quarta-feira, 29 de maio de 2013

Mia Couto

A primeira vez que percebi que nunca-jamais-na-vida ia ser escritora nem coisa do género foi quando li as Estórias Abensonhadas do Mia Couto. Tinha 15 anos ou então 16, e li o livro como quem lê um mapa, a girá-lo para um lado e para o outro, a pô-lo de cabeça para baixo para perceber onde estava, cheia de cuidados e expectativas, numa viagem pelo desconhecido. A capa era azul-meiga, dava vontade de dormir lá dentro. Mas o livro, de abensonhado, tinha muito pouco. Na verdade, tirava-me o sono, parecia infernizado por algum feitiço, brilhava no escuro! Estranhíssimo.

O Mia Couto foi o meu primeiro escritor. Assim o primeiro escritor de eu decidir que quero ler porque me apetece e gostei à brava. Mas, enfim, isto de gostar do Mia Couto era mais um correr por desgosto, porque os livros do Mia Couto eram leves por fora e pesados por dentro. Os textos do Mia Couto induziam-me em erro e eu ficava horas com uma azia terrível, as palavras às voltas na barriga. Era preciso beber chá para digerir e eu não sou muito de beber chá. Ainda assim, lia Mia Couto porque me apetecia e gostava à brava.

Uma vez, o Mia Couto foi à Faculdade de Letras, lembro-me perfeitamente disso.

Não, por acaso não me lembro muito bem.

Deve ter sido há uns 10 anos, o que para mim quer dizer que foi há montes de tempo. O encontro foi numa sala que eu associava a um exame de não-sei-quê, mas a partir desse momento, na minha cabeça, aquela passou a ser a “sala do Mia Couto”, porque o Mia Couto esteve mesmo ali, naquela sala igual às outras, com mesas e cadeiras. Lembro-me que o Mia Couto estava sentado na mesa do professor, de frente para os estudantes estudiosos. Eu, estudante assim-assim, tentava reter tudo o que o Mia Couto ia dizendo, mas infelizmente distraía-me com facilidade. Pensava em coisas do género: Olha, o Mia Couto está ali à frente! ou então A voz do Mia Couto é assim, que engraçado!

No final desse encontro, houve um momento para as perguntas dos estudantes estudiosos e eu estive no meu cantinho a inventar coragem. Os estudantes estudiosos iam fazendo perguntas e eu só pensava na minha pergunta que era igual às outras: tinha um ponto de interrogação no fim. E então, num acesso de desmesurada intenção, pus a mão no ar, contei até três e fiz a pergunta. Era uma pergunta pobrezinha certamente, a pedinchar resposta. Enquanto eu fazia a pergunta, o Mia Couto olhava para mim e ouvia as minhas palavras em silêncio, o que demonstrava que o Mia Couto, além de bom escritor, era uma pessoa bem-educada. Isto surpreendeu-me.

Estava à espera que o Mia Couto fosse um bicho esdrúxulo, porque os escritores com um certo nível de sofisticação são bichos esdrúxulos e não pessoas bem-educadas. Quando cheguei ao fim da minha pergunta, o Mia Couto continuou a olhar para mim e respondeu tranquilamente ainda a olhar para mim, o que me pareceu absolutamente extraordinário. Era como se, de repente, o Mia Couto estivesse a conversar comigo. Pensei: Olha, o Mia Couto está a olhar para mim e a responder à minha pergunta. E, em vez de ouvir a resposta do Mia Couto, que deve ter sido muito interessante, fiquei a pensar em coisas deste tipo: Eu estou a comunicar com o Mia Couto!

Senti então qualquer coisa nova. Uma capacidade qualquer de intervir, de ter um impacto na vida dos outros, incluindo na de escritores bem-educados. Isto encheu-me de esperança relativamente ao mundo. A oportunidade existia. A igualdade existia. A justiça existia. Blablabla. Dar e receber. Aprender e ensinar. Ser e estar.

Palermices.

Dez anos depois, nem há um ano, conheci o Mia Couto em Natal. Conheci mesmo. De dizer: Olá, eu sou a Ana. E o Mia Couto respondeu: Olá, eu sou o Mia. Por acaso acho que foi ao contrário. O Mia Couto apresentou-se e eu depois respondi. Desta vez, ouvi o que o Mia Couto disse, porque enfim, já sou mais crescidinha e a minha atenção já não é constantemente interrompida por pensamentos. Aliás, hoje em dia, é raro ter pensamentos. É um grande silêncio na minha cabeça.

Ora, hoje (ontem) lembrei-me de tudo isto, porque o Mia Couto ganhou e eu fico sempre contente quando o Mia Couto ganha.

Sou do Mia Couto como sou do Benfica. Sou, pronto. Estou sempre a torcer por eles.

E quando as minhas equipas ganham, sinto uma coisa estranha e abstrata que brilha no escuro, algo parecido com aquela palermice de ter esperança no mundo.

Acabo de ler que o Mia Couto quer apoiar os jovens escritores moçambicanos.

É uma luzinha no escuro!

Eu penso* que o Camões deve estar contente.





*Olha, um pensamento!