quinta-feira, 2 de agosto de 2007

A cozinheira preta

Jamais se esqueceria dela, do volume da cozinheira na casa, as ancas enormes, o peito pato-do-mato, as pernas grossas e as panelas redondas nos braços duros. Ninguém se lembrava do nome da cozinheira e agora, que o tempo era cada vez menos real, o seu rosto era cada vez mais difuso. Um dia a mulher decidiu que a cozinheira era parecida com Cesária Évora, substituindo-a para sempre pela cantadeira. De tal forma que, quando ouvia o primeiro verso de Sodade se lembrava da cozinheira a cantar para os tachos, o dialecto sempre risonho e o nariz dilatando no vapor da cozinha, como se a canção fosse dela. Quem mostra' bo ess caminho longe?, perguntava-se agora. Naquele final de tarde lembrou-se da cozinheira. Estava em Gibraltar com os filhos e a mais nova apontou para o mar dizendo: "Ali já é África". O pai falou da Conquista de Ceuta e a mulher ficou a pensar na sua. Veio-lhe à memória a despedida, a cozinheira rindo sempre, o choro da menina a colar-se ao corpo como suor.
A cozinheira enorme, agora com o rosto de Cesária Évora, dizia-lhe com o mesmo sorriso: "Se calhar é melhor assim, menina, cada um para seu lado, assim fica tudo preto no branco. Talvez não voltes mais aqui, mas não tem mal, desde que faças coisas boas do outro lado. A vida é como os tachos da cozinha, menina, não se sabe o que fazer com ela até lhe darmos uso. É preciso aprender a mexer nos tachos, é muito difícil, tudo tem a sua medida certa, o seu tempo de cozedura, é preciso prestar atenção aos pormenores. Não te esqueças dos pormenores, menina. Faz coisas boas na vida, cozinha bem, convida os teus amigos para a tua casa, arranja um moço bonito, dança kizomba com ele, dança sempre kizomba!".
Estava frio e era tarde. Os miúdos entraram no carro primeiro, o pai abriu a porta da frente, ela a do outro lado, quase sincronizados. Olharam-se antes de entrar. Ele perguntou: "Que fazemos agora?" e ficou um segundo suspenso a olhar para ela. Ela pensou: "O moço bonito" e disse: "Vamos dançar".