Estou impecavelmente parada, ao frio e ao vento, não mexo um dedo, sou uma estátua.
O melhor da vida é esperar por um autocarro.
Olho à volta para contemplar melhor a espera. A moçoila de cabelo enrolado num novelo deve estar à espera do 38, só pode.
Eu gostava de enrolar o meu cabelo num novelo, mas não sei enrolar o meu cabelo num novelo. Há muitas coisas que eu não sei fazer.
Também não sei andar direitinha dentro de uma gabardina direitinha como este senhor que deve estar à espera do 95. É com certeza trabalhador por conta de outrem e não gosta do que faz, coitado. Acontece. A vida, às vezes, é chata.
A senhora bruta e gorda com caspa nos ombros deve ser do 27. Tem pelo menos cinco filhos, dois frigoríficos, duas máquinas de lavar roupa e um marido que nem se vê bem ao perto.
Há ainda mais pessoas na paragem. Três, sete, dez, somos uns quinze.
Três equipas de pessoas à espera.
Esperar é bonito de se ver. Ninguém sabe estar parado como as pessoas da paragem.
Hoje, jogo na equipa do 95, porque enfim, gosto de torcer pelos fracos.
O 95 é sempre o último a chegar.
Estou a comer amêndoas, não sei porquê. Deu-me para aí. Estavam à venda num supermercado dentro de um saquinho engraçado. São amêndoas a sério, não são das outras, a fingir. As amêndoas da Páscoa, por exemplo, são a fingir.
A Páscoa já acabou há montes de tempo e as lojas belgas continuam a vender ovinhos da Páscoa e coelhinhos da Páscoa e amêndoas da Páscoa. Com 50% de desconto.
Aaaah, finalmente! Uma coisa grande no horizonte, aos solavancos. Qual é coisa qual é ela.
É um autocarro, claro.
O 27, mais precisamente. A senhora com caspa nos ombros está contentinha, não me enganei. A senhora bruta joga no 27, pega nos sacos com garra. O 27 vem sempre apressado, não há tempo a perder. Logo a seguir, outra coisa monstra no horizonte. O 38. É mais pachorrento. As equipas do 27 e do 38 desaparecem, é sempre assim.
Nós, os do 95, ficamos sós e abandonados na paragem, a inalar o fumo e o pó e o perfume e o pólen que os felizardos deixam para trás.
Estou impecavelmente parada e olho à volta para usufruir da espera. Dois adolescentes mascam pastilha. Gostava de pedir uma pastilha aos adolescentes, mas tenho medo deles. Ainda me espremem uma borbulha para cima e depois tenho de ir à farmácia comprar antídoto.
A adolescência pega-se.
Olhos postos no fundo da praça, uma espécie de horizonte. Os que fumam acendem cigarros, na esperança de enganarem o destino. Os que não fumam fazem outras coisas. Mexem no telemóvel, comem amêndoas, consultam o horário, olham para o relógio. O 95 já devia cá estar e não está. O 95 não vale um. Está muito atrasado, se calhar não vem. Paciência, não faz mal, há de vir o seguinte ou o outro a seguir.
Há autocarros de 6 em 6 minutos. Qual é o stress?
Nenhum, não há stress nenhum, a espera é longa e previsível. A espera é como a vida.
Não, não é.
Sim, é.
Não, não é.
A vida, às vezes, é chata. A espera não.
Eu gosto de esperar.
Um autocarro chega, mas não é o desejado, é o 27. O 27 é injusto. Passou um ainda há pouco. O autocarro pára e as pessoas entram, ainda bem. Eu só quero o bem das pessoas. Ide em paz.
A equipa do 95 bufa em uníssono. Já não sou uma estátua. Agora caminho de um lado para o outro. Dois passos em frente, um para trás. Rodo na pata traseira, mais dois passos em frente. A manada do 95 deve estar ali há coisa de 15 minutos.
Ao longe, no horizonte que é o fundo da praça, outro autocarro à vista. Os que não são míopes já perceberam que é o 95 e avançam com as suas malas e mochilas e pastas e saquinhos. Os míopes apercebem-se agora e avançam também. O autocarro pára e abre as portas, é um autocarro acolhedor.
Não, afinal não é um autocarro acolhedor. O autocarro vem cheio, não há lugar para todos.
Algumas pessoas respingam, há uns buraquinhos ali e acolá. As pessoas, se fossem gente, apertavam-se mais um bocadinho e cabíamos todos. Mas as pessoas não são gente.
As pessoas não valem um.
Os mais magrinhos e atrevidos conseguem entrar. Os mais gordos e tímidos não. O condutor consola os meninos gordos e tímidos com um sorriso. Diz: Não se preocupem, vem outro já aí atrás!
Os mais gordos e tímidos ficam na paragem. Eu e os dois adolescentes.
Entreolhamo-nos. Tantas borbulhas, credo.
Penso noutra coisa.
Penso: Antes não gostava tanto de amêndoas, que engraçado.
E de novo se instala a paciência da espera e também a impaciência da traição, porque não vem um 95 já aí atrás. Não vem nenhum 95, ponto. Em dez minutos, passam dois 38 e um 27.
Os jogadores da equipa 95 chutam pedrinhas, porque estão zangados. No entanto, não arredam pé. Ficam ali, à espera. Esperar por um autocarro é um ato de esperança.
Quem nunca esperou por um autocarro não sabe o que é a vida.
Esperar enrijece. Eu, pelo menos, estou mais rija, olhem para isto. Pareço uma pedra. Para a próxima entro no autocarro e levo tudo à frente.
Vão ver.
Estou aqui bruta como as casas.