sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Discurso sensorial

Diz-me qualquer coisa que não seja azul nem amarela, apetece-me algo um pouco mais dramático, irónico, brutal. Toca-me ao de leve para eu me arrepiar. Preciso de um cor-de-laranja com sabor a álcool, dá-me a provar desse fósforo, sabes bem que adoro o cheiro a madeira queimada.
Diz-me qualquer coisa em degradé que comece lilás e acabe roxa como as noites no castelo do drácula. Canta-me em si menor uma sílaba fugaz de asas negras. Bato com os pés no chão e sou vampiro, vou por aí cheirar as chaminés das casas. Pouso no final da noite e fico a ouvir o crepitar lento do sangue atrás da pele.
Vamos ficar aqui, nesta praça castanha, a ver os pombos passar. Senta-te comigo aos pés da estátua, somos a pedra azeda da calçada. Um pouco mais de branco e esta tarde era perfeita, as minhas mãos a traço grosso pousadas no colo, as tuas ao fundo, desfocadas, inconcebíveis.
Grita qualquer coisa com contraste, uma palavra definitiva, imprevista, acidental.
Um pouco mais de amarelo nos olhos, por favor, para que o feitiço funcione. Dá-me água à boca, quero ser um pouco mais elástica, maleável, transparente.
O eléctrico guincha no fundo da rua como um beijo imprevisto, gosto do sabor do ferro na língua, do sol repentino à flor da pele. Diz-me qualquer coisa no tom impossível do vinho tinto e desce comigo por esta escada, dois degraus de cada vez, quatro oitavas abaixo do chão.