quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
A mulher de avental não está de avental, mas é como se estivesse.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
Discurso diarístico sem mim – Parte III
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
The Death of Bunny Munro ou o Nick Cave e as suas más sementes ou más intenções or something
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Conto infantil para adultos: O presidente fora de água e a baronesa inglesa
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
História do cerco dos minaretes e das torres de igreja
2. Numa certa época da sua vida, a janela da sala de estar da casa da pessoana tinha vista para a torre de uma igreja. Agora já não é assim, porque pessoana mudou de casa, mas nessa época, nos fins-de-semana, o homem ilimitado acordava muito cedo por causa dos sinos. Ela não. (Os sinos da igreja não a despertam; dão-lhe sono.) Por esta razão, e também pelo facto de ter tido uma educação católica (muito embora não tenha casado pela igreja) e não conhecer um único muçulmano (muito embora viva rodeada deles), a pessoana pensa mais rapidamente em sinos de igrejas do que em almádenas.
3. A pessoana percebe muito pouco (quase nada) de religião e arquitectura, mas tem para si que a almádena está para o islamismo como a torre da igreja está para o cristianismo, porque a almádena e a torre da igreja cumpriam, num passado mais ou menos longínquo, a função de chamar os crentes à oração. (Esta comparação, como é evidente, não é original.) Porém, nos dias que correm, a pessoana tem dúvidas quanto à função das almádenas e das torres de igrejas. Gostaria, aliás, de subir uma almádena ou a torre de uma igreja para perguntar aos fiéis e infiéis: Para que servem as almádenas e as torres das igrejas? A pessoana gostaria também de confessar o seguinte: por princípio, não tem nada contra a ideia de se começar a construir mesquitas sem almádenas, desde que as igrejas passem também a ser construídas sem torres. Tão simples quanto isto.
4. Se Portugal e outros países decidissem o seu futuro com base em referendos e noutras formas de democracia directa, é provável que muitas pessoanas votassem, por exemplo, contra a entrada da Suíça na União Europeia (os suíços decidiram – também por referendo – não pertencer à União Europeia). Muitas pessoanas não percebem nada sobre a Suíça nem sobre a União Europeia e, por isso mesmo, votariam contra a entrada da Suíça na União Europeia. No entender de pessoana e de outras pessoanas, o exercício da democracia directa exprime, não as vontades de um povo nem as suas convicções, mas sim os seus medos. Já se sabe que todos os europeus têm medo dos suíços, incluindo os próprios suíços. Os suíços, por seu turno, também têm medo dos muçulmanos, daí não quererem almádenas. A pessoana, por sua vez, tem medo dos suíços, dos muçulmanos e da democracia directa.
5. É por estas e por outras que pessoana acredita que se vive tão bem sem a democracia directa como se vive sem minaretes e torres de igrejas. A pessoana acredita também noutras coisas, mas não propriamente em Deus. Na verdade, a pessoana tem mais dúvidas do que crenças. Ou seja, é céptica. Isto deve-se, provavelmente, à sua educação católica.
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
Do voo e da queda
Antes disso, pela primeira vez, não tinha chorado ao sobrevoar Lisboa. A cidade surgia inteira e ela não quis saber do rio escuríssimo nem das luzes à beira das estradas. Estava visivelmente preocupada com outras coisas. Desapertou o cinto de segurança antes de ser seguro desapertar o cinto de segurança e pôs a mala a tiracolo para assegurar uma saída de rompante, sem obstáculos. (É preciso um certo vagar para a saudade.)
Não é impossível ficar e voar. Isto segundo Ed Asner, o velhote rezingão que decidiu, justamente, ficar e voar. O último filme da Pixar chama-se Up e fala, mais ou menos, de um homem que decide ficar em casa e voar. Ed Asner tem uma cara quadrada e óculos quadrados: é um homem aos quadradinhos. Ed Asner não existe, por isso teve de ser inventado. Ed Asner é parecido com o meu avô, mas o meu avô existe.
Bruxelas é uma cidade mais profunda e tenebrosa do que a Gotham City do Batman, mas tem mais portas e janelas do que Gotham City. É uma cidade real.
O último livro do Agualusa começa com uma mulher a cair do céu durante uma tempestade tropical. Caiu – veio caindo, nua, negra, de braços abertos – quase ao mesmo tempo que o raio. Era uma boa imagem aquela, da mulher caindo, de braços abertos.
Concluiu que tinha uma certa obsessão por quedas e não por voos. Preferia, por exemplo, o bungee jumping ao parapente. Também gostaria mais de cair na toca do coelho do que de voar para a Terra do Nunca. Não sabia se isto dizia alguma coisa sobre a sua personalidade. Estava-se nas tintas para a sua personalidade.
Por vezes, achava que tinha caído em Bruxelas. De braços abertos. Mas hoje não achava nada disso. Tinha de ir ao supermercado, antes que fechasse.
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
O meu avô e eu
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
Dessi
terça-feira, 17 de novembro de 2009
O aprendiz de guitarrista
Por mais estranho que pareça, não conhece o aprendiz de guitarrista. Conhece, no entanto, a mãe e sabe que o aprendiz é adolescente, tendo em conta a idade previsível da senhora que disfarça a idade e o instrumento musical escolhido. Se fosse criança, o aprendiz tocaria flauta ou xilofone. Se fosse adulto, um instrumento qualquer que não guitarra clássica. (Os únicos adultos que tocam guitarra clássica aprenderam a tocá-la na adolescência. Nenhum adulto é aprendiz de guitarrista. Talvez seja aprendiz de clarinete. De piano. Ou de canto. Mas não de guitarra clássica.)
Esta não é, portanto, uma história de amor. A vizinha de baixo não tem idade para se apaixonar por aprendizes de guitarrista e tem o coração mais ou menos limitado ao homem ilimitado. Esta é uma história sobre música, muito embora aqueles acordes ainda não fossem nada ou quase nada ou, pelo menos, não propriamente música.
É que ontem, às 10 da noite, o aprendiz de guitarrista tocou um conjunto de notas seguidas que, juntas e compassadas, formavam, de facto, uma tímida melodia. O aprendiz de guitarrista repetiu aquele conjunto de notas e a vizinha de baixo parou de ler para ouvir. A vizinha de baixo e o vizinho de cima assitiam juntos e separados, com os olhos, os ouvidos e os dedos, à primeira de todas as melodias. Chegava, nas pontas dos pés, quase imperceptível, e atravessava os tímpanos, o coração, a boca e pousava quase nada no mundo.
O aprendiz de guitarrista repetiu a mesma combinação de notas vezes sem conta até que a melodia se tornou inegável e existiu naquelas paredes para sempre. A vizinha de baixo parou definitivamente de ler. Pousou os óculos e levantou-se. Foi, antes, regar as plantas.
Depois voltou a sentar-se no sofá e ligou a televisão.
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Três desejos
Estes eram os três desejos do narrador que, apesar de minúsculo, comia Kinder Surpresa como gente grande. Os desejos eram também maiores do que ele próprio, como certos sonhos de infância. Queria, urgentemente, uma história, uma personagem, um discurso diarístico. Na verdade, queria qualquer coisa que não aquele silêncio. Urgentemente.
O autor é mais maduro do que o narrador. Além de nada desejar, veste uma misteriosa gabardina preta para o proteger da chuva, do vento e dos outros. Comporta-se, aliás, como os gatos: senta-se contemplativo no parapeito da janela, mas o narrador não tem a certeza se o autor contempla alguma coisa, porque não mexe a cabeça nem as orelhas nem os olhos nem as patas. Ninguém contempla imóvel.
O autor está virado para a janela, por isso não lhe vemos o rosto. Está tão quieto que mais parece uma estátua. Há quatro semanas que não se mexe (na verdade, o narrador tem medo que o autor tenha morrido à janela).
Por vezes, aproxima-se devagar do parapeito, põe-se em bicos dos pés para tocar na cauda longuíssima do autor, mas depois arrepende-se. Regressa ao seu cantinho, mais pequeno do que antes.
Belgavista é nome de peixe.
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
Western revisited: Eleições no Far West
Como previsto, e para grande alívio dos vaqueiros, o rancheiro Rowdy Yates também se candidatara. Era respeitado na povoação e sabia manter a ordem, a julgar pelas suas vacas disciplinadas. Tinha uma mulher e três filhos, sabia ler e escrever.
Os índios não votavam, pelo que a vitória de Rowdy Yates era provável. A contagem de votos terminou na segunda-feira e o xerife cessante anunciou o vencedor no bar do Joe, onde os homens passaram a noite a beber, a comer, a dançar e a copular com mulheres que não as suas. O xerife anunciou, sem surpresas: Rowdy Yates era o vencedor, tendo os homens continuado a festa. O novo xerife subiu para o balcão a custo e recebeu a sua estrela.
Nisto entra no bar do Joe o Cavalo Amarelo. (Os índios nunca entravam no bar do Joe.) Todos os homens se calaram, estupefactos, excepto Rowdy Yates, que lhe perguntou destemido:
- Vens felicitar-me, Cavalo Amarelo?
- Não.
- Convocar-me?!
- Sim.
- Para uma reunião?!
- Não, para um duelo.
Os homens soltaram uma gargalhada em uníssono, incluindo Rowdy Yates. O próprio Cavalo Amarelo esboçara um sorriso. A situação era caricata: já se sabe que os índios nada sabem de pistolas. Rowdy Yates mostrou-se curioso, perguntou genuinamente:
- Queres morrer, Cavalo Amarelo?
- Não.
- Pensas que ganharás um duelo contra mim?
- Sim.
- A sério?
- A sério.
- Muito bem. E para quando queres marcar este duelo?
- Para agora.
O Cavalo Amarelo não espera um segundo. Saca uma caçadeira não se sabe de onde e dispara uma só vez. Depois foge no seu cavalo amarelo. Os homens demoram a reagir, ficam a olhar para o chão, onde jaz Rowdy Yates, de cabeça escancarada, indubitavelmente morto. Não dizem nada.
O xerife cessante sai de cena, retoma as funções. Alguns homens tiram o chapéu. Não era digno morrer daquela maneira, sem pré-aviso e pelas mãos de um índio.
terça-feira, 6 de outubro de 2009
Derramada por Chico Buarque
Tinha acabado de ouvir o Leite Derramado, quando pensou nisto, mas só dias mais tarde se lembrou dessa decisão. Disse: Saio daqui, reentro na chuva, apanho o metro e compro música do Chico Buarque, toda a música do Chico Buarque.
Preocupa-se em arranjar desculpas: O próprio nome Chico Buarque é estrondoso e a canção do Chico Fininho assenta-lhe que nem uma luva. Não consegue levar a sério aquela voz. O seu rosto é certinho, bonitinho, direitinho, tem um certo ar intelectual e as letras das canções são complicadas. Tudo isto a incomoda.
Sim, isto inquieta-a. O conhecimento dos outros de um pedaço de si própria é sempre inquietante. Está derramada por Chico Buarque, quer ouvir a sua voz. Tinha lido o romance anterior há coisa de três anos, quando estava, precisamente, em Budapeste. Só o lera por isso mesmo, porque estava em Budapeste e o livro tinha o nome da cidade. Mais nada. É verdade que tinha gostado do livro, mas apreciou mais a viagem e esqueceu o Chico Buarque ainda durante a estadia: o seu amor era outro, a leitura era acessória. Guardou, contudo, aquele livro na memória e revisitou-o.
Comprou o Leite Derramado porque sim. Lê da mesma maneira como samba e era costume comprar livros porque sim. Também comprava livros por outras razões (por vezes pensava que os livros podiam desaparecer de repente de todas as estantes de todas as livrarias e isto assustava-a).
Quando pensa no livro, lembra-se da voz de Chico Buarque contando a história de um homem centenário que conta, por sua vez, a sua história para não se esquecer dela. Também conta a sua história para não ser esquecido. Nessa história fala da sua obsessão por Matilde, uma mulher "quase castanha" que colhe conchas na praia e ouve "maxixe e samba na vitrola". O homem centenário revive aquele amor, regressa àquele amor, repete esse amor. Também repete outras histórias. Conta tudo isto à enfermeira que se ocupa dele, à filha que o visita, ao neto, a toda a gente, a si próprio, a ninguém. Fala do Brasil, de escravos, de "mil oitocentos e lá vai fumaça", de mangas, capelas, portugueses, franceses, putas, vestidos, droga, religião e de outras coisas. Também fala das suas dúvidas, das suas angústias e convicções.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
Discurso diarístico sem mim – Parte II
terça-feira, 8 de setembro de 2009
Discurso diarístico sem mim – Parte I
O dia 8 de Setembro de 2009 parecia-lhe um óptimo dia para acabar com aquela espera que, como já se disse, não era uma espera, mas sim uma urgência estendida no tempo. O desfasamento entre o corpo e o tempo era tão grande que mais parecia um abismo.
Dito isto, o abismo abriu-se de repente como uma boca ou como uma cortina ou como uma luz ao contrário [por ser negra] e o corpo caiu devido à gravidade ou à vontade de cair [não sabemos].
A professora de português do 5.º ano chamava-se Lídia Inês Pinto e este nome parecia-lhe tão bonito que o corpo desfasado do tempo desconfiava que ela [a professora] era, afinal, uma das suas personagens. Tinha, no seu entender, que era pouco e parcial, um certo jeito para todos os nomes que não o seu e o nome daquela professora parecia-lhe seu e não dela [da professora]. Isto a propósito da escrita, porque a professora fictícia ou real [pouco importa] lhe disse, certa vez, que o discurso diarístico era o princípio da escrita. Depois explicou porquê, mas ela [a do abismo] não se lembrava da razão. Do resto, sim, lembrava-se. Tão claramente como do rio Tejo. Tinha algumas memórias [não muitas, não todas] e aquela era uma delas. A professora podia ser fictícia, mas o conteúdo era real.
O princípio da escrita era, pois [talvez], o início do corpo: eventualmente, o tal coração de passarinho atrás da pálpebra inferior do olho direito.
Para que se saiba, estava a ler o Livro do Desassossego. [Ah!, diz o leitor, daí o seu desassossego, a sua urgência, ou parte dele e parte dela.] Também lia outras coisas ao mesmo tempo, mas o Livro do Desassossego era o princípio de outras coisas. Também fazia parte daquele princípio, mesmo que a posteriori do princípio.
O abismo, de natureza opaca e rugosa, assustava-a, por isso susteve a respiração durante a queda. Também fechou os olhos. Por causa disso ou apesar disso, o coração de passarinho atrás da pálpebra inferior do olho direito parou de bater e houve, dentro da cabeça, um pressentimento de morte.
A morte do coração atrás da pálpebra era, naturalmente, uma coisa boa, porque matava de uma vez por todas, não a urgência, não a saudade, mas, pelo menos, o tempo [perdido]. Assim pensava o coração original, maior do que certos pássaros, e, correndo desvairado, soprou sangue, vento, poeira e escrita pela cabeça, o tronco e os membros.
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Primeiro dia
Não, não era mau envelhecer. Desde que houvesse pão e café de manhã. Desde que a música tocasse aos domingos. E o homem ilimitado assobiasse. Ilimitadamente. À solta pela casa.
sexta-feira, 7 de agosto de 2009
Não obstante as brumas
terça-feira, 4 de agosto de 2009
Os que escrevem
terça-feira, 28 de julho de 2009
Johnny Depp
Há quase 20 anos, na altura da série 21 Jump Street, o Johnny Depp era-me tão indiferente como bróculos cozidos, mas agora já não é assim. Gosto dele como de queijo fresco e eu gosto muito de queijo fresco.
Comecei a ter um fraquinho pelo Johnny Depp na altura do cavaleiro sem cabeça, por causa do rosto muito branco e do fato muito negro, o seu ar sombrio que trazia à memória os vestígios das suas inesquecíveis mãos de tesoura. O Johnny Depp tinha, já nessa altura, o Bem e o Mal no corpo, a Bela e o Monstro.
Este contraste cativa-me.
Quando se vestiu de Willy Wonka, quis saltar para dentro da sua cartola para entrar na sua cabeça. Também simpatizei com a sua madeixa branca e com o seu rosto ainda mais obscuro em Sweeney Todd.
Todas estas personagens e também o facto de Johnny Depp ter encarnado, a certa altura, Sir James Matthew Barrie fizeram com que lhe perdoasse todos os disparates, incluindo o bigode e a pêra que usou naquele filme enjoativo sobre chocolate.
Mas só quando Johnny Depp perdeu definitivamente o tino e pintou os olhos de negro para se transformar em Jack Sparrow é que tive vontade de me atirar ao mar e procurar aquele pirata improvável.
Ora, neste fim-de-semana fui ver o Public Enemies. O Johnny Depp é, nem mais nem menos, John Herbert Dillinger, o bandido americano mais procurado dos anos 30 que assalta bancos como quem rouba ameixas no quintal do vizinho. Johnny Depp anda com uma arma por baixo do sovaco, veste fato completo com colete no meio, frequenta bares de jazz e conquista a belíssima Marion Cotillard com duas frases: I like baseball, movies, good clothes, whiskey, fast cars... and you. What else you need to know?
Isto passou-se no filme, como é evidente, porque, na vida real, qualquer mulher – especialmente a Marion Cotillard – teria passado por cima de Johnny Depp, calcando-o cuidadosamente com os finíssimos saltos altos. Na vida real, com esta deixa, só Al Pacino teria levado a rapariga para casa. Mesmo o Robert De Niro não teria conseguido mais do que um beijinho na testa.
O Johnny Depp é ridículo num papel igual aos outros, porque não é um homem igual aos outros. O Johnny Depp é especial de corrida, tem de ser tratado como tal. O Johnny Depp devia ser fustigado por tentar ser igual aos outros.
Tenho a certeza de que Marion Cotillard não pensaria duas vezes, se tivesse pela frente o pirata das Caraíbas. Também ela se atiraria ao mar.
O Johnny Depp é um saltimbanco e não um assaltante de bancos. E devia levar um par de estalos para ver se aprende a lição.
sexta-feira, 24 de julho de 2009
Teoria da Revolução das Espécies
Para este antropólogo, os factos estavam à vista de todos. Os seres humanos andavam cada vez mais corcundas e tinham feições cada vez mais feias, bastava andar pelas ruas das capitais europeias para perceber isso. As mulheres de hoje tinham visivelmente muito mais pêlos do que antigamente e os homens recomeçavam a comer de boca aberta e eram cada vez mais agressivos. No curto espaço de meio século, era possível ver toda esta regressão (ou melhor, revolução). As próprias classes dirigentes andavam mais animalescas. As trombas do presidente iraniano e os cornos de Manuel A. A. Pinho ilustravam claramente esta tendência. Na sua opinião científica, era possível que, nas próximas três gerações, nascesse o primeiro australopiteco. Isto porque a revolução das espécies se estava a dar muito mais rápido do que a evolução. As pessoas eram cada vez menos inteligentes e tomavam atitudes cada vez mais irracionais.
A pergunta que se coloca é saber quem será a espécie domesticadora. Mas esta teoria, promete o professor Alberto Gago e Esperto, ficará para um outro livro.
É, pois, com impaciência que aguardamos a publicação desta revolucionária Teoria da Revolução das Espécies.
1 "As mulheres ocidentais do século XXI cobrem os pulsos de pulseiras que tilintam com qualquer movimento do corpo. Ora, o som destas pulseiras é muito semelhante ao dos chocalhos das ovelhas. Não me parece que esta semelhança seja uma coincidência."
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Mohammed Ajmal Amir Kasab
O narrador pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab e vê o indivíduo, lamenta o indivíduo, não o compreende, não o aceita e anda preocupado precisamente com o seguinte: se encontrar na rua o rapaz de nome Mohammed Ajmal Amir Kasab, não sabe o que dizer-lhe. Isto porque o narrador deste texto fica de rastos sempre que lhe faltam as palavras, parte do princípio de que o diálogo não é possível sem as palavras.
O autor não esconde que também anda a pensar em Mohammed Ajmal Amir Kasab, mas, na prática, não quer saber do rapaz. Quando pensa nele, pensa nos atentados de Bombaim, como é natural, e depois deixa logo de pensar em Bombaim e na Índia e no mundo, passa a pensar só na Europa e, logo a seguir, só na sua casa. O autor, quando pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab, espera o seguinte: que o terrorismo não chegue a Bruxelas. Depois distrai-se com esta ideia, pensa nos potenciais alvos para um ataque terrorista nesta capital europeia e tem pena de estar ao pé de todos eles.
O narrador deste texto sim, anda preocupado com o rapaz de 21 anos, porque é europeu e acredita na carta dos direitos fundamentais, nomeadamente no artigo 2.º relativo ao direito à vida. Mas enquanto desce a rua enfiado no capuz do autor assusta-se com a ideia de encontrar Mohammed Ajmal Amir Kasab ao virar da esquina, tem vergonha da sua incapacidade para o diálogo, deixa de perceber a razão da sua existência.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
Da noite e do espaço
terça-feira, 14 de julho de 2009
Senhora Eleonora
Observamos a indumentária da senhora Eleonora e reparamos, em primeiro lugar, nos enormes brincos redondos e cor-de-rosa que apontam para a frente no final dos caracóis. Descendo pelo pescoço, apercebemo-nos de que o colar é feito das mesmas esferas cor-de-rosa. Ora, isto causa-nos um certo espanto. Dir-se-ia que a senhora Eleonora, além de ser gorda, ostenta este facto nas orelhas e no pescoço, orgulhosa das suas formas redondíssimas. Nunca tínhamos visto uma mulher deste tamanho com tanta vocação para ser gorda.
Estamos conquistados, por isso observamo-la ainda.
No final da refeição, quando já nada há no prato, enquanto a mulher magra e desinteressante vai dizendo uma outra coisa, a senhora Eleonora pega num pedaço de pão e arrasta-o pelo prato, desenhando círculos perfeitos. Enquanto come olha para o prato imaculado, à procura de vestígios. Não encontra.
Só então nos apercebemos de que não acreditamos em Deus.
Dizemos em tom de correcção: Ainda bem que a senhora Eleonora não é prima-dona.
segunda-feira, 6 de julho de 2009
Das raízes
Tinha, por exemplo, o hábito de cortar as unhas das mãos. Outras mulheres e outros homens também cortavam as unhas das mãos, mas algumas pessoas roíam-nas simplesmente e outras deixavam-nas crescer até que elas se partissem.
Em dias especiais cortava também os cabelos. Nessas alturas não cortava o cabelo a si própria: ia ao cabeleireiro e uma outra pessoa cortava o seu cabelo. Outros seres humanos também iam ao cabeleireiro cortar o cabelo, mas também havia quem cortasse o cabelo em casa, em frente ao espelho.
Naquele dia, porém, a mulher de nome Maria decidiu cortar as raízes. E sem dramatismos, agarrou na tesoura e cortou.
O corte em si não foi doloroso, porque não implicava nenhuma cirurgia, apenas uma manobra parecida com a poda, porque as raízes, como todos sabemos, são como os cabelos e as unhas: voltam a crescer indefinidamente e, em excesso, não fazem falta.
As outras mulheres e os outros homens ficaram muito indignados. Disseram que ninguém podia cortar as raízes, por isso, esquecendo-se das suas outras raízes católicas, atiraram pedras à mulher de nome Maria, que se estava profundamente nas tintas, porque o seu lugar ao sol estava longe dos seres humanos indignados e as pedras não a alcançavam.
Ora, o narrador e o autor deste texto jamais cortariam as suas raízes, apesar de terem mudado de terra há cerca de cinco anos. Gostam de ter as mesmas raízes do início. A mulher de nome Maria não. Nós - autor e narrador - não vemos problema nisso.
sexta-feira, 3 de julho de 2009
A casa (VI)
quarta-feira, 1 de julho de 2009
Coração Independente Dourado
terça-feira, 23 de junho de 2009
A Forma e o Conteúdo
Ora, um dia, estavam a Forma e o Conteúdo a ouvir uma música da Lisa Hannigan em casa da Forma, quando o Conteúdo disse à Forma:
- Amo-te.
A reacção da Forma foi estranha: agarrou no comando e desligou a aparelhagem de música. Depois voltou a ligá-la. Demorou-se com o comando porque queria pôr a mesma canção. A Lisa Hannigan regressou àquele espaço. E a Forma rebolou na direcção oposta ao Conteúdo.
Ele não se importou: gostava de ver a Forma rebolar.
O Conteúdo também não, embora por outros motivos. Tinha a consistência de uma nuvem: quando se mexia, os seus movimentos nasciam desagregados. A Forma pensava que, se o abraçasse, o Conteúdo ganharia mais consistência. Este pensamento agradava-a, por isso aumentou o volume da aparelhagem.
A certa altura, cerca de quatro minutos depois, a canção chegou ao fim.
Acabava-se o pretexto, portanto despediram-se.
A Forma encheu o peito de ar, por isso ficou um pouco maior do que antes.
O Conteúdo tropeçava nas próprias pernas descendo a rua. A vontade de andar era maior do que o corpo. O Conteúdo pensou que, se fosse uma ave, tudo seria mais fácil. Depois pensou noutra coisa, designadamente que o amor era difuso, confuso, complicado.
E assim era.
Assim seria.
terça-feira, 2 de junho de 2009
Facebook, o livro dos rostos
Eu não tenho uma página no livro dos rostos, mas tenho muitos rostos na mesma.
Trago na cara o meu rosto original e nos bolsos os outros todos. Tenho também uma máscara, que é esta, a pessoana.
De uma vez por todas: Não gosto do livro dos rostos. Abomino o livro dos rostos. Não me convidem para o livro dos rostos. Os outros rostos que me desculpem, mas eu não quero uma página no livro dos rostos.
terça-feira, 26 de maio de 2009
Pastelaria de esquina
O rosto da rapariga denuncia-a: é nova e sensível. Não é mulher suficiente para se sentar nas montras dos cafés, por isso observamo-la. O desconforto das mãos enquanto espera por qualquer coisa que as ocupe confirma isso mesmo.
Um empregado aproxima-se. Não é simpático nem antipático. A rapariga ainda não sabe o que quer, mas pede apressadamente qualquer coisa, como se verdadeiramente a quisesse. Não era fã de nenhuma das suas escolhas, mas ansiava por que chegassem à mesa. Não chegam logo.
A vista não é bonita: na verdade é só um enorme corredor de asfalto repleto de carros. No passeio, surgem e desaparecem pessoas de todos os tamanhos e feitios. Um eléctrico guincha na curva. Algumas bicicletas deslizam satisfeitas e, de vez em quando, carrinhos com bebés lá dentro.
Do outro lado da rua há um supermercado aberto. Entram e saem pessoas de caras tortas e cabelos amarrotados. Uma loja de flores está de rosto virado para o sol. Tem tantas flores que a rapariga não consegue ver quem lá trabalha. A rapariga decide comprar um vaso naquela loja. Ou talvez uma planta. Talvez bolbos de tulipas. Isso.
Olha para dentro, ou seja, para a pastelaria. Pede um café e recosta-se na cadeira desconfortável. Um casal observa atentamente a vitrina dos pastéis, parece indeciso. Uma menina muito bem sentada ao colo da mãe acena-lhe atrevida. A rapariga acena de volta. A mãe não se apercebe de nada, fala animadamente com uma outra mulher, atrapalhando os dedos num pastel de feijão. Três rapazes e duas raparigas apertam-se à volta de uma só mesa, comentam uma coisa qualquer divertida. Duas senhoras mais velhas querem pagar a conta e demoram-se a interpretar as moedas. O empregado espeta as duas mãos na cintura e fala para trás do balcão, onde uma moça risonha enfia um pano dentro de um copo. Um casal barrigudo entra na pastelaria e cumprimenta a mãe da menina atrevida. A menina atrevida salta para o chão, dá uma palmada na barriga do homem. Riem-se todos.
As paredes da pastelaria são exageradas: têm uma fonte ao centro e umas janelas alentejanas sem nexo. O empregado devia cortar o cabelo e as pessoas deviam falar mais baixo. A sala perde luz à medida que se entra. Mais um pouco e a escuridão estaria à vista.
A rapariga inicial, de chávena de café na mão, apercebe-se de tudo isto.
Depois olha outra vez para a janela. Para o pedaço feio da cidade.
segunda-feira, 25 de maio de 2009
Conto infantil para adultos: A Bela e o Monstro
Até que um dia se sentia só, tão profundamente só, que até os pedaços de lenha que atirava para a lareira lhe pareciam mais felizes do que ele próprio. Então encaminhava o seu monstruoso corpo até ao quarto da Bela e implorava-lhe perdão durante horas, se não mesmo dias, semanas, meses. Ajoelhava-se no chão, unia as volumosas patas e chorava. A Bela assistia pacientemente ao espectáculo até se render a uma qualquer compaixão que, não sendo enorme, ganhava forma no seu peito.
No entretanto os empregados reuniam-se na cozinha e discutiam sobre quem tinha razão naquela disputa, se a Bela, se o Monstro, e não chegavam a conclusão nenhuma. Eram ambos cruéis e egoístas, além de parecerem incompatíveis.
terça-feira, 19 de maio de 2009
Atracar
E não chegar.
Disse: Atracar.
E, por isso, imaginou.
Depois o corpo. Atracando.
As espias em torno dos pulsos, dos tornozelos, do ventre, o rosto amarrado ao cais, a testa contra o porto (contra os pés do porto), o nariz apertado no pouco ar que afasta o mar da terra.
Nisto um arrepio rolou até ao final das costas.
Tinha frio, talvez. Ou medo.
(Provavelmente saudade.)
O arrepio instalou-se no final das costas e ficou.
Para sempre.
Pensou: Não é mau atracar.
terça-feira, 28 de abril de 2009
O lugar estranho
Quem o disse.
E não o lugar.
O narrador e o autor regressam dia 17 de Maio.
(De um lugar estranho.)
terça-feira, 21 de abril de 2009
O estranho caso do lápis pequeníssimo
Depois afiamo-lo novamente. Ansiosamente.
Arrastamos estes restos de vida para o cesto dos papéis, bem como tudo o que escrevemos com aquele lápis e tudo o que desenhámos, tudo o que desejámos (primeiro os dedos, depois o coração e finalmente a linguagem).
quinta-feira, 16 de abril de 2009
A ideia incomum de V. Moreira
Nem sempre o homem de nome V. Moreira fazia coisas esdrúxulas como naquele dia. Mas certas manhãs havia em que uma ideia incomum caía sobre a sua cabeça tão misteriosamente como o pó sobre as mobílias. E naquele dia assim fora:
Às dez horas da manhã desse tal dia V. Moreira estava na Junta de Freguesia de Vila Real de Santo António a preencher uma declaração para alterar a morada da sua residência permanente. Isto porque o homem de nome V. Moreira se tinha reformado há uns meses e, ganhando consciência de que estava permanentemente de férias, decidira trocar a sua casa de Setúbal pela sua casa no Algarve. Enquanto o senhor Moreira preenchia a declaração, espreitámos por cima do seu ombro e foi nessa altura que aprendemos o último nome deste homem, mas não o primeiro, por falta de oportunidade para uma segunda espreitadela. Estamos, no entanto, convictos de que a primeira letra do seu primeiro nome era V.
A declaração pedia ao homem de nome V. Moreira que indicasse o seu endereço antigo e o senhor Moreira obedeceu. Escreveu Avenida Soeiro Pereira Gomes e antes mesmo de escrever o número, o andar e o código postal, o homem parou de escrever e demorou-se a olhar para o papel. Isto preocupou-nos por motivos óbvios: talvez o homem de nome V. Moreira tivesse esquecido a sua morada em Setúbal ou talvez tivesse saudades dela. Estas hipóteses comprovaram-se, no entanto, erradas, porque o senhor Moreira pensava, não na sua morada, não na sua cidade, mas no próprio Soeiro Pereira Gomes.
É que o homem de nome V. Moreira tinha morado 20 anos na Avenida Soeiro Pereira Gomes, em Setúbal, e há 20 anos que prometia a si mesmo ler um livro daquele escritor. Era, no mínimo, um exercício sensato, dado que conviviam tão intimamente. E, no entanto, finalizadas duas décadas, não só o senhor Moreira não tinha lido um único livro do Soeiro Pereira Gomes, como nunca tinha comprado sequer um exemplar. Na verdade – apercebia-se o homem agora – desconhecia por completo a capa e a contracapa de qualquer um dos livros, nunca lhes tinha sentido o cheiro nem o peso.
Este pensamento transtornava-o. E o homem de nome V. Moreira teve então a ideia incomum de regressar a Setúbal imediatamente. No seu entender, não podia mudar oficialmente de residência enquanto não lesse um livro de Soeiro Pereira Gomes. Sentia-se em falta consigo próprio, com a sua rua, com o escritor.
O homem de nome V. Moreira saiu da Junta de Freguesia de Vila Real de Santo António, mas nós, infelizmente, perdemo-lo de vista logo na primeira esquina, tal era a sua pressa de chegar a casa.
Anos mais tarde, encontrámos o senhor Moreira vagueando pelo Parque do Bonfim. Pelo seu meio-sorriso esclarecido percebemos que tinha lido os Esteiros, bem como todos os outros livros de Soeiro Pereira Gomes. Nunca tinha chegado a mudar de morada e raramente ia até Vila Real de Santo António.
Estava-se bem em Setúbal.
terça-feira, 14 de abril de 2009
Da pessoa e do sentimento
quarta-feira, 1 de abril de 2009
1 de Abril
(E não era. Isto porque o narrador continuava a ditar a mesma história, escondido atrás dos cabelos. No entanto, chegado ao final da mesma, deixou que o autor a publicasse, julgando-a sua.)
terça-feira, 3 de março de 2009
O ninho
(O coração era já maior do que o corpo, a terra tremia debaixo dele.)
O mesmo olhar suspenso, todo ele debruçado sobre o ovo azul, ainda inteiro.
(Igual a outros ovos, mas azul.)
(Igual a outros azúis, mas em forma de ovo.)
Nunca tinha visto um ovo azul, não sabia a cor azul nem o ovo nem o pássaro dentro dele. O rapaz sentou-se no chão, em frente ao ovo azul. Cruzou as pernas e pousou nos joelhos os braços. Assim ficou muito tempo. Tanto tempo. Todo o tempo.
(A cidade era bonita, vista dali.)
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
Conto infantil para adultos: Soldadinhos de chumbo
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009
Adelaide Eugénia Ferreira Varela Rã
O sobrenome Rã era do marido, que havia falecido há uns quinze anos por causa de um cancro nos intestinos. A senhora Eugénia, que preferia aliás o nome Adelaide mas nada podia contra a vontade do povo da freguesia de Cerejo que toda a vida a tratara por Eugénia, continuava a usar o nome Rã porque a ele se habituara, mas aos vizinhos dizia que a razão era outra, mais poética, mais respeitosa, mais leal. Dizia: "Continuo a utilizar o nome Rã para que a memória do meu marido não se perca pelo caminho" e os outros comoviam-se com as palavras da mulher que usava um nome feio em memória de um homem. Não que o senhor José Marco dos Santos Rã tivesse sido um grande homem nem um homem grande, nem sequer um bom homem (na verdade já ninguém na freguesia se lembrava dele), mas o senhor José Marco era o seu homem e isso bastava para que fosse lembrado. Tudo isto era uma maneira de dizer, porque a senhora Eugénia tinha a sua vida tão ocupada com a associação recreativa de Cerejo, que mal se lembrava do José Marco, coitado. O rosto do dito já se tinha dissipado da memória, restando apenas o sorriso torto e o cabelo bem penteado do dia do casamento. À senhora da mercearia dizia a senhora Eugénia em ar de graça: "Beijei a rã em vez do sapo" e a verdade era essa.