Todas as manhãs, a mulher do eléctrico apanhava o 23 na Gare du Midi e saía em Heysel. Era um trajecto demasiado longo e não muito directo, havia várias curvas pelo caminho e o compasso da viagem era lento. Mas a senhora não tinha pressa, ou pelo menos assim pensava o condutor, era provavelmente reformada e parecia conformada e descansada com a vida. Entrava no eléctrico devagar e observava os pés enquanto subia os degraus, certificando-se de que traziam consigo o resto do corpo. Depois deixava-se cair num lugar à janela, pousava uma mão sobre a outra, palma contra palma, e esquecia-se delas no colo. Vinha normalmente a meio da carruagem e não fazia absolutamente nada durante o percurso, senão olhar para fora da janela. Em Heysel, a senhora era sempre a última a sair, sacudia a mão ao condutor em jeito de despedida e descia os degraus olhando para os pés atentamente. Não se sabia o que a senhora fazia em Heysel, mas o condutor imaginava-a, por vezes, sentada num banco de jardim partilhando migalhas do seu pão com os pombos. Outras vezes, imaginava-a numa casa bonita com netos e bisnetos, que talvez a viessem esperar todos os dias do outro lado da linha. Com o cair da manhã, a senhora apanhava novamente o 23, desta vez em Heysel, saindo uma hora mais tarde na Gare du Midi. Tudo isto se repetia de igual forma dia após dia, até que certo dia o condutor, demasiado intrigado com a mulher do eléctrico, resolveu perguntar-lhe: "Desculpe, senhora, bem sei que não tenho nada com isso, mas se tem de ir todos os dias para o outro lado da cidade, por que razão não se muda para lá?". O condutor apanhou a mulher do eléctrico numa má altura, a senhora estava demasiado focada nos seus pés para lhe dar atenção, tinha o ar mais concentrado do mundo e talvez precisasse de silêncio enquanto descia da carruagem. "Como?" perguntou a mulher momentos mais tarde, já liberta dos enormes degraus. O condutor repetiu a pergunta um pouco mais alto do que antes, não fosse a senhora ouvir mal. A mulher do eléctrico ouviu a pergunta respeitosamente e ficou a pensar durante algum tempo. Talvez nunca tivesse considerado essa hipótese e estivesse agora a debruçar-se sobre ela. A senhora parecia agradada com a ideia, havia um esboço de sorriso no seu rosto. Finalmente uniu as sobrancelhas numa ruga profunda e, ainda sorrindo, disse: "Mas assim não andava de eléctrico!".