Gostaríamos, francamente, que certas pessoas não existissem ou passassem a não existir, que desaparecessem da face desta Terra e da outra, levadas pela força do vento ou da água ou da terra ou do fogo. Passamos, aliás, muito tempo a imaginar catástrofes naturais ou artificiais que justificassem o desaparecimento dessas tais pessoas e, nos dias menos bons, desejamos que qualquer uma destas catástrofes suceda de facto. Nos dias bons, desejamos apenas que essas pessoas se fossem embora. De preferência, com o rabinho entre as pernas ou então com uma pesada mala de viagem às costas ou a rastejar pelo chão (tanto faz), desde que apanhem o comboio ou o avião ou o foguetão ou a nave espacial. Gostaríamos, com efeito, que nunca mais voltassem atrás nem olhassem para trás nem deixassem nada para trás, nem sequer uma recordação ou uma carta ou um postal ou um número de telefone. Gostaríamos que certas pessoas sumissem da nossa vida com a simplicidade com que o fumo sai das chaminés, para nunca mais regressarem, em estado gasoso ou em qualquer outro estado, à casa de onde saíram. Gostaríamos, aliás, que a nossa vida fosse uma casa, à semelhança da nossa casa inicial ou da nossa casa final ou da nossa casa do meio. Que a nossa vida fosse uma casa e tivesse, pelo menos, quatro paredes, bem isoladas e feitas de betão. Gostaríamos, também, que a vida tivesse uma porta e que todos tivessem de bater nela antes de entrarem. (Não abriríamos a porta a certas pessoas. Andaríamos descalços pela vida-feita-casa para não fazermos barulho e apagaríamos as luzes para que certas pessoas não soubessem que andávamos na vida.) Gostaríamos que a vida tivesse, pelo menos, quatro paredes para as pintarmos de uma cor qualquer ou para nos encostarmos a elas ou para pendurarmos um quadro bonito ou feio. Gostaríamos que a nossa vida fosse uma casa e não esta alameda cheia de semáforos e carros e pombos e pessoas feias, monstruosas, indesejáveis, detestáveis. Gostaríamos, sinceramente, que essas pessoas fossem dar uma volta ao bilhar grande e se perdessem no regresso. Gostaríamos, já agora, que a noite fosse fria, tão inteiramente fria, que essas pessoas tilintassem como passarinhos mas não soubessem voar e chorassem de medo e dormissem ao relento num sítio estranho sem casas nem vidas, apenas relva molhada repleta de bostas de cães vadios ou de gatos vadios ou de pombos doentíssimos. Pensamos em tudo isto e desejamo-lo com toda a convicção, embora saibamos que nenhum destes desejos se realizará num futuro próximo ou longínquo, mesmo que desejemos tudo isto com muito força e várias vezes por dia, à luz de velinhas secretas. Imaginamos, no entanto, todas as catástrofes naturais e artificiais e, de todas elas, temos preferência pelo furacão, porque gostamos de vento e de drama. Imaginamos o furacão e sentimo-nos, efectivamente, felizes. Gostaríamos, sem dúvida, que certas pessoas fossem levadas por um furacão para um sítio qualquer e que nunca mais conseguissem pentear o cabelo nem andar a direito por causa das 1001 rotações do corpo durante a viagem. Na verdade, sempre que falamos com essas pessoas ou sempre que as vemos ou ouvimos ou sentimos ou pressentimos, imaginamos este furacão. Fantasiamos, depois, o uivo ensurdecedor do vento, o cabelo desgrenhado dessas tais pessoas, as suas perninhas ridículas abanando no céu, cada vez mais longe desta Terra. Depois caímos, naturalmente, na real e apercebemo-nos de que a nossa preferência pelo furacão tem mais a ver com o Feiticeiro de Oz do que com o nosso profundo desejo de ver desaparecer certas pessoas.
Concluímos, então, que continuamos a preferir a ficção à realidade. E gostaríamos, com toda a franqueza, que certas pessoas não existissem de todo. Nem a sério, nem a brincar.