quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A mulher de avental não está de avental, mas é como se estivesse.

Para a primeira de todas as mulheres de avental.

A mulher de avental está na cozinha, mas não está a cozinhar nem a lavar a loiça, por isso não está de avental. A cozinha da mulher de avental é a mais bonita de todas as cozinhas, a mais ampla de todas as cozinhas, a mais luminosa. Tem uma janela enorme, mais alta do que as pessoas mais altas e também mais larga do que as pessoas mais largas. A janela da cozinha mais bonita de todas as cozinhas tem o tamanho de uma parede e a mulher de avental está de frente para ela. Observa, agora mesmo, o alpendre da sua casa, o jardim, o pátio longuíssimo. A relva está molhada e muito sozinha por causa do Inverno e da chuva que ele chora. No centro da cozinha há uma mesa de jantar e a mulher de avental está sentada num canto dessa mesa. Por cima da mesa há uma toalha lindíssima e nada mais. A toalha de mesa foi bordada e oferecida pela tia. A roupa jamais secará com aquela humidade. Isto pensa a mulher de avental, enquanto segue os caminhos abstractos da toalha com o dedo indicador. A vida é mais lenta no Inverno, vai por aí, arrastando-se pelo chão da cozinha como uma tartaruga, esconde-se num canto para hibernar. Era o penúltimo dia. A chuva faz barulho ao cair e incomoda os ouvidos e também os olhos, porque não deixa ver mais além. A mulher de avental observa tudo isto e come, cheia de tempo, uma mousse que parece ser de chocolate, mas não é. A mulher de avental come uma mousse de alfarroba e não uma mousse de chocolate. É provável que a mulher de avental goste mais de comer mousse de chocolate do que mousse de alfarroba, mas, neste preciso momento, o seu paladar não está na boca nem no céu da sua boca nem na ponta da língua nem nas papilas gustativas. O paladar da mulher de avental está nos olhos e estes saboreiam a vista ou a falta dela. Não se pode jogar futebol quando a relva está molhada. Por causa disso, não há crianças no pátio, nem vozes, nem jogos, nem nada de nada. Apenas a relva molhada e as casas iguais àquela. A cozinha é muito mais bonita na Primavera, quando o sol vem iluminar a bancada, a cesta de frutos, os electrodomésticos e as peças de alumínio, de vidro, de porcelana. A mulher de avental faz anos no penúltimo dia do ano. Há 38 anos que é assim. Faz o balanço do ano no penúltimo dia. Também faz o balanço dos 38 anos. Faz, portanto, dois balanços ao mesmo tempo. A mulher de avental não está de avental, mas sim de lenço na cabeça, porque perdeu o cabelo. Também emagreceu. Tudo isto se passou em 2009. Proclama aquele ano como o pior de todos os anos. A mulher de avental pensa nisto e não se sente propriamente triste. Noutros dias, sim, sente-se triste, mas hoje não, porque é o penúltimo dia e não o primeiro nem o segundo. Segue, novamente, os caminhos abstractos da toalha com o dedo indicador. A sua esperança é maior do que a janela enorme, ou seja, é maior do que as pessoas. A mulher de avental não está de avental, mas é como se estivesse, porque está a trabalhar a vida como quem trabalha a massa. Decide: Tudo será diferente em 2010, quando a Primavera entrar na cozinha. E levanta-se.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Discurso diarístico sem mim – Parte III

Gostaríamos, francamente, que certas pessoas não existissem ou passassem a não existir, que desaparecessem da face desta Terra e da outra, levadas pela força do vento ou da água ou da terra ou do fogo. Passamos, aliás, muito tempo a imaginar catástrofes naturais ou artificiais que justificassem o desaparecimento dessas tais pessoas e, nos dias menos bons, desejamos que qualquer uma destas catástrofes suceda de facto. Nos dias bons, desejamos apenas que essas pessoas se fossem embora. De preferência, com o rabinho entre as pernas ou então com uma pesada mala de viagem às costas ou a rastejar pelo chão (tanto faz), desde que apanhem o comboio ou o avião ou o foguetão ou a nave espacial. Gostaríamos, com efeito, que nunca mais voltassem atrás nem olhassem para trás nem deixassem nada para trás, nem sequer uma recordação ou uma carta ou um postal ou um número de telefone. Gostaríamos que certas pessoas sumissem da nossa vida com a simplicidade com que o fumo sai das chaminés, para nunca mais regressarem, em estado gasoso ou em qualquer outro estado, à casa de onde saíram. Gostaríamos, aliás, que a nossa vida fosse uma casa, à semelhança da nossa casa inicial ou da nossa casa final ou da nossa casa do meio. Que a nossa vida fosse uma casa e tivesse, pelo menos, quatro paredes, bem isoladas e feitas de betão. Gostaríamos, também, que a vida tivesse uma porta e que todos tivessem de bater nela antes de entrarem. (Não abriríamos a porta a certas pessoas. Andaríamos descalços pela vida-feita-casa para não fazermos barulho e apagaríamos as luzes para que certas pessoas não soubessem que andávamos na vida.) Gostaríamos que a vida tivesse, pelo menos, quatro paredes para as pintarmos de uma cor qualquer ou para nos encostarmos a elas ou para pendurarmos um quadro bonito ou feio. Gostaríamos que a nossa vida fosse uma casa e não esta alameda cheia de semáforos e carros e pombos e pessoas feias, monstruosas, indesejáveis, detestáveis. Gostaríamos, sinceramente, que essas pessoas fossem dar uma volta ao bilhar grande e se perdessem no regresso. Gostaríamos, já agora, que a noite fosse fria, tão inteiramente fria, que essas pessoas tilintassem como passarinhos mas não soubessem voar e chorassem de medo e dormissem ao relento num sítio estranho sem casas nem vidas, apenas relva molhada repleta de bostas de cães vadios ou de gatos vadios ou de pombos doentíssimos. Pensamos em tudo isto e desejamo-lo com toda a convicção, embora saibamos que nenhum destes desejos se realizará num futuro próximo ou longínquo, mesmo que desejemos tudo isto com muito força e várias vezes por dia, à luz de velinhas secretas. Imaginamos, no entanto, todas as catástrofes naturais e artificiais e, de todas elas, temos preferência pelo furacão, porque gostamos de vento e de drama. Imaginamos o furacão e sentimo-nos, efectivamente, felizes. Gostaríamos, sem dúvida, que certas pessoas fossem levadas por um furacão para um sítio qualquer e que nunca mais conseguissem pentear o cabelo nem andar a direito por causa das 1001 rotações do corpo durante a viagem. Na verdade, sempre que falamos com essas pessoas ou sempre que as vemos ou ouvimos ou sentimos ou pressentimos, imaginamos este furacão. Fantasiamos, depois, o uivo ensurdecedor do vento, o cabelo desgrenhado dessas tais pessoas, as suas perninhas ridículas abanando no céu, cada vez mais longe desta Terra. Depois caímos, naturalmente, na real e apercebemo-nos de que a nossa preferência pelo furacão tem mais a ver com o Feiticeiro de Oz do que com o nosso profundo desejo de ver desaparecer certas pessoas.
Concluímos, então, que continuamos a preferir a ficção à realidade. E gostaríamos, com toda a franqueza, que certas pessoas não existissem de todo. Nem a sério, nem a brincar.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

The Death of Bunny Munro ou o Nick Cave e as suas más sementes ou más intenções or something

O Nick Cave podia ter saído de um filme de animação, por causa das pernas muito magras, demasiado longas, das suas más sementes e dos olhos profundíssimos como poços (no fundo dos quais cantamos para o céu que vemos ao fundo) e da testa montanhosa (no cimo da qual vive um pastor que talvez seja um ciclope). O Nick Cave bem podia ser uma personagem de um filme de animação de Tim Burton (e a ideia nem sequer é do autor nem do narrador deste texto), porque é branquíssimo e se veste de preto e tem um ar meio fúnebre ou maquiavélico ou infernal, próprio de quem emergiu das profundezas de um vulcão ou das Brumas de Avalon ou de Gotham City ou de um qualquer sítio desconhecido dos comuns mortais ou dos imortais mais puros, por estes não saberem o mal que habita por baixo da superfície, no centro da terra ou no fundo do mar. A propósito disto, o narrador e o autor deste texto dão-se conta de que ouvem Nick Cave preferencialmente por baixo da terra, quando andam de metro pela Gotham City e não de eléctrico nem de autocarro. Curiosamente, Nick Cave escreveu The Death of Bunny Munro num autocarro ou, pelo menos, parte do livro. Estava em digressão na Europa e escreveu esta tal morte de Bunny Munro em 6 semanas, no seu iPhone, cujo teclado exige mais precisão aos dedos do que um piano ou uma flauta ou uma máquina de calcular or something. O Nick Cave emerge do seu vulcão e traz metáforas desse outro mundo, acrescentando, quase sempre, qualquer coisa or something: Her face is the purple colour of an aubergine or something. Isto pensa, por exemplo, Bunny Munro sobre o rosto arroxeado da mulher. Bunny Munro pensa sobre várias coisas, entre elas sobre a sua mulher e também sobre todas as outras mulheres, especialmente nos possíveis formatos das suas vaginas. Bunny Munro é, naturalmente, um tarado sexual que, além de alcóolico, é, possivelmente, a pior pessoa do mundo. Isto no entender de Nick Cave, que apresentou o seu livro também no Arenbergschouwburg, um lugar impossível com nome inefável em Antuérpia, onde a pessoana, o homem ilimitado e a capuchinho vermelho estiveram numa certa noite de Outubro, só para o ver cantar, tocar e ler certos excertos de certos capítulos do seu livro. (A certa altura, Bunny takes a deep breath and allows himself to open up to her vibes like a medium or spiritualist or something.) O Nick Cave podia ter saído de um filme de animação do Tim Burton, é certo, mas o Tim Burton, que tem sete cabeças e sete vidas para a sétima arte e uma criatividade que mais parece uma cascata or something, jamais poderia ter criado o Nick Cave, a não ser que os homens criassem deuses ou os rios parissem mares, o que até pode ser o caso. O Nick Cave é maior do que Tim Burton. Ou seja, Nick Cave até podia ter criado Tim Burton, mas nunca o contrário, a não ser que a arte seja maior do que o criador, o que até pode ser o caso. E nesse caso, Nick Cave é, de facto, uma personagem de ficção, um produto imaginário, uma criação sem corpo, o que não é verdade, porque o autor e o narrador deste texto viram-no ali à frente, a cerca de 30 metros, em carne e osso, a tocar e a cantar Hold on to yourself e a ler pedaços da tal morte de Bunny Munro. Desculpem a interrupção, mas o narrador deste texto tem, dentro da cabeça, uma outra cabeça que o censura e critica e recrimina como uma madrasta má. Diz-lhe insistentemente: "Não és nada em comparação com as sobrancelhas de Nick Cave". A outra cabeça do narrador, que é blogueira nas horas livres como outros são palhaços, concorda com a cabeça madrasta. Ambas presenciaram o concerto intimista do Nick Cave, que apresentou o seu livro e leu o seu livro e tocou e cantou e falou como se estivesse na sua sala de estar ou de ser. Respondeu também a todas as perguntas. Aproximava-se do público, perguntava: Any questions? e as pessoas falavam alto, tratavam-no por Mr. Cave, perguntavam-lhe tudo e mais alguma coisa. (A pessoana e companhia ficaram caladinhas que nem uns ratos. Os olhos sem fundo do Mr. Cave, as suas mãos soltas, desarticuladas, independentes, o compasso irónico das pernas, o timbre acertado, de quem já tudo fez e tudo ganhou e perdeu, e tudo provou e conheceu, como só o Diabo terá provado e conhecido: tudo isso assustou pessoana e companhia.) O Nick Cave escreveu um livro sobre vaginas e outros mistérios em 6 semanas, usando para o efeito o teclado do seu iPhone enquanto atravessava a Europa de autocarro. A pessoana, que é boa pessoa mas não é nada em comparação com as sobrancelhas de Nick Cave, anda a ouvir e a ler Nick Cave. De momento, não precisa de mais nada, não deseja mais nada, não lhe apetece mais nada. Nem mesmo para o Natal. (Ainda assim, se alguém lhe der como prenda o saco de pano que a FNAC anda a oferecer na compra do livro, ficará extremamente feliz, como se, de facto, o desejasse.)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Conto infantil para adultos: O presidente fora de água e a baronesa inglesa

A baronesa inglesa é a menina mais feia das redondezas. Tem cabelo insonso e falta de queixo. Mesmo assim, insistiu em que queria casar e colocou-se muito carochinha à janela. Para espanto de todos, a baronesa mais feia das redondezas encontrou, não um barão durão, mas sim um presidente com quem casar. O presidente tinha, infelizmente, um ar ridículo, por causa dos olhos esbugalhados, iguais aos de um cherne fora de água, mas a baronesa não se importou e apaixonou-se em três tempos, qual dona de casa desesperada. Ontem à noite, a baronesa e o presidente foram passear juntos ao centro da cidade. Todos os meninos das redondezas vieram vê-los passar e concordaram que, apesar da sua fealdade, a baronesa e o seu presidente faziam um casal simpático. Isto porque ambos tinham um nariz impossível, à Cyrano de Bergerac, e um sorriso muito torto, de criança mal-intencionada. A baronesa e o presidente passeavam-se pela rua e todos sorriam para eles, porque mais pareciam dois duendes saídos de um conto de fadas. Há quem diga que a baronesa e o presidente vinham de mãos dadas.
O nosso desejo é que, ao darem um beijo, se transformem.
Em meninos de verdade.

Nota do narrador: Esta história não tem nada a ver com a baronesa Catherine Ashton nem com o presidente José Manuel Barroso, porque, como todos sabem, ambos estão muito bem casados com outras pessoas e não andam de mãos dadas na rua. Só por isso.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

História do cerco dos minaretes e das torres de igreja

1. A única altura na vida em que pessoana pensou em minaretes foi enquanto lia a História do Cerco de Lisboa. (O José Saramago prefere a palavra almádena à palavra minarete. A pessoana também.) A História do Cerco de Lisboa tem pouco mais de 200 páginas, pelo que a pessoana não passou muito tempo da sua vida a pensar em almádenas. As descrições de José Saramago são, porém, inesquecíveis e a pessoana jamais se esqueceria do almuadem cego e das escadas em caracol da almádena.

2. Numa certa época da sua vida, a janela da sala de estar da casa da pessoana tinha vista para a torre de uma igreja. Agora já não é assim, porque pessoana mudou de casa, mas nessa época, nos fins-de-semana, o homem ilimitado acordava muito cedo por causa dos sinos. Ela não. (Os sinos da igreja não a despertam; dão-lhe sono.) Por esta razão, e também pelo facto de ter tido uma educação católica (muito embora não tenha casado pela igreja) e não conhecer um único muçulmano (muito embora viva rodeada deles), a pessoana pensa mais rapidamente em sinos de igrejas do que em almádenas.

3. A pessoana percebe muito pouco (quase nada) de religião e arquitectura, mas tem para si que a almádena está para o islamismo como a torre da igreja está para o cristianismo, porque a almádena e a torre da igreja cumpriam, num passado mais ou menos longínquo, a função de chamar os crentes à oração. (Esta comparação, como é evidente, não é original.) Porém, nos dias que correm, a pessoana tem dúvidas quanto à função das almádenas e das torres de igrejas. Gostaria, aliás, de subir uma almádena ou a torre de uma igreja para perguntar aos fiéis e infiéis: Para que servem as almádenas e as torres das igrejas? A pessoana gostaria também de confessar o seguinte: por princípio, não tem nada contra a ideia de se começar a construir mesquitas sem almádenas, desde que as igrejas passem também a ser construídas sem torres. Tão simples quanto isto.

4. Se Portugal e outros países decidissem o seu futuro com base em referendos e noutras formas de democracia directa, é provável que muitas pessoanas votassem, por exemplo, contra a entrada da Suíça na União Europeia (os suíços decidiram – também por referendo – não pertencer à União Europeia). Muitas pessoanas não percebem nada sobre a Suíça nem sobre a União Europeia e, por isso mesmo, votariam contra a entrada da Suíça na União Europeia. No entender de pessoana e de outras pessoanas, o exercício da democracia directa exprime, não as vontades de um povo nem as suas convicções, mas sim os seus medos. Já se sabe que todos os europeus têm medo dos suíços, incluindo os próprios suíços. Os suíços, por seu turno, também têm medo dos muçulmanos, daí não quererem almádenas. A pessoana, por sua vez, tem medo dos suíços, dos muçulmanos e da democracia directa.

5. É por estas e por outras que pessoana acredita que se vive tão bem sem a democracia directa como se vive sem minaretes e torres de igrejas. A pessoana acredita também noutras coisas, mas não propriamente em Deus. Na verdade, a pessoana tem mais dúvidas do que crenças. Ou seja, é céptica. Isto deve-se, provavelmente, à sua educação católica.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Do voo e da queda

A avó disse que não gostava nada de andar de avião, mas que sempre desejou fazer parapente. Depois falou da diferença entre as duas coisas. Fazer parapente estava mais perto de voar. Concordei. Estávamos de mãos dadas, no velório do avô.

Antes disso, pela primeira vez, não tinha chorado ao sobrevoar Lisboa. A cidade surgia inteira e ela não quis saber do rio escuríssimo nem das luzes à beira das estradas. Estava visivelmente preocupada com outras coisas. Desapertou o cinto de segurança antes de ser seguro desapertar o cinto de segurança e pôs a mala a tiracolo para assegurar uma saída de rompante, sem obstáculos. (É preciso um certo vagar para a saudade.)

Não é impossível ficar e voar. Isto segundo Ed Asner, o velhote rezingão que decidiu, justamente, ficar e voar. O último filme da Pixar chama-se Up e fala, mais ou menos, de um homem que decide ficar em casa e voar. Ed Asner tem uma cara quadrada e óculos quadrados: é um homem aos quadradinhos. Ed Asner não existe, por isso teve de ser inventado. Ed Asner é parecido com o meu avô, mas o meu avô existe.

Bruxelas é uma cidade mais profunda e tenebrosa do que a Gotham City do Batman, mas tem mais portas e janelas do que Gotham City. É uma cidade real.

O último livro do Agualusa começa com uma mulher a cair do céu durante uma tempestade tropical. Caiu – veio caindo, nua, negra, de braços abertos – quase ao mesmo tempo que o raio. Era uma boa imagem aquela, da mulher caindo, de braços abertos.

Concluiu que tinha uma certa obsessão por quedas e não por voos. Preferia, por exemplo, o bungee jumping ao parapente. Também gostaria mais de cair na toca do coelho do que de voar para a Terra do Nunca. Não sabia se isto dizia alguma coisa sobre a sua personalidade. Estava-se nas tintas para a sua personalidade.
A Cat Woman caiu da janela, perdeu uma vida. O Batman voa. E ela gostava mil vezes mais da Cat Woman do que do Batman. Também tinha uma queda para a Cat Power, que tinha, por seu turno, uma certa queda para cair.

Por vezes, achava que tinha caído em Bruxelas. De braços abertos. Mas hoje não achava nada disso. Tinha de ir ao supermercado, antes que fechasse.
(Como aqui se disse, é preciso um certo vagar para a saudade.)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O meu avô e eu

Para o meu avô.


O meu avô morreu. Chamava-se Fernando Pessoa, mas não era poeta, era engenheiro.
Quando decidi estudar alemão na universidade, bateu-me nas costas três vezes. Disse-me que eu era a primeira da família a estudar Letras. (No peso da sua mão estava o peso da família inteira.)
O meu avô batia-me nas costas três vezes, quando eu fazia qualquer coisa acertada ou quando ele pensava que eu tinha feito alguma coisa acertada.
Também me disse que o alemão era uma língua fácil para quem tinha estudado latim. (O alemão é uma língua difícil, mesmo para quem tenha estudado latim, mas eu nunca disse isto ao avô.)
O meu avô não discutia as suas ideias: a própria ideia de discutir ideias irritava-o.
Ninguém discute com o avô Fernando.
O meu avô conta uma história e abre muito a mão direita para mostrar a dimensão da sua história, da sua inteligência, do seu feito. O meu avô conta uma história, várias histórias, mil e uma histórias, sempre as mesmas histórias. Fala dos pretos, de África, do Antigo Regime, diz mal de quase todos os povos, e todos o ouvimos respeitosamente. Ninguém discute com o avô Fernando.
Certo dia, quase sem querer, saí de Portugal. Estava na Alemanha há cerca de um ano e o meu avô sentou-se ao meu lado.
(Foi a primeira e única vez que o meu avô se sentou ao meu lado.)
Disse-me: Sobre essa tua decisão de viver no estrangeiro, interessa-me saber uma coisa. E nisto abriu a tal mão direita, para me mostrar o peso dessa coisa.
(Até então, eu não tinha consciência de ter tomado decisões na vida. A ideia de ter decidido viver no estrangeiro assustava-me.)
Prosseguiu: Eu queria saber, justamente, qual é o teu objectivo. E repetiu, apontando para mim: O teu objectivo.
Nessa altura e mesmo hoje em dia, fixar objectivos parece-me uma tarefa tão ou mais difícil do que aprender alemão, por isso, em vez de falar sobre temas difíceis, falei de outras coisas: da Alemanha, dos alemães, da importância daquela experiência. Falei também da Europa, de como era fácil viajar na Europa, de como o mundo estava tão perto. Disse-lhe ainda que queria estar sozinha, fazer qualquer coisa sozinha, descobrir qualquer coisa sozinha. O meu avô ouviu tudo isto com muita atenção, mas no final perguntou-me: E o teu objectivo? Qual é o teu objectivo?. Insistiu: Tens de ter um objectivo!. Encolhi os ombros. Respondi-lhe que o meu objectivo era conseguir. O meu avô bateu-me três vezes nas costas e levantou-se. Eu levantei-me também. Depois repetiu com o ar mais sério do mundo, como se o meu futuro começasse ali: O teu objectivo é conseguir.
O meu avô só não foi poeta, porque não quis.
Quando eu crescer, quero ser poeta. E conseguir como ele conseguiu. Para que ele me bata nas costas três vezes.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Dessi

Para a Dessi.

Chama-se Dessislava e faz 28 anos. A Dessislava é como o Dorian Gray, só que é uma mulher do século XXI e não tem um retrato secreto. A Dessislava é jovem para sempre, porque tem um riso fácil e um cabelo um pouco ingénuo, aos caracóis. Ou então porque é pequena ou parece pequena e encolhe os ombros quando se ri. A Dessislava ri à gargalhada, mas não faz muito barulho quando ri à gargalhada. Ninguém trata a Dessislava por Dessislava, toda a gente a chama Dessi. A Dessi abraça as pessoas, dá-lhes beijinhos. Tem uns dedos pequeninos e toca ao de leve nos nossos ombros, nas nossas mãos, diz que nos adora, que tem saudades nossas, que quer sair connosco, beber connosco, dançar connosco. A Dessi diz isto a toda a gente. A Dessi faz perguntas. A Dessi faz algumas perguntas descabidas. Outras perguntas são muito íntimas. Também faz perguntas políticas, perspicazes, profundas, de resposta difícil. Nem sempre ouve as nossas respostas às suas perguntas. Não sabemos porquê. A Dessi anda à procura do amor, da humanidade e de outras coisas abstractas. Tem um emprego das 9 às 5, é competente. A Dessi foi sozinha ao Chile. Também foi sozinha ao Japão e ao Havai, conhece sempre muitas pessoas nessas viagens. A Dessi conhece muitas pessoas em todo o mundo. Nasceu numa pequena aldeia na Bulgária, mas nós não sabemos onde fica essa aldeia. Já conhecemos a sua mãe, uma mulher cheia de força com música nos dedos que se mudou para Iémen. A Dessi foi a Iémen visitar a mãe. Há turistas que não voltam de Iémen. A Dessi voltou. Tivemos medo de que não voltasse. A Dessi podia ser uma personagem, mas é uma pessoa de verdade. Nós gostamos muito da Dessi.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O aprendiz de guitarrista

O vizinho de cima toca guitarra. Não, não toca guitarra, está a aprender. Dedilha as cordas, nota ante nota. Anda há meses nisto. Chamemos-lhe aprendiz de guitarrista.
Felizmente, toca guitarra clássica e o seu quarto fica por cima da sala de estar e não do quarto de dormir. A vizinha senta-se no sofá a ler uma revista e gosta de ouvir aquela guitarra, aprendeu a ouvir aquela guitarra, já sabe distinguir, por exemplo, os acordes novos dos antigos.
É verdade que aqueles sons ainda não são música, mas a vontade do aprendiz cativa-a. A vizinha de baixo gosta do aprendiz de guitarrista como quem gosta de um pássaro ou de um eléctrico repetido ao fundo da rua: o som conhecido sossega-a. Também a sossega a vontade do aprendiz de guitarrista, a sua perseverança, o seu entusiasmo.
O aprendiz de guitarrista fá-la pensar que talvez o mundo avance.
Por mais estranho que pareça, não conhece o aprendiz de guitarrista. Conhece, no entanto, a mãe e sabe que o aprendiz é adolescente, tendo em conta a idade previsível da senhora que disfarça a idade e o instrumento musical escolhido. Se fosse criança, o aprendiz tocaria flauta ou xilofone. Se fosse adulto, um instrumento qualquer que não guitarra clássica. (Os únicos adultos que tocam guitarra clássica aprenderam a tocá-la na adolescência. Nenhum adulto é aprendiz de guitarrista. Talvez seja aprendiz de clarinete. De piano. Ou de canto. Mas não de guitarra clássica.)
Esta não é, portanto, uma história de amor. A vizinha de baixo não tem idade para se apaixonar por aprendizes de guitarrista e tem o coração mais ou menos limitado ao homem ilimitado. Esta é uma história sobre música, muito embora aqueles acordes ainda não fossem nada ou quase nada ou, pelo menos, não propriamente música.
É que ontem, às 10 da noite, o aprendiz de guitarrista tocou um conjunto de notas seguidas que, juntas e compassadas, formavam, de facto, uma tímida melodia. O aprendiz de guitarrista repetiu aquele conjunto de notas e a vizinha de baixo parou de ler para ouvir. A vizinha de baixo e o vizinho de cima assitiam juntos e separados, com os olhos, os ouvidos e os dedos, à primeira de todas as melodias. Chegava, nas pontas dos pés, quase imperceptível, e atravessava os tímpanos, o coração, a boca e pousava quase nada no mundo.
O aprendiz de guitarrista repetiu a mesma combinação de notas vezes sem conta até que a melodia se tornou inegável e existiu naquelas paredes para sempre. A vizinha de baixo parou definitivamente de ler. Pousou os óculos e levantou-se. Foi, antes, regar as plantas.
Voltava a preenchê-la aquela esperança de que talvez o mundo avançasse.
Na arte, tudo era possível.
Depois voltou a sentar-se no sofá e ligou a televisão.
O aprendiz de guitarrista continuou a tocar a mesma melodia. Devagarinho. Igual ao mundo.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Três desejos

Brevemente neste blogue, um dos três desejos.

Uma história. Uma personagem. Um discurso diarístico.
Estes eram os três desejos do narrador que, apesar de minúsculo, comia Kinder Surpresa como gente grande. Os desejos eram também maiores do que ele próprio, como certos sonhos de infância. Queria, urgentemente, uma história, uma personagem, um discurso diarístico. Na verdade, queria qualquer coisa que não aquele silêncio. Urgentemente.
Nos tempos livres, o narrador costumava brincar com as retroexcavadoras cor-de-laranja que descobria dentro dos ovinhos, mas ultimamente só tem comido o ovo de chocolate e deita fora os brinquedos.
O autor é mais maduro do que o narrador. Além de nada desejar, veste uma misteriosa gabardina preta para o proteger da chuva, do vento e dos outros. Comporta-se, aliás, como os gatos: senta-se contemplativo no parapeito da janela, mas o narrador não tem a certeza se o autor contempla alguma coisa, porque não mexe a cabeça nem as orelhas nem os olhos nem as patas. Ninguém contempla imóvel.
Era a opinião do narrador. À falta de metafísica naquela casa, come chocolates, mas não brinca. Tem três desejos mais fortes do que ele próprio.
Diz em voz alta: Uma história. Uma personagem. Um discurso diarístico.
Repete: Uma história. Uma personagem. Um discurso diarístico.
Depois grita, chora, esperneia.
O autor está virado para a janela, por isso não lhe vemos o rosto. Está tão quieto que mais parece uma estátua. Há quatro semanas que não se mexe (na verdade, o narrador tem medo que o autor tenha morrido à janela).
Por vezes, aproxima-se devagar do parapeito, põe-se em bicos dos pés para tocar na cauda longuíssima do autor, mas depois arrepende-se. Regressa ao seu cantinho, mais pequeno do que antes.
Hoje, no entanto, pela hora de almoço, algo acontece:
Belgavista é nome de peixe.
É o que diz, de repente, o autor. Depois salta para o chão e começa a lamber as próprias patas. É previsível que, além da vontade de escrever, tenha uma pontinha de fome. Daí a alucinação.
O narrador dá um pulo de contente, mas continua a comer chocolate. Na sua modesta opinião, Belgavista não é nome de peixe.
Mas isso, agora, pouco importa.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Western revisited: Eleições no Far West

Um índio candidatou-se a xerife. Era a primeira vez que tal sucedia no Far West. Esse índio chamava-se Jlin-Litzoque (Cavalo Amarelo) e pescava no rio com uma lança. Também lia o futuro no movimento da água e falava com a lua.
No bar do Joe, todos à excepção das mulheres discutiam as eleições, os direitos dos índios, o futuro da América.
Como previsto, e para grande alívio dos vaqueiros, o rancheiro Rowdy Yates também se candidatara. Era respeitado na povoação e sabia manter a ordem, a julgar pelas suas vacas disciplinadas. Tinha uma mulher e três filhos, sabia ler e escrever.
Os índios não votavam, pelo que a vitória de Rowdy Yates era provável. A contagem de votos terminou na segunda-feira e o xerife cessante anunciou o vencedor no bar do Joe, onde os homens passaram a noite a beber, a comer, a dançar e a copular com mulheres que não as suas. O xerife anunciou, sem surpresas: Rowdy Yates era o vencedor, tendo os homens continuado a festa. O novo xerife subiu para o balcão a custo e recebeu a sua estrela.
Nisto entra no bar do Joe o Cavalo Amarelo. (Os índios nunca entravam no bar do Joe.) Todos os homens se calaram, estupefactos, excepto Rowdy Yates, que lhe perguntou destemido:
- Vens felicitar-me, Cavalo Amarelo?
- Não.
- Vens anunciar a tua derrota?
- Não.
- Então, o que fazes aqui?
- Venho convocar-te.
- Convocar-me?!
- Sim.
- Para uma reunião?!
- Não, para um duelo.
Os homens soltaram uma gargalhada em uníssono, incluindo Rowdy Yates. O próprio Cavalo Amarelo esboçara um sorriso. A situação era caricata: já se sabe que os índios nada sabem de pistolas. Rowdy Yates mostrou-se curioso, perguntou genuinamente:
- Queres morrer, Cavalo Amarelo?
- Não.
- Pensas que ganharás um duelo contra mim?
- Sim.
- A sério?
- A sério.
- Muito bem. E para quando queres marcar este duelo?
- Para agora.
O Cavalo Amarelo não espera um segundo. Saca uma caçadeira não se sabe de onde e dispara uma só vez. Depois foge no seu cavalo amarelo. Os homens demoram a reagir, ficam a olhar para o chão, onde jaz Rowdy Yates, de cabeça escancarada, indubitavelmente morto. Não dizem nada.
O xerife cessante sai de cena, retoma as funções. Alguns homens tiram o chapéu. Não era digno morrer daquela maneira, sem pré-aviso e pelas mãos de um índio.
Mas no Far West era assim, morria-se por tudo e por nada. A dignidade era tão longínqua como o resto da terra.
O mesmo sucedia, por exemplo, em Vila Real.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Derramada por Chico Buarque

Quando sair daqui, vou comprar música do Chico Buarque, toda a música do Chico Buarque.
Tinha acabado de ouvir o Leite Derramado, quando pensou nisto, mas só dias mais tarde se lembrou dessa decisão. Disse: Saio daqui, reentro na chuva, apanho o metro e compro música do Chico Buarque, toda a música do Chico Buarque.
Não tem uma única música do Chico Buarque e tem pena, vergonha, raiva de si mesma, porque aprendeu a dançar samba no Rio de Janeiro e canta Caetano Veloso no duche. Não sabe porquê, tenta perceber porquê.
Observa: há qualquer coisa de profundamente inquietante na voz de Chico Buarque, nos seus lábios, nos seus cabelos. Uma certa manha de rapousa, uma astúcia de cavalo de Tróia e ela não gosta disso. Dança samba despreocupadamente, "como se pulasse corda", igual à Matilde que derrama o leite.
Preocupa-se em arranjar desculpas: O próprio nome Chico Buarque é estrondoso e a canção do Chico Fininho assenta-lhe que nem uma luva. Não consegue levar a sério aquela voz. O seu rosto é certinho, bonitinho, direitinho, tem um certo ar intelectual e as letras das canções são complicadas. Tudo isto a incomoda.
Tudo isto estava prestes a mudar, porque tinha acabado de ler o Leite Derramado e apercebera-se do seguinte: os olhos de Chico Buarque, a sua voz, o seu perfil, todo ele tinha alguma coisa de profundamente feminino. E isso era, de facto, inquietante. Com Caetano também era assim, mas Chico Buarque emanava, de facto, um entendimento feminino do mundo, era conhecedor da mulher por fora e por dentro.
Sim, isto inquieta-a. O conhecimento dos outros de um pedaço de si própria é sempre inquietante. Está derramada por Chico Buarque, quer ouvir a sua voz. Tinha lido o romance anterior há coisa de três anos, quando estava, precisamente, em Budapeste. Só o lera por isso mesmo, porque estava em Budapeste e o livro tinha o nome da cidade. Mais nada. É verdade que tinha gostado do livro, mas apreciou mais a viagem e esqueceu o Chico Buarque ainda durante a estadia: o seu amor era outro, a leitura era acessória. Guardou, contudo, aquele livro na memória e revisitou-o.
Comprou o Leite Derramado porque sim. Lê da mesma maneira como samba e era costume comprar livros porque sim. Também comprava livros por outras razões (por vezes pensava que os livros podiam desaparecer de repente de todas as estantes de todas as livrarias e isto assustava-a).
Além de tudo isso, também gosta das capas da Dom Quixote, os relevos das letras atraem as pontas dos dedos e dos olhos. Era branca, a capa. O Chico Buarque estava mais bonito com a idade, uma injustiça para os outros, que ficam, por norma, mais feios. Trouxe o livro para outro lugar e leu-o em três tempos: o primeiro tempo passou-se num quarto de hotel, o segundo tempo no comboio, o terceiro tempo no avião. Na verdade, talvez nada disto tenha acontecido, porque a sua sensação era a de que ouvira o Leite Derramado e não que o lera.
Quando pensa no livro, lembra-se da voz de Chico Buarque contando a história de um homem centenário que conta, por sua vez, a sua história para não se esquecer dela. Também conta a sua história para não ser esquecido. Nessa história fala da sua obsessão por Matilde, uma mulher "quase castanha" que colhe conchas na praia e ouve "maxixe e samba na vitrola". O homem centenário revive aquele amor, regressa àquele amor, repete esse amor. Também repete outras histórias. Conta tudo isto à enfermeira que se ocupa dele, à filha que o visita, ao neto, a toda a gente, a si próprio, a ninguém. Fala do Brasil, de escravos, de "mil oitocentos e lá vai fumaça", de mangas, capelas, portugueses, franceses, putas, vestidos, droga, religião e de outras coisas. Também fala das suas dúvidas, das suas angústias e convicções.
Um discurso tão real como a voz de Chico Buarque dentro dele.
Ouviu o livro e ficou derramada por Chico Buarque. Queria ouvir mais aquela voz e, enquanto não era hora de sair, vai ao Youtube. Ouve a Construção como se fosse a última canção.
O Chico Buarque inquieta-a. E ela gosta.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Discurso diarístico sem mim – Parte II

Não escrevia desde o segundo dia. Este facto era tão mau como o tempo em Bruxelas, mas entristecia-a ainda mais que o tempo em Bruxelas, porque o segundo dia tinha sido há muito tempo, quando o sol ainda não era um sonho na cidade escura. Não escrevia desde o segundo dia e apetece-lhe que isto não seja verdade. Pega, portanto, na tesoura de poda para cortar aquela raiz profunda e semear, no seu lugar, uma semente de escrita, que funcione ao contrário, de frente para trás, da direita para a esquerda, como a língua árabe, e reinvente o passado, em mil e uma noites. O Orhan Pamuk diz que passa 10 horas por dia a escrever. Diz também que acorda cedo, por isso adivinhamos que se sente à escrivaninha logo de manhã. Tenta imaginar o escritório de Orhan Pamuk, a possível janela de um segundo andar [ou terceiro ou quarto, não mais] sobre uma rua movimentada, com dois sentidos. Nisto doem-lhe os ombros e os olhos e os pés, bem como o coração, a cabeça e o estômago, como se tivesse escrito [ela e não ele], 10 horas sem parar. Explicava dentro da cabeça que, no fundo, assim era: tinha, afinal de contas, escrito sem parar e não apenas 10 horas, mas 10 dias seguidos, 10 meses, mil e uma noites, para trás e não para a frente, da direita para a esquerda e, portanto, talvez em hebraico. Tudo isto dentro da cabeça, porque, conforme insistia, escrevia dentro da cabeça. Ora, isto não era verdade. Já se sabe que ninguém escreve dentro da cabeça e os seus pensamentos, jamais tangíveis, são feitos de pombos e não de palavras: descem até à cidade e sobrevoam as casas ao sabor do vento ou contra ele, uns atrás dos outros, desaparecem nas esquinas mais escuras, em trajectórias que mais ninguém conhece. Passam também em frente à janela de Orhan Pamuk, mas não o vêem. Ele, sim. Vê-os. E ela vê-o a ver os pombos, gosta de o ver a ver os pombos. Coloca-o à janela para ele ver os pombos. Imagina Orhan Pamuk de pijama, de roupão, de fato de treino, de camisa branca, de t-shirt, não sabe que roupa escolher para Orhan Pamuk. Diz que escreve dentro da cabeça, mas ninguém lê o que escreve, por isso ninguém acredita. Ela também não lê o que escreve, portanto é possível que nem ela acredite. Pega na tesoura de poda, mas não consegue encontrar a raiz daquela falta profunda. Encolhe os ombros e fuma cigarros. Também escova os dentes várias vezes por dia e faz outras coisas, como falar ao telefone, comprar pijamas e chocolates. Um desperdício de tempo, de água, de dinheiro, de saúde, de latim. Não lhe faz bem não escrever: a cabeça fica cheia de pombos e não há espaço para uma praça, para um sopro, para uma janela, por isso os pombos não voam e bicam-lhe a cabeça sem parar, 10 horas seguidas, todos os dias. O sol já é um sonho na cidade sempre escura e ela decide escrever. Pensa em Orhan Pamuk e sente uma ponta de inveja. Talvez uma asa de inveja. Duas asas, um pombo, um bando inteiro de inveja. Está mau tempo em Bruxelas. Doem-lhe os ombros e os olhos.
Um pombo pousa no seu parapeito, mas ela não o vê. Está de costas. A escrever. Que azar.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Discurso diarístico sem mim – Parte I

Não escrevia desde o primeiro dia. Ora, esse dia [o primeiro] tinha sido há imenso tempo dentro e fora da cabeça e daquela dimensão que era o tempo a contar desde o primeiro dia à volta do sol e de si própria. Tinha, no entanto, uma enorme urgência da escrita. Uma enorme urgência para a escrita. Na escrita. Pela escrita. Dir-se-ia que a urgência da cabeça, do tronco e dos membros estava desfasada da tal dimensão à volta do sol. Ou que a urgência fazia parte da espera, não obstante a urgência.
A meio da tarde, a pálpebra inferior do olho direito saltava como o coração de um passarinho. Isto acontecia todas as tardes, por volta das 14 horas e 10 minutos, a hora perfeita dos relógios sem horas. Quem já teve um passarinho na mão, conhece o seu compasso acelerado.
Assim saltava a pálpebra inferior do olho direito e isto incomodava o resto do corpo, o resto do tempo, o resto do mundo: tudo parecia estar em sintonia com o coração do passarinho, escondido atrás da pálpebra.
O dia 8 de Setembro de 2009 parecia-lhe um óptimo dia para acabar com aquela espera que, como já se disse, não era uma espera, mas sim uma urgência estendida no tempo. O desfasamento entre o corpo e o tempo era tão grande que mais parecia um abismo.
Dito isto, o abismo abriu-se de repente como uma boca ou como uma cortina ou como uma luz ao contrário [por ser negra] e o corpo caiu devido à gravidade ou à vontade de cair [não sabemos].
A professora de português do 5.º ano chamava-se Lídia Inês Pinto e este nome parecia-lhe tão bonito que o corpo desfasado do tempo desconfiava que ela [a professora] era, afinal, uma das suas personagens. Tinha, no seu entender, que era pouco e parcial, um certo jeito para todos os nomes que não o seu e o nome daquela professora parecia-lhe seu e não dela [da professora]. Isto a propósito da escrita, porque a professora fictícia ou real [pouco importa] lhe disse, certa vez, que o discurso diarístico era o princípio da escrita. Depois explicou porquê, mas ela [a do abismo] não se lembrava da razão. Do resto, sim, lembrava-se. Tão claramente como do rio Tejo. Tinha algumas memórias [não muitas, não todas] e aquela era uma delas. A professora podia ser fictícia, mas o conteúdo era real.
O princípio da escrita era, pois [talvez], o início do corpo: eventualmente, o tal coração de passarinho atrás da pálpebra inferior do olho direito.
Para que se saiba, estava a ler o Livro do Desassossego. [Ah!, diz o leitor, daí o seu desassossego, a sua urgência, ou parte dele e parte dela.] Também lia outras coisas ao mesmo tempo, mas o Livro do Desassossego era o princípio de outras coisas. Também fazia parte daquele princípio, mesmo que a posteriori do princípio.
O abismo, de natureza opaca e rugosa, assustava-a, por isso susteve a respiração durante a queda. Também fechou os olhos. Por causa disso ou apesar disso, o coração de passarinho atrás da pálpebra inferior do olho direito parou de bater e houve, dentro da cabeça, um pressentimento de morte.
A morte do coração atrás da pálpebra era, naturalmente, uma coisa boa, porque matava de uma vez por todas, não a urgência, não a saudade, mas, pelo menos, o tempo [perdido]. Assim pensava o coração original, maior do que certos pássaros, e, correndo desvairado, soprou sangue, vento, poeira e escrita pela cabeça, o tronco e os membros.
Era o segundo dia.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Primeiro dia



No primeiro dia, a rapariga ficou mais velha. Acordou de manhã e viu isso mesmo, que estava mais velha. A constatação passou-se em frente ao espelho, mas o envelhecimento não, tinha sucedido provavelmente antes, durante a noite. A rapariga só dera por ela de manhã e olhou para si própria em frente ao espelho. Fenómeno esquisito.
Depois foi fazer café. A rapariga, agora mais velha, pensou que não era mau envelhecer.
O homem ilimitado andava à solta pela casa e assobiava ilimitadamente. A rapariga chamou-o como quem chama um pássaro, mas o homem ilimitado não era um pássaro porque era mais parecido com o Peter Pan: tinha uma terra longínqua dentro dele. Além disso, tinha asas nas mãos, nos pés, nas orelhas, nos cabelos. Também tinha voos no corpo e muitos ventos. Não era um pássaro.
A rapariga, agora mais velha, ligou a música. Ouvia M. Ward dia sim, dia não: num dia passava os minutos todos atrás dele, no dia seguinte ignorava-o, para que ele fosse atrás dela. Uma história de amor como as outras. Naquele domingo, por exemplo, a rapariga não ouviu M. Ward, o que foi uma pena, porque o M. Ward tinha sido a banda sonora perfeita para aquele primeiro dia.
A rapariga, agora mais velha, comia torradas despreocupadas com ovos mexidos. O homem ilimitado também. Falavam de boca cheia porque queriam comer e falar ao mesmo tempo.
Não, não era mau envelhecer. Desde que houvesse pão e café de manhã. Desde que a música tocasse aos domingos. E o homem ilimitado assobiasse. Ilimitadamente. À solta pela casa.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Não obstante as brumas

Aquela rapariga anda de sandálias brancas não obstante as brumas e a inevitabilidade da chuva. Anda contente de pés ao léu, ostentando as suas unhas lindíssimas, pintadas de fresco.
A rapariga de sandálias brancas acredita piamente no Verão, mesmo que daqui a pouco ande a chapinhar em poças de água.
Outras raparigas acreditam noutras coisas. Aquela acredita no Verão. (As raparigas arabescas, por exemplo, que andam por aí encarapuçadas como criminosas acreditam em coisas mais invernais e, portanto, menos iluminadas.)
A rapariga de sandálias brancas e unhas pintadas de fresco atravessa a rua e polvilha a estrada de Verão, qual Sininho na terra do sempre.
Quase desejamos que chova para a ver chapinhar na água.
Em Bruxelas, o Verão é assim. Uma questão de atitude. De crença. E não uma estação.
O autor e o narrador converteram-se. E vão pintar as unhas dos pés.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Os que escrevem

Os que escrevem nem sempre escrevem. Às vezes fazem outras coisas. Por norma fazem outras coisas. O autor e o narrador deste texto supõem que os outros, que fazem outras coisas, também escrevem. Os que escrevem nem sempre escrevem. Por vezes mascam pastilhas elásticas. Andam de comboio. Vão ao mercado. São iguais aos que fazem outras coisas, só que preferem escrever a fazer outras coisas. O autor deste texto, na verdade, prefere comer chocolate a escrever. O narrador não, gosta mais de escrever. Por vezes nem o autor nem o narrador escrevem, ficam a meio, entre o pensamento e a escrita. Por vezes a palavra é mais bonita entre o pensamento e a escrita. Por norma a palavra é mais bonita entre o pensamento e a escrita. Às vezes os que escrevem lêem o que os outros escrevem. Gostam do que os outros escrevem. Têm inveja do que os outros escrevem. Às vezes têm medo.
Uns escrevem mais que os outros, melhor que os outros, mais forte que os outros, mais opaco. Os que escrevem só têm isso em comum: escrevem. Nem todos os que escrevem são escritores. A maioria é outra coisa. Alguns são tradutores. Ou medíocres. Ou as duas coisas. Os que traduzem põem noutra língua o que os outros escrevem. Os que escrevem também viajam. Também compram pão. Também vão à livraria Galileu em Cascais comprar o último romance do José Eduardo Agualusa. Também vão à praia. E a Aveiro. No comboio. Alfa pendular. Os que escrevem nem sempre escrevem no comboio. Às vezes ouvem música. Ou lêem o que os outros escrevem. Ou fazem as duas coisas ao mesmo tempo. Outras vezes não fazem nada. Mascam pastilhas elásticas. Ou olham para a capa do último romance do José Eduardo Agualusa.
Os que escrevem têm medo. Da noite. Do dia. Do lobo mau. Dos cabelos negros do Agualusa. De Angola. Os que escrevem compram livros, mas nem sempre os lêem. Os que escrevem são iguais aos outros. Medíocres, pequeninos, invejosos. São iguais aos que fazem outras coisas, só que preferem escrever a fazer outras coisas. Só isso.
Tenho medo do José Eduardo Agualusa.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Johnny Depp

Neste fim-de-semana tive vontade de dar um par de estalos no Johnny Depp. Um estalo com a palma da mão direita e outro com as costas da mão direita, tudo isto em dois segundos: traz, traz.
Há quase 20 anos, na altura da série 21 Jump Street, o Johnny Depp era-me tão indiferente como bróculos cozidos, mas agora já não é assim. Gosto dele como de queijo fresco e eu gosto muito de queijo fresco.
Comecei a ter um fraquinho pelo Johnny Depp na altura do cavaleiro sem cabeça, por causa do rosto muito branco e do fato muito negro, o seu ar sombrio que trazia à memória os vestígios das suas inesquecíveis mãos de tesoura. O Johnny Depp tinha, já nessa altura, o Bem e o Mal no corpo, a Bela e o Monstro.
Este contraste cativa-me.
Quando se vestiu de Willy Wonka, quis saltar para dentro da sua cartola para entrar na sua cabeça. Também simpatizei com a sua madeixa branca e com o seu rosto ainda mais obscuro em Sweeney Todd.
Todas estas personagens e também o facto de Johnny Depp ter encarnado, a certa altura, Sir James Matthew Barrie fizeram com que lhe perdoasse todos os disparates, incluindo o bigode e a pêra que usou naquele filme enjoativo sobre chocolate.
Mas só quando Johnny Depp perdeu definitivamente o tino e pintou os olhos de negro para se transformar em Jack Sparrow é que tive vontade de me atirar ao mar e procurar aquele pirata improvável.
Ora, neste fim-de-semana fui ver o Public Enemies. O Johnny Depp é, nem mais nem menos, John Herbert Dillinger, o bandido americano mais procurado dos anos 30 que assalta bancos como quem rouba ameixas no quintal do vizinho. Johnny Depp anda com uma arma por baixo do sovaco, veste fato completo com colete no meio, frequenta bares de jazz e conquista a belíssima Marion Cotillard com duas frases: I like baseball, movies, good clothes, whiskey, fast cars... and you. What else you need to know?
Isto passou-se no filme, como é evidente, porque, na vida real, qualquer mulher – especialmente a Marion Cotillard – teria passado por cima de Johnny Depp, calcando-o cuidadosamente com os finíssimos saltos altos. Na vida real, com esta deixa, só Al Pacino teria levado a rapariga para casa. Mesmo o Robert De Niro não teria conseguido mais do que um beijinho na testa.
O Johnny Depp é ridículo num papel igual aos outros, porque não é um homem igual aos outros. O Johnny Depp é especial de corrida, tem de ser tratado como tal. O Johnny Depp devia ser fustigado por tentar ser igual aos outros.
Tenho a certeza de que Marion Cotillard não pensaria duas vezes, se tivesse pela frente o pirata das Caraíbas. Também ela se atiraria ao mar.
O Johnny Depp é um saltimbanco e não um assaltante de bancos. E devia levar um par de estalos para ver se aprende a lição.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Teoria da Revolução das Espécies

O professor Alberto Gago e Esperto é antropólogo de formação mas, para sobreviver, trabalha como outra coisa qualquer. Nos tempos livres dedica-se, contudo, à observação disciplinadíssima de pessoas seleccionadas ao calhas. Um exemplo clássico desta sua actividade como antropólogo é sentar-se num restaurante e ficar a observar um casal qualquer. Durante um longo período de tempo, o professor Alberto Gago e Esperto tira imensas notas e, caso haja informações relevantes, persegue o casal durante horas, se não mesmo dias ou semanas ou meses. Casos houve em que prolongou a sua observação durante anos, seguindo as pessoas escolhidas de carro ou a pé, no metro, no autocarro ou até de bicicleta. Por vezes entrevistava as suas pessoas de laboratório, interrogava-os à porta de casa, observava as suas línguas, apalpava as suas glândulas salivares, testava os seus reflexos.
Para o ajudar na sua difícil tarefa, trazia vários instrumentos enfiados numa mala de pele rectangular: um par de binóculos, uma máquina de filmar, um gravador de voz, um iPhone, um computador portátil, uma máquina fotográfica, um estetoscópio, um esfigmomanómetro, um bloco de notas A4, meia dúzia de canetas BIC e um enorme arquivo com o historial dos seus humanos. O professor Alberto Gago e Esperto passou anos nisto (na verdade, décadas) e queria agora publicar um livro com a sua teoria da evolução das espécies que, segundo nos conta, vai mais longe que a de Darwin. Isto porque, desde a Guerra Fria, o ser humano estava a viver um momento único na sua evolução. Os olhinhos do professor Alberto Gago e Esperto brilharam quando disse estas palavras.
Na sequência da sua observação, tinha reunido dados suficientes que permitiam concluir que o ser humano estava, não a evoluir, mas sim a regredir. Ou seja, a evoluir "ao contrário, para trás". Claro que a regressão era, também ela, uma evolução, pelo que o professor Alberto Gago e Esperto intitulou a sua teoria, não de regressão, mas de revolução.
Para este antropólogo, os factos estavam à vista de todos. Os seres humanos andavam cada vez mais corcundas e tinham feições cada vez mais feias, bastava andar pelas ruas das capitais europeias para perceber isso. As mulheres de hoje tinham visivelmente muito mais pêlos do que antigamente e os homens recomeçavam a comer de boca aberta e eram cada vez mais agressivos. No curto espaço de meio século, era possível ver toda esta regressão (ou melhor, revolução). As próprias classes dirigentes andavam mais animalescas. As trombas do presidente iraniano e os cornos de Manuel A. A. Pinho ilustravam claramente esta tendência. Na sua opinião científica, era possível que, nas próximas três gerações, nascesse o primeiro australopiteco. Isto porque a revolução das espécies se estava a dar muito mais rápido do que a evolução. As pessoas eram cada vez menos inteligentes e tomavam atitudes cada vez mais irracionais.
No final desta conversa, o professor revelou uma outra hipótese ainda por comprovar. O professor Alberto Gago e Esperto previa que, no futuro, o ser humano menos sapiente fosse domesticado por uma espécie mais inteligente. Os sinais de hoje pareciam apontar nesse sentido: as pessoas já não tinham ideologias mas queriam seguir quem as guiasse, além de que eram cada vez mais carentes e desorientadas. As observações do professor sobre os acessórios femininos são também extremamente perspicazes no atinente à domesticação da espécie humana1.
A pergunta que se coloca é saber quem será a espécie domesticadora. Mas esta teoria, promete o professor Alberto Gago e Esperto, ficará para um outro livro.
É, pois, com impaciência que aguardamos a publicação desta revolucionária Teoria da Revolução das Espécies.

1 "As mulheres ocidentais do século XXI cobrem os pulsos de pulseiras que tilintam com qualquer movimento do corpo. Ora, o som destas pulseiras é muito semelhante ao dos chocalhos das ovelhas. Não me parece que esta semelhança seja uma coincidência."

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mohammed Ajmal Amir Kasab

O narrador deste texto anda a pensar em Mohammed Ajmal Amir Kasab há dois dias. O autor deste texto também, mas não pelos mesmos motivos.
Vejamos: o narrador deste texto interessa-se por Mohammed Ajmal Amir Kasab, pela pessoa de 21 anos; o autor não, está-se profundamente nas tintas para este paquistanês.
O narrador pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab e vê o indivíduo, lamenta o indivíduo, não o compreende, não o aceita e anda preocupado precisamente com o seguinte: se encontrar na rua o rapaz de nome Mohammed Ajmal Amir Kasab, não sabe o que dizer-lhe. Isto porque o narrador deste texto fica de rastos sempre que lhe faltam as palavras, parte do princípio de que o diálogo não é possível sem as palavras.
Ora, a verdade é que o narrador deste texto gostaria de ter uma coisa clarividente para dizer a este rapaz. Uma coisa única, extraordinária, brutal, capaz de mudar o jovem capaz de matar dezenas de pessoas. O narrador deste texto gostaria de o encontrar na rua e de lhe dizer uma coisa capaz de mudar o mundo. Apenas isto.
O narrador, por lhe faltar o corpo, tem destas presunções, mas o autor deste texto não o leva a sério, como é evidente. Desce a rua, sem lhe prestar atenção.
O autor não esconde que também anda a pensar em Mohammed Ajmal Amir Kasab, mas, na prática, não quer saber do rapaz. Quando pensa nele, pensa nos atentados de Bombaim, como é natural, e depois deixa logo de pensar em Bombaim e na Índia e no mundo, passa a pensar só na Europa e, logo a seguir, só na sua casa. O autor, quando pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab, espera o seguinte: que o terrorismo não chegue a Bruxelas. Depois distrai-se com esta ideia, pensa nos potenciais alvos para um ataque terrorista nesta capital europeia e tem pena de estar ao pé de todos eles.
Enquanto desce a rua, o autor acha todas estas suposições mais mórbidas do que o livro sobre vampiros que anda a ler, por isso resolve pensar noutra coisa. Regressa a Mohammed Ajmal Amir Kasab e pensa novamente em Bombaim, na tal estação de comboios. Depois distrai-se outra vez e começa a planear uma viagem nos comboios indianos. Lembra-se do anúncio "Incredible India" que tanto passa na BBC, lembra-se do filme Slumdog Millionaire. Gostaria de ir, por exemplo, a Goa, ao Taj Mahal, a Deli.
O autor deste texto anda evidentemente preocupado com o seu umbigo e, a propósito disso, pensa em Mohammed Ajmal Amir Kasab. Não anda propriamente preocupado com o rapaz paquistanês de 21 anos.
O narrador deste texto sim, anda preocupado com o rapaz de 21 anos, porque é europeu e acredita na carta dos direitos fundamentais, nomeadamente no artigo 2.º relativo ao direito à vida. Mas enquanto desce a rua enfiado no capuz do autor assusta-se com a ideia de encontrar Mohammed Ajmal Amir Kasab ao virar da esquina, tem vergonha da sua incapacidade para o diálogo, deixa de perceber a razão da sua existência.
O autor deste texto também é europeu mas, antes de mais, é humano, tem um corpo a sério e uma vida pela frente. O narrador não, tem uma existência intermitente: aparece e desaparece no capuz do autor. Indiferente a tudo isto, o autor desce a rua e pensa agora em Gandhi, nos seus ensinamentos. Volta a pensar no seu umbigo e depois em Mohammed Ajmal Amir Kasab.
Repete na sua cabeça a esperança de que o terrorismo não chegue a Bruxelas. Depois pensou em coisas boas. Por exemplo, no facto de o rapaz estar a ser julgado na Índia. Essa era uma coisa boa. Por a Índia ser um país longínquo. E por aí se aplicar a pena de morte.
O narrador fica tão chocado com o pensamento do autor que decide morrer. Atira-se do capuz e morre. Não obstante o seu direito à vida.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Da noite e do espaço


Sonhava muitas vezes que voava até à última nuvem e mergulhava para fora da Terra. O voo era tão silencioso que deixava de ser e o corpo caía devagar.
No Espaço.
Trazia vestido um fato de astronauta e a respiração repetia-se na cabeça como as ondas da praia.
O Espaço era igual à noite.
Havia certas luzes que interrompiam a escuridão e, portanto, muitas sombras. Havia também sons desconhecidos, tão misteriosos e longínquos que era necessário conter a respiração para ouvi-los.
O corpo vestido de astronauta boiava no Espaço de planeta em planeta, assistia ao nascer de outros sóis. Nem sempre sabia regressar à Terra.
O ar expirado embaciava o visor, por isso também era preciso conter a respiração para contemplar.
Nos sonhos bons, a Terra resplandecia inteira num outro céu e os lobos uivavam para ela. O corpo regressava, então, a casa.
Nos sonhos maus, a Terra não estava à vista e o corpo perdia-se para sempre no Espaço.
Aquele astronauta tinha, como é natural, um certo fascínio pelo Espaço. Mas gostava mais da Terra. Muito mais da Terra.
Vista do Espaço.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Senhora Eleonora

Durante a hora de almoço estivemos a observar a senhora Eleonora. Para isso, tivemos de dobrar os nossos olhos como sinos porque a senhora Eleonora estava sentada na mesa do lado. Decidimos observar a senhora Eleonora por ela ser muito gorda e saltar, por isso mesmo, à vista.
A julgar pelo volume do peito, a senhora Eleonora podia ser prima-dona de profissão, vocação e temperamento, mas rapidamente concluímos que não era.
Uma pena.
Quando a comida chega, a senhora Eleonora recebe-a de braços literalmente abertos. Pega no garfo com a mão inteira e enrola com pressa um novelo de massa, que enfia de uma só vez na enorme boca. Temos fome só de a ver.
A senhora Eleonora não está sozinha. À sua frente, uma mulher magra desinteressante conta qualquer coisa e a senhora Eleonora come e cala. De vez em quando pressiona um guardanapo na boca e bebe um trago de água sem gás. No final de um relato visivelmente cómico, a senhora Eleonora dá uma gargalhada profunda e engasga-se porque ri, bebe e come ao mesmo tempo. A gargalhada, interrompida por uma curtíssima tosse, deixa adivinhar a enorme caixa-de-ar e nós temos novamente pena de a senhora Eleonora não ser prima-dona. Isto porque, tendo em conta a simpleza do apetite, não restam dúvidas de que a senhora Eleonora não actua nas óperas das grandes cidades. Desejamos, portanto, que a sua profissão e atitude na vida sejam tão prezáveis como as de uma prima-dona.
A senhora Eleonora fala agora de olhos esbugalhados e a sua voz é tão poderosa que queremos ouvir a sua história. Infelizmente nenhum de nós parla italiano, por isso não percebemos a história certamente animadíssima, pois já se sabe que as pessoas gordíssimas e respectivas histórias são, por norma, mais animadas do que as outras pessoas e as outras histórias, por causa do enorme apetite que têm por todos os prazeres da vida.
A senhora Eleonora regressa à massa com a sua mão sapuda e domina-a facilmente. Ri enquanto come, mas agora já não se engasga.
Observamos a indumentária da senhora Eleonora e reparamos, em primeiro lugar, nos enormes brincos redondos e cor-de-rosa que apontam para a frente no final dos caracóis. Descendo pelo pescoço, apercebemo-nos de que o colar é feito das mesmas esferas cor-de-rosa. Ora, isto causa-nos um certo espanto. Dir-se-ia que a senhora Eleonora, além de ser gorda, ostenta este facto nas orelhas e no pescoço, orgulhosa das suas formas redondíssimas. Nunca tínhamos visto uma mulher deste tamanho com tanta vocação para ser gorda.
Estamos conquistados, por isso observamo-la ainda.
No final da refeição, quando já nada há no prato, enquanto a mulher magra e desinteressante vai dizendo uma outra coisa, a senhora Eleonora pega num pedaço de pão e arrasta-o pelo prato, desenhando círculos perfeitos. Enquanto come olha para o prato imaculado, à procura de vestígios. Não encontra.
Está visto: a senhora Eleonora adora ser gordíssima. Por esta razão, temos imensa pena de não sermos tão gordos.
No final desta hora de almoço, damos graças a Deus Nosso Senhor por a senhora Eleonora não ser prima-dona.
Só então nos apercebemos de que não acreditamos em Deus.
Dizemos em tom de correcção: Ainda bem que a senhora Eleonora não é prima-dona.
Repetimos: Ainda bem.
Pois não seria tão graciosa nem tão sublime.
E isso seria lamentável.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Das raízes

A propósito de um post da Pitucha sobre esta notícia.

Uma mulher de nome Maria decidiu cortar as raízes que trazia nos pés. Ora, não era costume as pessoas andarem por aí a cortar as raízes dos pés, na verdade nunca se tinha ouvido falar de tal prática. Diga-se que a mulher de nome Maria também não gostava propriamente de cortar: parecia-lhe um verbo demasiado definitivo e tinha medo do arrependimento. Contudo, a mulher de nome Maria estava muito habituada a usar a tesoura no seu dia-a-dia e não via nenhum problema em cortar também as raízes.
Tinha, por exemplo, o hábito de cortar as unhas das mãos. Outras mulheres e outros homens também cortavam as unhas das mãos, mas algumas pessoas roíam-nas simplesmente e outras deixavam-nas crescer até que elas se partissem.
A mulher de nome Maria preferia cortar as unhas das mãos e fazia-o com alguma regularidade. Também não se importava de cortar as unhas dos pés, embora tal implicasse um esforço físico maior que exigia desenterrar as pernas, lavar os dedos, cortar as unhas onduladas e voltar a enterrar as pernas até aos joelhos. Ora, isto era extremamente custoso, além de que ninguém via as unhas dos pés da mulher de nome Maria por estarem precisamente enterradas com os ditos pés.
Em dias especiais cortava também os cabelos. Nessas alturas não cortava o cabelo a si própria: ia ao cabeleireiro e uma outra pessoa cortava o seu cabelo. Outros seres humanos também iam ao cabeleireiro cortar o cabelo, mas também havia quem cortasse o cabelo em casa, em frente ao espelho.
Naquele dia, porém, a mulher de nome Maria decidiu cortar as raízes. E sem dramatismos, agarrou na tesoura e cortou.
O corte em si não foi doloroso, porque não implicava nenhuma cirurgia, apenas uma manobra parecida com a poda, porque as raízes, como todos sabemos, são como os cabelos e as unhas: voltam a crescer indefinidamente e, em excesso, não fazem falta.
A mulher de nome Maria disse ainda: "Já não pertenço a esta terra" e deitou a terra fora. Como não podia sobreviver sem terra, escolheu uma terra nova para passar o tempo. Escolheu também um vaso novo, de terracota. Deitou o antigo fora, que era da Vista Alegre. Empurrou o vaso novo até à janela, para apanhar mais sol.
Depois atirou-se para dentro do vaso e enterrou-se até aos joelhos.
As outras mulheres e os outros homens ficaram muito indignados. Disseram que ninguém podia cortar as raízes, por isso, esquecendo-se das suas outras raízes católicas, atiraram pedras à mulher de nome Maria, que se estava profundamente nas tintas, porque o seu lugar ao sol estava longe dos seres humanos indignados e as pedras não a alcançavam.
Ora, o narrador e o autor deste texto jamais cortariam as suas raízes, apesar de terem mudado de terra há cerca de cinco anos. Gostam de ter as mesmas raízes do início. A mulher de nome Maria não. Nós - autor e narrador - não vemos problema nisso.
Até porque a pátria, como disse um certo mestre desta pátria, é a nossa língua e a mulher de nome Maria, falando português, gostava mais de ser brasileira. Por causa do samba, imaginamos. Nós compreendemos e aceitamos.
Pena a mulher de nome Maria estar enterrada até aos joelhos. Senão, até podia sambar como os brasileiros.
Mas assim, enterrada como está, não pode. Deve ser estranho uma pessoa ser estrangeira na sua própria terra.
O que vale à mulher de nome Maria é o piano.
E a ortografia, que é milagrosamente a mesma.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A casa (VI)

O Belgavista faz 2 anos amanhã.
E eu resolvi mudar o papel de parede.

Acordava de manhã e nem sempre a casa lhe parecia igual. O chão estava, por vezes, muito inclinado e as janelas um pouco mais estreitas. Para se certificar de que aquela era a sua casa, cheirava as paredes e reconhecia nelas as memórias de outras casas, de outras cómodas, de outros espelhos, candeeiros, cadeiras, livros.
Não era bom tocar nas paredes logo pela manhã, eram muito frias.
Ideia: Um dia haveria de comprar um papel de parede para o seu quarto.
Imaginou todas as formas, todos os desenhos.
Ideia: Ou então talvez bastasse pintar as paredes de várias cores.
As cores do arco-íris, as cores primárias, as cores do mar.
Depois desistiu de todas estas ideias, continuou a cheirar as paredes.
Tinha medo de subir o escadote e o tecto do seu quarto era muito alto.
Resolveu comprar um quadro. O filho de um quadro. Um pedaço de um quadro. Só não sabia qual. Não gostava especialmente de nenhum artista, mas sim de alguns quadros de determinados artistas.
Naquela sexta-feira, foi ao centro da cidade e, inesperadamente, apaixonou-se. Por um homem sem rosto, atrás de uma maçã, um filho de outro homem. Gostava, acima de tudo, do chapéu do tal homem atrás da maçã, tentava adivinhar o seu rosto. Comprou, naturalmente, uma reprodução daquele quadro.
Colocou-o na parede virada a Norte e contemplou-o durante várias horas.
Estava deveras apaixonada pelo homem atrás da maçã, por isso abraçava-o.
Depois começou a falar para as paredes.
E nunca mais saiu de casa.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Coração Independente Dourado

Gostaríamos de trazer pela mão um coração dourado.
Não um cão, não um papagaio, não um brinquedo nem uma criança.
Gostaríamos de trazer pela mão um coração dourado. Independente.
Maior do que o corpo, do que as portas das casas. Mais aberto do que as janelas.
Um coração impossível, flutuando no ar como uma nuvem. Como um balão.
Gostaríamos de trazer pela mão um coração independente dourado.
Para respirarmos mais alto. Mais profundo.
Mais ar, mais sentimento.
Um coração maior do que o corpo.
Para sermos mais humanos, mais transparentes.
E percorreríamos as ruas da cidade para que os outros vissem o nosso coração, sentissem o nosso pulsar.
Para que tocassem nos nossos ventrículos.
Bem que nós gostaríamos de percorrer a cidade trazendo pela mão aquele coração dourado. E partilhar todo aquele sangue, todo aquele amor, todo aquele engenho, para os quais nunca tivemos corpo nem alma nem tempo. Nem arte.

terça-feira, 23 de junho de 2009

A Forma e o Conteúdo

A Forma e o Conteúdo apanhavam juntos o autocarro para a escola e sentavam-se ao lado um do outro. Quando a Forma não ia à escola, o Conteúdo ficava triste. O mesmo se passava com a Forma, quando lhe faltava o Conteúdo. Davam-se bem.
Ora, um dia, estavam a Forma e o Conteúdo a ouvir uma música da Lisa Hannigan em casa da Forma, quando o Conteúdo disse à Forma:
- Amo-te.
A reacção da Forma foi estranha: agarrou no comando e desligou a aparelhagem de música. Depois voltou a ligá-la. Demorou-se com o comando porque queria pôr a mesma canção. A Lisa Hannigan regressou àquele espaço. E a Forma rebolou na direcção oposta ao Conteúdo.
Ele não se importou: gostava de ver a Forma rebolar.
O Conteúdo era profundo no sentimento. A Forma era mais pragmática, imaginava um beijo e não uma palavra. Coerente consigo própria, não disse nada.
O Conteúdo também não, embora por outros motivos. Tinha a consistência de uma nuvem: quando se mexia, os seus movimentos nasciam desagregados. A Forma pensava que, se o abraçasse, o Conteúdo ganharia mais consistência. Este pensamento agradava-a, por isso aumentou o volume da aparelhagem.
A certa altura, cerca de quatro minutos depois, a canção chegou ao fim.
Acabava-se o pretexto, portanto despediram-se.
O Conteúdo pôs a mochila às costas e foi-se embora.
A Forma encheu o peito de ar, por isso ficou um pouco maior do que antes.
O Conteúdo tropeçava nas próprias pernas descendo a rua. A vontade de andar era maior do que o corpo. O Conteúdo pensou que, se fosse uma ave, tudo seria mais fácil. Depois pensou noutra coisa, designadamente que o amor era difuso, confuso, complicado.
E assim era.
Assim seria.
Mas não para sempre. Só o tempo suficiente.
Para o amor ganhar forma. Nada mais.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Facebook, o livro dos rostos

Um certo rosto está no livro dos rostos, tem uma página no livro dos rostos, por isso passa muito tempo com os seus rostos e os rostos dos outros. Todos os rostos têm outros rostos além do rosto original. Os rostos dos outros também têm páginas no livro dos rostos. Dentro de cada rosto há outros rostos de outros rostos. Nem todos os rostos têm pessoas dentro, podem ser só rostos ou então máscaras.
Eu não tenho uma página no livro dos rostos, mas tenho muitos rostos na mesma.
Trago na cara o meu rosto original e nos bolsos os outros todos. Tenho também uma máscara, que é esta, a pessoana.
De uma vez por todas: Não gosto do livro dos rostos. Abomino o livro dos rostos. Não me convidem para o livro dos rostos. Os outros rostos que me desculpem, mas eu não quero uma página no livro dos rostos.
Antes perder-me na floresta como o Hansel e a Gretel e ser escrava de uma bruxa.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Pastelaria de esquina

Naquele domingo a rapariga entrou na pastelaria de esquina. Não tinha por hábito passar por ali, muito menos ao domingo, e agora que a ocasião surgia, não hesitava. Pela maneira como observa os candeeiros interiores, somos obrigados a admitir que talvez aquela rapariga nunca tenha entrado naquela pastelaria.
Nós, sim, já conhecemos o sítio e sabemos que é raro a mesa da janela estar vaga. E logo agora que a rapariga entra, a mesa oferece-se às suas pernas e estas sentam-se aí mesmo, de frente para o cruzamento feio de carros e gente.
O rosto da rapariga denuncia-a: é nova e sensível. Não é mulher suficiente para se sentar nas montras dos cafés, por isso observamo-la. O desconforto das mãos enquanto espera por qualquer coisa que as ocupe confirma isso mesmo.
Um empregado aproxima-se. Não é simpático nem antipático. A rapariga ainda não sabe o que quer, mas pede apressadamente qualquer coisa, como se verdadeiramente a quisesse. Não era fã de nenhuma das suas escolhas, mas ansiava por que chegassem à mesa. Não chegam logo.
O empregado pousa-lhe na mesa um compal de pêra e uma tosta mista. Enquanto bebe e come, a rapariga toma uma série de decisões: pedirá um café de seguida, levará pastéis de nata, irá ao cinema mais tarde, por volta das oito, para não voltar tarde para casa. Só agora olha para a janela.
A vista não é bonita: na verdade é só um enorme corredor de asfalto repleto de carros. No passeio, surgem e desaparecem pessoas de todos os tamanhos e feitios. Um eléctrico guincha na curva. Algumas bicicletas deslizam satisfeitas e, de vez em quando, carrinhos com bebés lá dentro.
Um pedaço de cidade igual a outros.
Do outro lado da rua há um supermercado aberto. Entram e saem pessoas de caras tortas e cabelos amarrotados. Uma loja de flores está de rosto virado para o sol. Tem tantas flores que a rapariga não consegue ver quem lá trabalha. A rapariga decide comprar um vaso naquela loja. Ou talvez uma planta. Talvez bolbos de tulipas. Isso.
Olha para dentro, ou seja, para a pastelaria. Pede um café e recosta-se na cadeira desconfortável. Um casal observa atentamente a vitrina dos pastéis, parece indeciso. Uma menina muito bem sentada ao colo da mãe acena-lhe atrevida. A rapariga acena de volta. A mãe não se apercebe de nada, fala animadamente com uma outra mulher, atrapalhando os dedos num pastel de feijão. Três rapazes e duas raparigas apertam-se à volta de uma só mesa, comentam uma coisa qualquer divertida. Duas senhoras mais velhas querem pagar a conta e demoram-se a interpretar as moedas. O empregado espeta as duas mãos na cintura e fala para trás do balcão, onde uma moça risonha enfia um pano dentro de um copo. Um casal barrigudo entra na pastelaria e cumprimenta a mãe da menina atrevida. A menina atrevida salta para o chão, dá uma palmada na barriga do homem. Riem-se todos.
As paredes da pastelaria são exageradas: têm uma fonte ao centro e umas janelas alentejanas sem nexo. O empregado devia cortar o cabelo e as pessoas deviam falar mais baixo. A sala perde luz à medida que se entra. Mais um pouco e a escuridão estaria à vista.
A rapariga inicial, de chávena de café na mão, apercebe-se de tudo isto.
Depois olha outra vez para a janela. Para o pedaço feio da cidade.
Decide ficar mais um pouco.
Nem sempre a beleza faz falta.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Conto infantil para adultos: A Bela e o Monstro

A verdade era que nem sempre a Bela e o Monstro se amavam. Por vezes não gostavam um do outro e em dias mais entediantes, com tantos empregados silenciando pelo castelo, perdiam a cabeça e chegavam mesmo a odiar-se.
Nesses momentos ela atirava-lhe com os pratos do outro lado da mesa e ele rugia furioso. Nos dias bons, a Bela chorava e ele pedia-lhe perdão. Depois saíam de mão dada para o jardim. Mas nos dias maus, que eram os mais frequentes, gritavam como loucos e ela ameaçava que se ia embora.
O Monstro, rugindo de amor e ódio, arrastava-a para o quarto e enclausurava-a durante dias. A Bela nem sequer chorava, gostava aliás daqueles dias de paz em que jogava sudoku e lia contos de fada sobre príncipes mais belos do que o seu. Não via ninguém, nem mesmo as dedicadas aias. Também não comia nem bebia, só para chatear o marido.
Durante esse tempo, o Monstro, logo pela manhã, pegava no seu enorme cavalo e galopava pela floresta, rugindo para as árvores. De vez em quando arrancava mesmo uma do chão, tal era a sua força bruta e a sua pouca delicadeza para com o ambiente. À noite via filmes americanos no canal Hollywood com o Woody Allen, o Clint Eastwood, a Kim Basinger, o Fred Astaire.
Até que um dia se sentia só, tão profundamente só, que até os pedaços de lenha que atirava para a lareira lhe pareciam mais felizes do que ele próprio. Então encaminhava o seu monstruoso corpo até ao quarto da Bela e implorava-lhe perdão durante horas, se não mesmo dias, semanas, meses. Ajoelhava-se no chão, unia as volumosas patas e chorava. A Bela assistia pacientemente ao espectáculo até se render a uma qualquer compaixão que, não sendo enorme, ganhava forma no seu peito.
No entretanto os empregados reuniam-se na cozinha e discutiam sobre quem tinha razão naquela disputa, se a Bela, se o Monstro, e não chegavam a conclusão nenhuma. Eram ambos cruéis e egoístas, além de parecerem incompatíveis.
Moral da história visando a educação das crianças: Que as meninas não sejam tão belas, para não serem tão amadas. E que os meninos não se tornem monstros, para saberem amar um pouco menos.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Atracar

Disse: atracar.
E não chegar.
Acercar. Entrar. Voltar. Regressar.
Não.
Disse: Atracar.
E, por isso, imaginou.
Primeiro o verbo.
Depois o corpo. Atracando.
As espias em torno dos pulsos, dos tornozelos, do ventre, o rosto amarrado ao cais, a testa contra o porto (contra os pés do porto), o nariz apertado no pouco ar que afasta o mar da terra.
Nisto um arrepio rolou até ao final das costas.
Um longo arrepio.
Tinha frio, talvez. Ou medo.
(Provavelmente saudade.)
O arrepio instalou-se no final das costas e ficou.
Para sempre.
Rodou um pouco a cabeça e viu, pela proa dos olhos, o bico amarelo de uma gaivota.
(Respirou finalmente o fio de ar entre o mar e a terra.)
Pensou: Não é mau atracar.
E não era.

terça-feira, 28 de abril de 2009

O lugar estranho

Ele disse que aquele lugar era estranho e, no entanto, apenas ele o era.
Quem o disse.
E não o lugar.
O narrador e o autor regressam dia 17 de Maio.
(De um lugar estranho.)

terça-feira, 21 de abril de 2009

O estranho caso do lápis pequeníssimo

O lápis pequeníssimo desaparecia nos dedos e reaparecia nas folhas em forma de carbono. O carbono era, por seu turno, o sangue do lápis.
Não demorámos a perceber a semelhança entre o lápis e Benjamin Button. Ora, esta semelhança cativou-nos.
(Não vimos o filme, mas gostamos do Brad Pitt e conhecemos o tal estranho caso de se nascer ao contrário.)
Observamos o lápis como quem observa um diamante: estudiosamente.
(A propósito desta comparação apercebemo-nos disto: o lápis e o diamante são formas distintas de carbono, outro estranho caso.)
Tacteamos o lápis, descobrimos os seus contornos, as seis faces, gostamos de todos elas, giramo-lo na mesa, fechamos os olhos para ouvir o seu chilrear.
Afiamos o lápis cheios de tempo.
(Tão cheios de tempo que o lápis perde o bico e logo o afiamos de novo.)
Gostamos de afiar o lápis.
O lápis pequeníssimo é agora ainda mais pequeno. Em contrapartida, a sua existência é maior, pois gostamos mais dele do que do resto do mundo.
Pousamo-lo na orelha e levamo-lo a passear pelas ruas. Contamos-lhe histórias, compramos-lhe um gelado.
No final do dia voltamos de mão dada para casa. Pegamos no lápis ao colo, acariciamo-lo, entrelaçamo-lo nos dedos para escrever. No final do dia afiamos o lápis pequeníssimo mais uma vez. Na verdade, até ele perder o bico, para que haja silêncio no seu corpo. No nosso corpo. Em todos os corpos.
Depois afiamo-lo novamente. Ansiosamente.
Até ao final do lápis.
No final contemplamos os despojos de carbono e madeira.
Arrastamos estes restos de vida para o cesto dos papéis, bem como tudo o que escrevemos com aquele lápis e tudo o que desenhámos, tudo o que desejámos (primeiro os dedos, depois o coração e finalmente a linguagem).
Era um bom lápis, aquele. Nem duro nem mole. De tipo HB.
(Nada será como dantes.)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A ideia incomum de V. Moreira

Nem sempre o homem de nome V. Moreira fazia coisas esdrúxulas como naquele dia. Mas certas manhãs havia em que uma ideia incomum caía sobre a sua cabeça tão misteriosamente como o pó sobre as mobílias. E naquele dia assim fora:
Às dez horas da manhã desse tal dia V. Moreira estava na Junta de Freguesia de Vila Real de Santo António a preencher uma declaração para alterar a morada da sua residência permanente. Isto porque o homem de nome V. Moreira se tinha reformado há uns meses e, ganhando consciência de que estava permanentemente de férias, decidira trocar a sua casa de Setúbal pela sua casa no Algarve. Enquanto o senhor Moreira preenchia a declaração, espreitámos por cima do seu ombro e foi nessa altura que aprendemos o último nome deste homem, mas não o primeiro, por falta de oportunidade para uma segunda espreitadela. Estamos, no entanto, convictos de que a primeira letra do seu primeiro nome era V.
A declaração pedia ao homem de nome V. Moreira que indicasse o seu endereço antigo e o senhor Moreira obedeceu. Escreveu Avenida Soeiro Pereira Gomes e antes mesmo de escrever o número, o andar e o código postal, o homem parou de escrever e demorou-se a olhar para o papel. Isto preocupou-nos por motivos óbvios: talvez o homem de nome V. Moreira tivesse esquecido a sua morada em Setúbal ou talvez tivesse saudades dela. Estas hipóteses comprovaram-se, no entanto, erradas, porque o senhor Moreira pensava, não na sua morada, não na sua cidade, mas no próprio Soeiro Pereira Gomes.
É que o homem de nome V. Moreira tinha morado 20 anos na Avenida Soeiro Pereira Gomes, em Setúbal, e há 20 anos que prometia a si mesmo ler um livro daquele escritor. Era, no mínimo, um exercício sensato, dado que conviviam tão intimamente. E, no entanto, finalizadas duas décadas, não só o senhor Moreira não tinha lido um único livro do Soeiro Pereira Gomes, como nunca tinha comprado sequer um exemplar. Na verdade – apercebia-se o homem agora – desconhecia por completo a capa e a contracapa de qualquer um dos livros, nunca lhes tinha sentido o cheiro nem o peso.
Este pensamento transtornava-o. E o homem de nome V. Moreira teve então a ideia incomum de regressar a Setúbal imediatamente. No seu entender, não podia mudar oficialmente de residência enquanto não lesse um livro de Soeiro Pereira Gomes. Sentia-se em falta consigo próprio, com a sua rua, com o escritor.
O homem de nome V. Moreira saiu da Junta de Freguesia de Vila Real de Santo António, mas nós, infelizmente, perdemo-lo de vista logo na primeira esquina, tal era a sua pressa de chegar a casa.
Anos mais tarde, encontrámos o senhor Moreira vagueando pelo Parque do Bonfim. Pelo seu meio-sorriso esclarecido percebemos que tinha lido os Esteiros, bem como todos os outros livros de Soeiro Pereira Gomes. Nunca tinha chegado a mudar de morada e raramente ia até Vila Real de Santo António.
Estava-se bem em Setúbal.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Da pessoa e do sentimento

O sentimento, visto de frente e a olho nu, tentava caminhar na direcção oposta ao resto da pessoa, pendurava-se no final dos dedos para tentar ancorar o corpo, mas os braços navegavam em direcção a Este. O sentimento era, por natureza, mais leve do que as borboletas e nada podia contra o peso do cérebro, do estômago e dos pés.
A pessoa caminhante sentia aquele sentimento pendurado nos dedos e, no entanto, seguia em frente.
Em direcção a Este.
De súbito, por lhe faltar a força e o corpo, o sentimento largou o dedo indicador e caiu por causa da força da gravidade. Felizmente, o resto da pessoa apercebeu-se da queda livre e apanhou o sentimento com a outra mão.
Ambos suspiraram de alívio. Entreolharam-se.
A pessoa cerrou o punho para não mais perder o sentimento.
Caminhava, ainda assim, na direcção oposta.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

1 de Abril

No dia 1 de Abril o narrador convenceu o autor a escrever.
Se ainda não se espantou, espante-se.
Repito: o narrador convenceu o autor a escrever.
Jamais se vira uma coisa assim. Era um evento verdadeiramente extraordinário, porque, como todos sabemos, tudo isto se costuma passar ao contrário: é o autor que convence o narrador. É sempre o primeiro que guia o segundo numa autêntica hierarquia de vontades, pois mesmo na arte da inspiração e da escrita há protocolos, disciplinas e hierarquias e tudo o que de artístico tem tão pouco.
Esta era, portanto, a ordem natural das coisas, mas ultimamente, por as actividades do autor não darem espaço nem oxigénio nem dióxido de carbono à autoria devido a prioridades do momento que nada tinham que ver com arte, o autor perdera, por assim dizer, a vontade, o fio à meada, a inspiração, o que quer que esteja no início da coisa artística, daí que não se esforçasse por convencer o narrador de nada, se não apenas que se calasse e metesse a cabeça entre as orelhas. E dito isto, o narrador, por vingança ou tédio ou simples maldade - que também a há no coração dos narradores - ia cantando dentro da sua cabeça, a qual ficava, por sua vez, dentro da cabeça do autor, a tal canção do Sérgio Godinho, que o autor, por azar, não apreciava (o pronome relativo refere-se aqui à canção e não ao Sérgio Godinho, apreciado por toda a gente e mais alguma).
E justamente no dia 1 de Abril deu-se o caso extraordinário ou até o milagre de Nossa Senhora de o narrador, aborrecido como estava com a inércia do autor, ter tomado a iniciativa de escrever, ou melhor, de fazer o outro escrever por ele. O autor, para mal dos seus pecados, levantou-se contrariado da cama, ainda a noite madrugava, e sentou-se no sofá da sala de estar, por sinal muito fria dado que se esquecera da janela aberta durante todas aquelas horas nocturnas, e escreveu.
Intervalo para descrição: No colo uma almofada e sobre a almofada um bloco. Na mão direita a caneta e na cabeça o narrador ditando o texto devagar. O narrador afastava os cabelos atrapalhados do autor lá do alto do cocoruto todo-poderoso certificando-se de que a redacção saía correcta e escorreita do ponto de vista ortográfico, sintáctico e verbal.
No final da história, satisfeitíssimo, o narrador ordenou ao autor que publicasse aquela redacção no seu lugar. Mas infelizmente, ao ouvir o nome proibido do lugar, o autor acordou sobressaltado daquele feitiço e rasgou o texto decididamente. Depois coçou a cabeça com muita força e o narrador caiu redondo por ali baixo, tendo sido sua sorte a de ter ficado pendurado na ponta de um cabelo espigado que o agarrou pelos colarinhos durante a queda.
O autor foi então ao seu lugar ou não propriamente: sentou-se na margem de cá a observar a margem de lá contemplativamente. Imaginou que Ulisses, depois de regressado a Ítaca, se fizesse ao mar vezes sem conta só para repetir o regresso, a terra à vista, o mar interrompido.
O autor todo-poderoso, de repente inspirado, regressado, artístico, escreveu uma história que nada tinha que ver com a história inicial, a do narrador. Ria-se enquanto escrevia. No final achou que a sua obra era boa.
Tão boa que não parecia sua.
(E não era. Isto porque o narrador continuava a ditar a mesma história, escondido atrás dos cabelos. No entanto, chegado ao final da mesma, deixou que o autor a publicasse, julgando-a sua.)
O narrador procedera desta forma condenável não por altruísmo, não por vingança nem tédio nem nada.
Só por ser dia 1 de Abril. Mais nada.
Um narrador brincalhão.

terça-feira, 3 de março de 2009

O ninho

O rapaz passava muito tempo aos pés da figueira e, por vezes, quando a memória da língua lhe falava dos figos, trepava a árvore torta para lhe roubar os frutos, estivessem eles verdes ou maduros, pois eram verdes na mesma e mal não vinha ao mundo quando eram duros ou podres. Certa vez dera-se o estranho caso de o rapaz ter comido a própria flor que daria lugar ao figo, tal era a sua vontade que a Primavera passasse e o fruto existisse.
Pois num dia de Verão, estava o rapaz já muito empoleirado na figueira, de mãos abertas para os figos, quando do ramo mais alto caiu, não um ramo mais pequeno, não uma folha mais fraca, não um figo empobrecido, mas um ninho inteiro, redondo e encorpado. O rapaz susteve a respiração depois da queda e encolheu todos os músculos. O coração temia pela vida do ninho, pela sua vida, pela vida dos pássaros. Saltou desconcertado para o chão e ali ficou muitos segundos, nem perto nem longe do ninho, os olhos debruçados sobre ele, as mãos lançadas para ele, a boca, o nariz, os pulmões, a garganta e o estômago muito apertado, o corpo todo debruçado sobre o ninho e muito equilibrado sobre as pontas dos pés que não davam um só passo. O ninho estava de cabeça para baixo, não se via o conteúdo (se é que algum havia) e o rapaz demorou muito tempo para lhe tocar, não fosse a morte encará-lo de frente ou levá-lo com ela. Procurou um pau comprido, mas não o encontrou, por os seus olhos se desconcentrarem na demanda. Procurou outra vez. E outra vez.
Podia arrancar um pequeno ramo da figueira, claro, mas tinha medo, imenso medo que outro ninho caísse e com ele outros pássaros, outras mortes. O rapaz angustiava. Ovos partidos, dezenas de ovos partidos, os pássaros mortos, todos mortos. O rapaz não chorou porque era forte. Também não fugiu. Era consequente. Responsável. Curioso.
(O coração era já maior do que o corpo, a terra tremia debaixo dele.)
O rapaz aproximou-se devagar do ninho, baixou-se sobre ele e virou-o, viu-o, pousou-o. Deu três passos para trás, quatro. Cinco. Depois parou.
O mesmo olhar suspenso, todo ele debruçado sobre o ovo azul, ainda inteiro.
(Igual a outros ovos, mas azul.)
(Igual a outros azúis, mas em forma de ovo.)
Nunca tinha visto um ovo azul, não sabia a cor azul nem o ovo nem o pássaro dentro dele. O rapaz sentou-se no chão, em frente ao ovo azul. Cruzou as pernas e pousou nos joelhos os braços. Assim ficou muito tempo. Tanto tempo. Todo o tempo.
O coração crescia mais e mais até alcançar as copas das árvores.
(A cidade era bonita, vista dali.)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Conto infantil para adultos: Soldadinhos de chumbo

Que um homem não é de ferro já todos sabiam. Mas que os soldadinhos de chumbo já não queriam ser de chumbo, não, ninguém sabia. Só eles. Aliás, os soldadinhos de chumbo tomaram esta decisão ontem à noite: já não queriam ser soldadinhos de chumbo, pronto. Informaram então o primeiro-cabo. Disseram: "Queremos ser homens de verdade". O primeiro-cabo alarmou-se e fez o que lhe competia: informou o cabo de secção. Por seu turno, o cabo de secção apressou-se escada acima para informar o segundo-sargento, que informou o primeiro-sargento do andar de cima, que informou o sargento-mor de cima, que informou o cadete, que informou o alferes, que informou o tenente, que informou o capitão, que informou o major, que informou o coronel, que informou o brigadeiro-general, que informou o tenente-general, que informou o general. E quando a informação chegou finalmente às águas-furtadas, o marechal exaltou-se, gesticulou irritado. Disse ao general que, nas forças armadas, quem dava informações era ele e não os soldadinhos de chumbo. O general informou prontamente o tenente-general e a informação desceu direitíssima até ao rés-do-chão. Por último, o primeiro-cabo informou os soldadinhos de chumbo. Disse: "Nas forças armadas, quem dá informações é o general e não os soldadinhos de chumbo". Os soldadinhos de chumbo não perceberam logo a informação. Parecia-lhes um facto evidente, estavam plenamente de acordo. Uniram, pois, os calcanhares com energia e levaram a mão direita à borda da testa, cheios de continência.
É que, entretanto, já se tinham esquecido da tal decisão.
(Eram soldadinhos de verdade.)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Adelaide Eugénia Ferreira Varela Rã

Uma senhora de 73 anos de idade entrou na repartição de finanças do Concelho de Pinhel para reclamar uns dinheiros, não para ela, mas para a associação recreativa de Cerejo a propósito das festas em honra de Santa Maria Madalena do ano passado. Esta senhora chamava-se Adelaide Eugénia Ferreira Varela Rã, um nome razoável à excepção do sobrenome, que saltava sobressaltado sobre os outros, graças às suas pernas de anfíbio. Infelizmente a senhora Adelaide Eugénia Ferreira Varela Rã não conseguiu entregar os papéis que comprovavam a dívida do Estado à associação recreativa de Cerejo. Isto porque a sua hora da morte chegou precisamente no momento em que entrou na repartição de finanças: o corpo caiu entrondoso para a frente e os papéis ficaram quietos dentro da mala. Algumas pessoas assustaram-se, outras não. Uma das senhoras atrás do balcão nem se levantou com o sucedido: agarrou no telefone e chamou a ambulância.
O sobrenome Rã era do marido, que havia falecido há uns quinze anos por causa de um cancro nos intestinos. A senhora Eugénia, que preferia aliás o nome Adelaide mas nada podia contra a vontade do povo da freguesia de Cerejo que toda a vida a tratara por Eugénia, continuava a usar o nome Rã porque a ele se habituara, mas aos vizinhos dizia que a razão era outra, mais poética, mais respeitosa, mais leal. Dizia: "Continuo a utilizar o nome Rã para que a memória do meu marido não se perca pelo caminho" e os outros comoviam-se com as palavras da mulher que usava um nome feio em memória de um homem. Não que o senhor José Marco dos Santos Rã tivesse sido um grande homem nem um homem grande, nem sequer um bom homem (na verdade já ninguém na freguesia se lembrava dele), mas o senhor José Marco era o seu homem e isso bastava para que fosse lembrado. Tudo isto era uma maneira de dizer, porque a senhora Eugénia tinha a sua vida tão ocupada com a associação recreativa de Cerejo, que mal se lembrava do José Marco, coitado. O rosto do dito já se tinha dissipado da memória, restando apenas o sorriso torto e o cabelo bem penteado do dia do casamento. À senhora da mercearia dizia a senhora Eugénia em ar de graça: "Beijei a rã em vez do sapo" e a verdade era essa.
A senhora Eugénia tinha a certeza disso. Se tivesse beijado o sapo e não a rã, nunca teria vivido nem morrido assim. Logo a seguir ao casamento, o seu marido sapo e não rã teria mandado construir um castelo no centro de Cerejo, onde ela e o seu príncipe encantado viveriam com a sua família e os seus muitos empregados. No interior desse castelo se realizariam as festas em honra de Santa Maria Madalena, que muito trabalho dariam à senhora Eugénia, e todas as pessoas de Pinhel ali marcariam presença no dia 31 de Julho. Ou, se calhar, todas as pessoas da Beira Interior. Ou até mesmo todas as pessoas de Portugal.
Isto pensava a senhora de 73 anos na hora da morte.
A mania da grandeza de Adelaide Eugénia Ferreira Varela Rã só não ia além de Portugal por não haver na sua geografia nenhum mundo além daquele. Se tivesse beijado o sapo e não a rã, pensava ainda, jamais entraria na repartição das finanças para morrer. Disso tinha ela a certeza absoluta.
Os papéis que comprovavam a dívida do Estado à associação recreativa encaminharam-se despreocupados para o lixo. Os vizinhos trocaram umas palavras nem boas nem más sobre a senhora Eugénia. Os velhos da associação recreativa foram ao velório, ao funeral e à missa do sétimo dia.
E ao oitavo dia a senhora Eugénia caiu no esquecimento. E o José Marco, que culpa nenhuma tinha de ter nascido rã, perdeu-se finalmente pelo caminho.