Há semanas que a narradora deste texto anda a pensar na senhora das urgências.
Deviam ser três da manhã, mais coisa menos coisa. A autora e a narradora deste texto foram ao hospital. Às vezes, acontece. Nada de grave.
A mulher da receção era gorda. Tinha duplo queixo e braços insuflados. Era preciso esperar, por causa de um acidente, os médicos estavam muito ocupados. Tudo bem, nós esperamos. Aguardem na sala de espera.
Meia dúzia de pessoas na sala de espera, à espera de qualquer coisa. Uma espera longa, de ouvir passar o tempo. A narradora, dada a sua natureza narrativa, não aguentou muito tempo no seu lugar e pôs-se a caminhar pela sala. Três-quatro passos para lá, três-quatro passos para cá. Reparou então na senhora da cadeira de rodas. Uma senhora de vestido e colar de pérolas, o cabelo grisalho e muito composto, metido num carrapito. Uns brincos de brilhar no escuro. Dir-se-ia que a mulher se tinha aperaltado para vir às urgências. Para impressionar os médicos. Não parecia magoada nem inquieta. De súbito, os olhos da mulher olharam para os olhos da narradora. Um olhar de reconhecimento. De ver alguém a ver. A narradora sorriu e a senhora também. Um sorriso triste e cansado. De sala de espera, a ouvir passar o tempo.
Meia dúzia de pessoas na sala de espera, à espera de qualquer coisa. Uma espera longa, de ouvir passar o tempo. A narradora, dada a sua natureza narrativa, não aguentou muito tempo no seu lugar e pôs-se a caminhar pela sala. Três-quatro passos para lá, três-quatro passos para cá. Reparou então na senhora da cadeira de rodas. Uma senhora de vestido e colar de pérolas, o cabelo grisalho e muito composto, metido num carrapito. Uns brincos de brilhar no escuro. Dir-se-ia que a mulher se tinha aperaltado para vir às urgências. Para impressionar os médicos. Não parecia magoada nem inquieta. De súbito, os olhos da mulher olharam para os olhos da narradora. Um olhar de reconhecimento. De ver alguém a ver. A narradora sorriu e a senhora também. Um sorriso triste e cansado. De sala de espera, a ouvir passar o tempo.
A narradora encaminhou-se para a receção, 10 ou 15 passos. Fez perguntas. Se ainda demorava muito, se ia ser atendida em breve. A mulher da receção, além de duplo queixo e braços insuflados, tinha uma caixa ao colo com almôndegas e arroz lá dentro. Mais meia horinha, talvez menos. De certeza? Bom, não há garantias. E alternativas? A esta hora, nenhumas. Merci. A narradora afastou-se. Quando passou pela mulher do carrapito, esta chamou-a com o dedo indicador. Psiu, psiu, psiu, como se faz aos bichos, mas sem o psiu, psiu, psiu. Depois chamou-a com a boca: Mademoiselle.
A narradora deste texto hesitou, claro.
A mulher do carrapito talvez fosse louca ou até uma feiticeira daquelas que transformam as pessoas em bichos. A narradora ficou meio segundo naquela hesitação: Vou, não vou; vou, não vou; vou, não vou. Respondeu com uma pergunta: Oui? A senhora apontou para o saco que trazia consigo. Quer um livro ou uma revista? Como? Se queria ler qualquer coisa. Se queria distrair-se. Trazia uma revista e um livro no saco. Quer?, perguntou a mulher. Não, não, disse a narradora. C'est très gentil, mas não, obrigada. A senhora sorriu o mesmo sorriso triste, de cadeira de rodas. A narradora deste texto voltou a sentar-se no seu lugar, os olhos ainda sobrevoando a senhora do carrapito.
Uma mulher elegante, mesmo àquela hora, sentada numa cadeira de rodas. As pernas longas, o pescoço longo, toda ela um prolongamento de classe.
Estava certamente à espera de alguém. À espera de alguma coisa.
A narradora deste texto também.
A narradora e a senhora da cadeira de rodas tinham qualquer coisa em comum.
Sorriram novamente uma para a outra.