No outro dia ajudei um homem cego. Eu vinha a descer a rua e vi que o homem estava bloqueado em frente a um poste. Parecia um daqueles bonecos de corda que ficam a dar à perna contra a parede. Enchi-me de bons sentimentos, pobre senhor. A vida é difícil para os invisuais. Agora diz-se invisuais. Cego é coisa do passado. Não vejo nada de mal na palavra cego, por isso digo cego.
Eu sempre quis ser escuteirinha. Penso que teria bastante jeito para ser escuteirinha, mas nunca fui escuteirinha, por isso pensei que esta seria a minha oportunidade. Aproximei-me do homem e agarrei-o pelo braço. O senhor soltou um grito, bruxo, que grande susto. Pedi-lhe desculpa, desolée, expliquei-lhe que o ia ajudar e o senhor agradeceu. Disse-me que ia para a praça não sei quantas. Fingi que esse também era o meu caminho e seguimos em frente. Logo a seguir ao poste, havia um outro poste e o senhor foi direitinho a ele, pimba contra o poste. Eu pedi desculpa, desolée, não estava à espera que o senhor não se desviasse. Os transeuntes olharam-me de olhos atravessados. Alguns até abanaram a cabeça, que pessoa visual mais incompetente. Esforcei-me mais um pouco e desviámo-nos dos postes seguintes, de braço dado, agora para aqui, agora para ali. Aos poucos já estava perita em evitar obstáculos e conquistei a confiança do senhor. A certa altura, estávamos em amena conversa.
O senhor é daqui? Não, sou irlandês, mas vivo em Bruxelas há mais de 20 anos. E gosta? Gosto muito. Irlanda, que bom! Boa gente. Pois é. Conhece? Só Dublim, estive lá num fim de semana, choveu imenso. Sim, chove muito. É como aqui. Pois é. Gosto de beber Guiness. É uma cerveja forte! Pois é. Eu gosto. Tem de voltar à Irlanda. Sim, tenho. Você tem uma voz agradável. Obrigada. Vem de onde? Sou portuguesa. Ai, sim? Sim. De onde? De Lisboa. Que maravilha! Pois é. E vive em Bruxelas? É verdade. Coisa estranha, a vida. Sim, estranha. Conhece Lisboa? Sim, estive uma vez, gostei muito. É uma bonita cidade, não é? O senhor não respondeu logo, coitado, não devia saber o que dizer. Como explicar a beleza que não se vê? Corrigi: É uma cidade simpática, não é? O senhor sorriu um sorriso bonito. Sim, muito simpática. As pessoas são todas muito amáveis, incrível. Os portugueses são um povo bom. Sim, são. Os irlandeses também. Sim, também. Mas estamos na cauda da Europa. Pois é. Não podemos ser bons em tudo. Pois não.
Chegamos à praça não sei quantas e eu larguei o senhor. Olhe, chegamos ao seu destino. Já? Sim. Que bom, muito obrigado pela ajuda! Ora essa. Foi um prazer. O senhor desdobrou a sua bengala e avançou atrás dela, toc-toc, toc-toc. Fiquei a vê-lo caminhar pela rua e reparei que o homem era muito mais lento quando caminhava atrás da sua bengala. Mas muito mais lento. Incrivelmente mais lento. O homem era o ser vivo mais lento em Bruxelas.
Nesse momento apercebi-me de que o homem devia estar cheio de medo nos meus braços desconhecidos e desatentos. Na verdade, deve ter sido horrível para ele acompanhar os meus passos firmes e rápidos.
É portanto provável que eu não tenha ajudado o homem cego.
Visivelmente eu não seria uma boa escuteririnha.
Sou uma visual incompetente.
Não vejo a maior parte das coisas.