segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Olhos em bico

Aquele menino chinês tinha os olhos em bico. Tão em bico, tão em bico, que mais parecia que os trazia sempre fechados. Ninguém sabia dizer qual a cor dos seus olhos (nem mesmo a mãe) pois, tanto ao longe como ao perto, nada se via no meio das quatro pálpebras quase unidas além de uma pequena fresta sem brilho. "Abre bem os olhos", mandava a mãe, mas o menino chinês só os abria enquanto dormia. Pelo menos assim dizia a irmã mais velha, que acordara numa certa madrugada e vira os olhos do irmão muito abertos para a noite escura. Revelava com um tom grave à família: "São castanhos-mel como os do pai".
Numa manhã de Inverno, decidida a desvendar aquele mistério, a mãe anunciou que ia levar o menino ao médico estrangeiro. A família levou as mãos ao peito com o susto e foi despedir-se dos dois parentes à porta de casa. Mãe e filho caminharam quilómetros até à aldeia mais próxima, onde vivia o médico. Dizia-se do estrangeiro que era melhor que os curandeiros, que via o que era visível e invisível, que tinha olhos tão redondos que pareciam nunca respirar.
O médico estrangeiro apertou com força a mão da mãe, depois a do filho, aceitou o dinheiro, contou-o com destreza e mandou-os sentar. Com uma mão desajeitada abriu as pálpebras do menino e observou com um só olho o olho do paciente. Depois pegou na lupa e examinou com um olho enorme os pequenos olhos misteriosos. O menino parecia interessado no efeito da lupa porque, ao ver o olho gigante do médico estrangeiro, abriu um pouco mais os olhos. A mãe disse "Óóóóó" com a boca em forma de lua cheia. O menino agarrou na lupa e o médico deixou que ele brincasse com ela. Doutor e paciente trocaram então de papéis e o menino de olhos quase fechados examinou o médico através da lupa. De repente, como que por milagre, o olho do menino abriu-se completamente, tinha agora o tamanho de um ovo cozido e a cor era castanho-mel como dissera a irmã. "Tens olhos de Outono" dizia a mãe e o estrangeiro escreveu decidido num caderno. O menino voltou a semicerrar os olhos, a mãe abriu-os o mais que podia. O médico apoderou-se da lupa, arrumou-a, sorriu por dentro e por fora. Diagnosticou num chinês imperfeito: "Este menino precisa de óculos".