Há uma rua com poucos carros que separa as duas margens. De um lado um prédio baixo, do outro uma paragem de autocarro. No prédio baixo há uma janela com vista para a rua. A janela e a paragem estão frente a frente. Do lado de lá da janela há uma senhora reformada que se senta todas as tardes em frente à janela. Vista da paragem, a senhora mais parece um quadro e a janela uma moldura. A senhora reformada era fadista mas deixou de o ser por causa da vida e não da voz. Há meses que vem pousar à janela esperando as pessoas que esperam o autocarro. Curiosamente, o tempo pára todas as tardes e a senhora fica parada a ver as pessoas pararem na paragem. Certo dia, a solidão da senhora comoveu a própria senhora e saltou um choro da ponta da voz. O nó na garganta lembrou-a do fado, por isso pegou nas cordas vocais e tocou-as para dentro como já não fazia há muito. A senhora era viúva, portanto já estava vestida de negro. Abriu a janela e cumprimentou o público do lado de lá da rua com um sorriso. Encheu o peito de ar, esperou o primeiro acorde, fechou os olhos e pôs-se a cantar. Nesse momento o tempo acordou e fez-se ao caminho, ou seja, voltou para trás.