quarta-feira, 18 de julho de 2007

Pedaços

Para a Ana

O menino tinha um tique nervoso, que era afinal um hábito ou um vício, segundo a educadora de infância. De resto, era igual aos outros meninos: não gostava de se assoar, não brincava com meninas e não comia a sopa até ao fim. O tique nervoso, que era afinal um hábito ou um vício, era este: frequentemente, o menino encostava-se a um canto sozinho com uma folha de papel e rasgava-a devagarinho até os pedaços de papel desaparecerem de tão rasgados que estavam. No fim, a educadora varria os pedacinhos de papel em silêncio, mas havia sempre um ou outro que sobrevivia ao arrastão. O menino apanhava-os contente e guardava-os no bolso. A mãe era mais eficiente, pegava no Black & Decker e engolia todas as peças de uma só vez, dizendo coisas indecifráveis ao som do aspirador.
Um dia, ao ver o menino ocupado com os seus pedaços de papel, o pai perguntou: "O que é isso?" e o menino disse: "São as peças do jogo!". O pai gritou "Eureka!" e foi a correr comprar um puzzle de 16 peças, outro de 49, outro de 250, outro de 500 e finalmente outro de 1000. O menino encantou-se com tantas prendas, brincou com o primeiro puzzle, depois com o segundo até que, no final da tarde, se recolheu a um canto para rasgar as folhas de instruções. Nunca mais voltou a brincar com os puzzles.
Certo dia, semanas mais tarde, a mãe vinha de Black & Decker em punho e perguntou impaciente: "Para quê tantos pedaços de papel?" e o menino, debruçado sobre eles, respondeu: "Para serem muitos!". A mãe telefonou a correr para o marido e disse: "O menino não quer ser sozinho!" e, nessa mesma noite, mãe e pai trataram do assunto. Nove meses depois nascia a irmã e o menino encantou-se com a prenda: dava-lhe festinhas enquanto dormia, falava baixinho ao seu ouvido, ficava a vê-la tomar banho. De resto, nas horas mortas, encostava-se a um canto e rasgava papel.
Até que, numa manhã de Primavera, ninguém disse nada. O menino estava sozinho na sala a rasgar papel, tão sozinho que até o barulho do papel ecoava nas paredes. No fim, o menino suspirou. "Pena ter de se deitar fora o papel", pensou e de repente lembrou-se que podia colar os pedacinhos de papel. O menino passou toda a manhã a colar o papel ao chão e, quando já lhe doíam o pescoço e as pernas por causa da posição, ainda foi buscar as canetas de feltro e pintou todos os pedacinhos com cores diferentes. Só tinha 12 canetas mas misturou todos os tons possíveis, para que as cores não se repetissem.
Quando os pais chegaram, o menino apontou orgulhoso para o chão. A mãe levou a mão à boca e depois ao peito, o pai pousou a mão na cabeça e deixou-a ficar. Perguntaram ao mesmo tempo: "Mas o que é isto?" e o menino franziu a testa intrigado. Olhou para o chão, depois para os pais, voltou a olhar para o chão e depois para os pais. "Então não se vê logo que é um quadro?".