos uns quinze.
Três equipas de pessoas à espera.
Esperar é bonito de se ver. Ninguém sabe estar parado como as pessoas da paragem.
Hoje, jogo na equipa do 95, porque enfim, gosto de torcer pelos fracos.
O 95 é sempre o último a chegar.
Estou a comer amêndoas, não sei porquê. Deu-me para aí. Estavam à venda num supermercado dentro de um saquinho engraçado. São amêndoas a sério, não são das outras, a fingir. As amêndoas da Páscoa, por exemplo, são a fingir.
A Páscoa já acabou há montes de tempo e as lojas belgas continuam a vender ovinhos da Páscoa e coelhinhos da Páscoa e amêndoas da Páscoa. Com 50% de desconto.
Aaaah, finalmente! Uma coisa grande no horizonte, aos solavancos. Qual é coisa qual é ela.
É um autocarro, claro.
O 27, mais precisamente. A senhora com caspa nos ombros está contentinha, não me enganei. A senhora bruta joga no 27, pega nos sacos com garra. O 27 vem sempre apressado, não há tempo a perder. Logo a seguir, outra coisa monstra no horizonte. O 38. É mais pachorrento. As equipas do 27 e do 38 desaparecem, é sempre assim.
Nós, os do 95, ficamos sós e abandonados na paragem, a inalar o fumo e o pó e o perfume e o pólen que os felizardos deixam para trás.
Estou impecavelmente parada e olho à volta para usufruir da espera. Dois adolescentes mascam pastilha. Gostava de pedir uma pastilha aos adolescentes, mas tenho medo deles. Ainda me espremem uma borbulha para cima e depois tenho de ir à farmácia comprar antídoto.
A adolescência pega-se.
Olhos postos no fundo da praça, uma espécie de horizonte. Os que fumam acendem cigarros, na esperança de enganarem o destino. Os que não fumam fazem outras coisas. Mexem no telemóvel, comem amêndoas, consultam o horário, olham para o relógio. O 95 já devia cá estar e não está. O 95 não vale um. Está muito atrasado, se calhar não vem. Paciência, não faz mal, há de vir o seguinte ou o outro a seguir.
Há autocarros de 6 em 6 minutos. Qual é o stress?
Nenhum, não há stress nenhum, a espera é longa e previsível. A espera é como a vida.
Não, não é.
Sim, é.
Não, não é.
A vida, às vezes, é chata. A espera não.
Eu gosto de esperar.
Um autocarro chega, mas não é o desejado, é o 27. O 27 é injusto. Passou um ainda há pouco. O autocarro pára e as pessoas entram, ainda bem. Eu só quero o bem das pessoas. Ide em paz.
A equipa do 95 bufa em uníssono. Já não sou uma estátua. Agora caminho de um lado para o outro. Dois passos em frente, um para trás. Rodo na pata traseira, mais dois passos em frente. A manada do 95 deve estar ali há coisa de 15 minutos.
Ao longe, no horizonte que é o fundo da praça, outro autocarro à vista. Os que não são míopes já perceberam que é o 95 e avançam com as suas malas e mochilas e pastas e saquinhos. Os míopes apercebem-se agora e avançam também. O autocarro pára e abre as portas, é um autocarro acolhedor.
Não, afinal não é um autocarro acolhedor. O autocarro vem cheio, não há lugar para todos.
Algumas pessoas respingam, há uns buraquinhos ali e acolá. As pessoas, se fossem gente, apertavam-se mais um bocadinho e cabíamos todos. Mas as pessoas não são gente.
As pessoas não valem um.
Os mais magrinhos e atrevidos conseguem entrar. Os mais gordos e tímidos não. O condutor consola os meninos gordos e tímidos com um sorriso. Diz: Não se preocupem, vem outro já aí atrás!
Os mais gordos e tímidos ficam na paragem. Eu e os dois adolescentes.
Entreolhamo-nos. Tantas borbulhas, credo.
Penso noutra coisa.
Penso: Antes não gostava tanto de amêndoas, que engraçado.
E de novo se instala a paciência da espera e também a impaciência da traição, porque não vem um 95 já aí atrás. Não vem nenhum 95, ponto. Em dez minutos, passam dois 38 e um 27.
Os jogadores da equipa 95 chutam pedrinhas, porque estão zangados. No entanto, não arredam pé. Ficam ali, à espera. Esperar por um autocarro é um ato de esperança.
Quem nunca esperou por um autocarro não sabe o que é a vida.
Esperar enrijece. Eu, pelo menos, estou mais rija, olhem para isto. Pareço uma pedra. Para a próxima entro no autocarro e levo tudo à frente.
Vão ver.

Estou aqui bruta como as casas.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

No outro dia ajudei um homem cego.

No outro dia ajudei um homem cego. Eu vinha a descer a rua e vi que o homem estava bloqueado em frente a um poste. Parecia um daqueles bonecos de corda que ficam a dar à perna contra a parede. Enchi-me de bons sentimentos, pobre senhor. A vida é difícil para os invisuais. Agora diz-se invisuais. Cego é coisa do passado. Não vejo nada de mal na palavra cego, por isso digo cego.
Eu sempre quis ser escuteirinha. Penso que teria bastante jeito para ser escuteirinha, mas nunca fui escuteirinha, por isso pensei que esta seria a minha oportunidade. Aproximei-me do homem e agarrei-o pelo braço. O senhor soltou um grito, bruxo, que grande susto. Pedi-lhe desculpa, desolée, expliquei-lhe que o ia ajudar e o senhor agradeceu. Disse-me que ia para a praça não sei quantas. Fingi que esse também era o meu caminho e seguimos em frente. Logo a seguir ao poste, havia um outro poste e o senhor foi direitinho a ele, pimba contra o poste. Eu pedi desculpa, desolée, não estava à espera que o senhor não se desviasse. Os transeuntes olharam-me de olhos atravessados. Alguns até abanaram a cabeça, que pessoa visual mais incompetente. Esforcei-me mais um pouco e desviámo-nos dos postes seguintes, de braço dado, agora para aqui, agora para ali. Aos poucos já estava perita em evitar obstáculos e conquistei a confiança do senhor. A certa altura, estávamos em amena conversa.
O senhor é daqui? Não, sou irlandês, mas vivo em Bruxelas há mais de 20 anos. E gosta? Gosto muito. Irlanda, que bom! Boa gente. Pois é. Conhece? Só Dublim, estive lá num fim de semana, choveu imenso. Sim, chove muito. É como aqui. Pois é. Gosto de beber Guiness. É uma cerveja forte! Pois é. Eu gosto. Tem de voltar à Irlanda. Sim, tenho. Você tem uma voz agradável. Obrigada. Vem de onde? Sou portuguesa. Ai, sim? Sim. De onde? De Lisboa. Que maravilha! Pois é. E vive em Bruxelas? É verdade. Coisa estranha, a vida. Sim, estranha. Conhece Lisboa? Sim, estive uma vez, gostei muito. É uma bonita cidade, não é? O senhor não respondeu logo, coitado, não devia saber o que dizer. Como explicar a beleza que não se vê? Corrigi: É uma cidade simpática, não é? O senhor sorriu um sorriso bonito. Sim, muito simpática. As pessoas são todas muito amáveis, incrível. Os portugueses são um povo bom. Sim, são. Os irlandeses também. Sim, também. Mas estamos na cauda da Europa. Pois é. Não podemos ser bons em tudo. Pois não.
Chegamos à praça não sei quantas e eu larguei o senhor. Olhe, chegamos ao seu destino. Já? Sim. Que bom, muito obrigado pela ajuda! Ora essa. Foi um prazer. O senhor desdobrou a sua bengala e avançou atrás dela, toc-toc, toc-toc. Fiquei a vê-lo caminhar pela rua e reparei que o homem era muito mais lento quando caminhava atrás da sua bengala. Mas muito mais lento. Incrivelmente mais lento. O homem era o ser vivo mais lento em Bruxelas.
Nesse momento apercebi-me de que o homem devia estar cheio de medo nos meus braços desconhecidos e desatentos. Na verdade, deve ter sido horrível para ele acompanhar os meus passos firmes e rápidos.
É portanto provável que eu não tenha ajudado o homem cego.
Visivelmente eu não seria uma boa escuteririnha.
Sou uma visual incompetente.
Não vejo a maior parte das coisas.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Karateca na Kolômbia

A karateca foi a Bogotá e agora já não é uma menina nem uma rapariga. É uma chica karateca, cujo mayor sueño es ser cinturón negro y ganar todos los campeonatos de karate.


El cuaderno foi impecavelmente traduzido pelo Jerónimo Pizarro, conhecida pessoa com tendências pessoanas, e marca presença na Feira Internacional do Livro de Bogotá, onde Portugal é o país convidado.
As ilustrações do Bernardo Carvalho continuam a ser rijas e rojas numa edição que ficou a cargo da editora colombiana Taller de Edición Rocca.
O pontapé de lançamento será já mañana, pelas mãos (e pelos pés) de Bernardo Carvalho e Jerónimo Pizarro.
Yáááá!